sábado, 9 de abril de 2022

O Caboclo d’Água

 






No lombo de pedra da cachoeira clara

as águas se ensaboam

antes de saltar.

 


E lá embaixo, piratingas, pacus e dourados

dão pulos de prata, de ouro e de cobre,

querendo voltar, com medo do poço

da quarta volta do rio,

largo, tranqüilo, tão chato e brilhante,

deitado a meio bote

como uma boipeva branca.


Na água parada,

entre as moitas de sarãs e canaranas,

o puraquê tem pensamentos

de dois mil volts.

 


À sombra dos mangues,

que despetalam placas vermelhas,

dois botos zarpam, resfolengando,

com quatro jorros,

a todo vapor.

 


E os jacarés cumpridos, de olhos esbugalhados,

soltam latidos , e vão fugindo,

estabanados, às rabanadas, espadanando,

porque do fundo

do grande remanso, onde ninguém acha o fundo,

vem um rugido , vem um gemido,

tão rouco e feio, que as ariranhas

pegam no choro, como meninos.


O canoeiro

que vem no remo, desprevenido,

ouve o gemido e fica a tremer.

É o caboclo d’água,

todo peludo, todo oleoso,

que vem subindo lá das profundas,

e a mão enorme,preta e palmada,

de garras longas,

pega o rebordo da canoinha

quase a virar.


E o canoeiro, de facão pronto,

fica parado, rezando baixo,

sempre a tremer

 


Crescendo d’água ,lá vem a máscara,

negra e medonha,

de um gorila de olhar humano,

o Caboclo d’água

ameaçador.


E o canoeiro já não tem medo,

porque o Caboclo o olhou de frente,

todo molhado,

com olhos tristonhos,rosto choroso,

quase falando,

quase perguntando

pela ingrata Iara,

que, já faz tempo, se foi embora,

que há tantos anos o abandonou...



João Guimarães Rosa

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Poema Maior






 

Onde encontrarei

o nosso Poema Maior?

Nosso Poema Maior reside no coração:

parceria, intimidade e cumplicidade!

Nosso Poema Maior

não precisa ser escrito para existir...

Ele não precisa de tinta e papel...

Nossas mãos tocam mais do que papel:

tocam corações, mentes e almas...

e esse desejo de estar junto

está fadado ao universo,

que conspira e inspira

toda nossa capacidade

de se entregar...

Nosso poema toca esperanças;

toca sonhos; toca lábios;

trocam-se sensações

que nunca antes foram sentidas...


Separados pela vida

e reunidos pelo destino,

seremos um casal

casado em espírito,

mesmo que em casas separadas...

casados no coração,

ainda que dormindo com outros amores...

casados no amor real e puro,

no qual jamais haverá divórcio...


Nunca me entreguei a alguém

como me entrego a você:

meu macho alfa, meu oásis no deserto,

minha enzima, minha fonte de vida,

o alface da minha salada...

A quem mais eu poderia

chamar assim

com tamanho amor?


Nunca fui amada

como sou com você...

e repito mil vezes:

eu te amo como

ninguém jamais te amou,

em todos e vários sentidos,

em todos os versos,

em todas as metáforas

de nosso Poema Maior.

São Paulo, 07 de outubro de 2010.



Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros 


quinta-feira, 7 de abril de 2022

Soneto da separação









De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
 


De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
 


Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.



 Vinicius de Moraes

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Sintonia na Sinfonia

 



A vida pode ser regida 

como uma bela sinfonia, 

em que a precisa sintonia  

de cada protagonista  

seja sempre vista 

como um laço de amor, 

que une dois como se fossem um, 

que não se abandona de jeito algum, 

que é a própria essência do querer, 

que é a única forma de existência do ser. 

 

Salvador, 15 de janeiro de 2021. 

terça-feira, 5 de abril de 2022

Rosário

 





 




E eu que era um menino puro

Não fui perder minha infância

No mangue daquela carne!

Dizia que era morena

Sabendo que era mulata

Dizia que era donzela

Nem isso não era ela

Era uma môça que dava.

Deixava... mesmo no mar

Onde se fazia em água

Onde de um peixe que era

Em mil se multiplicava

Onde suas mãos de alga

Sobre o meu corpo boiavam

Trazendo à tona águas-vivas

Onde antes não tinha nada.

Quanto meus olhos não viram

No céu da areia da praia

Duas estrelas escuras

Brilhando entre aquelas duas

Nebulosas desmanchadas

E não beberam meus beijos

Aqueles olhos noturnos

Luzinho de luz parada

Na imensa noite da ilha!

Era minha namorada

Primeiro nome de amada

Primeiro chamar de filha

Grande filha de uma vaca!

Como não me seduzia

Como não me alucinava

Como deixava, fingindo

Fingindo que não deixava!

Aquela noite entre todas

Que cica os cajus! travavam!

Como era quieto o sossego

Cheirando a jasmim-do-Cabo!

Lembro que nem se mexia

O luar esverdeado.

Lembro que longe, nos longes

Um gramofone tocava,

Lembro dos seus anos vinte

Junto aos meus quinze deitados

Sob a luz verde da lua.

Ergueu a saia de um gesto

Por sobre a perna dobrada

Mordendo a carne da mão

Me olhando sem dizer nada

Enquanto jazente eu via

Como uma anêmona n'água

A coisa que se movia

Ao vento que a farfalhava.

Toquei-lhe a dura pevide

Entre o pêlo que a guardava

Beijando-lhe a coxa fria

Com gosto de cana-brava.

Senti, à pressão do dedo

Desfazer-se desmanchada

Como um dedal de segredo

A pequenina castanha

Gulosa de ser tocada.

Era uma dança morena

Era uma dança mulata

Era o cheiro de amarugem

Era a lua cor de prata

Mas foi só aquela noite!

Passava dando risada

Carregando os peitos loucos

Quem sabe pra quem, quem sabe!

Mas como me perseguia

A negra visão escrava

Daquele feixe de águas

Que sabia ela guardava

No fundo das coxas frias!

Mas como me desbragava

Na areia mole e macia!

A areia me recebia

E eu baixinho me entregava

Com medo que Deus ouvisse

Os gemidos que não dava!

Os gemidos que não dava

Por amor do que ela dava

Aos outros de mais idade

Que a carregaram da ilha

Para as ruas da cidade.

Meu grande sonho da infância

Angústia da mocidade.


Vinícius de Moraes

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Sobre o Medo da Morte

                                        




O único jeito de aceitar a realidade
é parando de lutar.
Em vez de espantar o medo,
a solução é convidá-lo a andar ao lado... como parceiro, não inimigo.
A flor de lótus não cresce longe da lama
e não se vive sem dor.
Por isso, o jeito é aceitar o todo,
com seus lados bons e ruins,
amor e compaixão.
Não é possível se livrar do medo da morte, mas se pode aprender a conviver com ele.

Salvador, 29 de julho de 2018.

domingo, 3 de abril de 2022

A rosa de Hiroxima



 




Pensem nas crianças

Mudas telepáticas

Pensem nas meninas

Cegas inexatas

Pensem nas mulheres

Rotas alteradas

Pensem nas feridas

Como rosas cálidas

Mas oh não se esqueçam

Da rosa da rosa

Da rosa de Hiroxima

A rosa hereditária

A rosa radioativa

Estúpida e inválida

A rosa com cirrose

A anti-rosa atômica

Sem cor sem perfume

Sem rosa sem nada.



 Vinícius de Moraes