A tristeza no coração
por ter amado quem não merecia,
por ter abandonado quem te queria,
por ter sonhado uma nova acolhida,
por não se preparar para a despedida,
por ter ousado ser gauche na vida.
Salvador, 15 de maio de 2022.
Blog para ler e pensar... Um texto por dia... é a promessa... Ficarei muito feliz em ler e saber o que cada palavra despertou... Se você quiser compartilhar um texto, não hesite em mandar para rpf@rodolfopamplonafilho.com.br. Aqui, não compartilho apenas os meus textos, mas de poetas que eu já admiro e de todas as pessoas que queiram viajar comigo na poesia... Se quiser conhecer somente a minha poesia, acesse o blog rpf-poesia.blogspot.com.br. Espero que goste... Ficarei feliz com isso...
A tristeza no coração
por ter amado quem não merecia,
por ter abandonado quem te queria,
por ter sonhado uma nova acolhida,
por não se preparar para a despedida,
por ter ousado ser gauche na vida.
Salvador, 15 de maio de 2022.
Quando saí da Candelária, ao meio daqueles milhares de gente, eu não a havia notado. Nem sabia muito bem por que e o quê se protestava. Eu nunca apanho ônibus, moro no centro, perto do trabalho, e raramente saio das imediações. Quando o faço, pego um táxi. Mas havia uma gota d'água inexplicavelmente derramada na minha cabeça. Eu protestava contra a mentira. Deveria ser crime hediondo mentir, com reserva para ficcionistas, poetas, letristas e toda essa gente criativa, mentirosos do bem e do belo. Havia uma flagrante dissonância nos cartazes, faixas e dizeres à minha volta. Uma dissonância harmônica, contudo. Maldisse a falta de ideia de escrever um cartaz de "abaixo a mentira", ou mesmo "criminalizem a mentira". Segui a passeata gritando meu slogan inutilmente, decerto, porque outras muitas reivindicações eram feitas por grupos de forma mais contundente.
Entramos na Avenida Rio Branco, a grande reta, palco de muitos carnavais e protestos. Ali se deu, em 1968, em plena ditadura militar, nos anos de chumbo, uma passeata de cem mil pessoas. No ar daquele junho distante, o cheiro da morte de Edson Luiz, o estudante do calabouço. Agora, as balas são de borracha, pensei um pouco aliviado, ao menos por enquanto são diferentes do chumbo da época do meu pai. Passávamos pela esquina da Rua da Alfândega quando a avistei. Uma moça comum, vestida de camiseta com o logotipo da campanha do combate ao câncer de mama, calça jeans e tênis. Cabelos cortados na altura do início dos ombros. Ela dizia palavras de ordem e para isso cultivava duas rugas na testa, que pareciam acompanhar o desenho do nariz. Marcavam-se covinhas em suas bochechas. Achei-a magra. Mas no todo era bonita, embora longe dos estereótipos da modelo ou da gostosa. Irradiava uma energia que eu sentia naquela distância, a de um passo lateral, se muito. Pisávamos o asfalto. Por um momento, eu me esqueci do motivo da minha participação naquilo tudo, porque só pensava nela e, logo depois, era como se só ela existisse. Os milhares de manifestantes se desvaneceram. Passamos pela esquina da Rua do Rosário e depois a da Rua do Ouvidor, e eu surdo. Pensei que seria um péssimo ouvidor. Toda atenção à moça das rugas e covinhas. Ao passarmos pela Rua São José, ali perto da Praça Mario Lago, pensei no grande artista e me convenci de que ele estaria conosco, se vivo fosse. Mas também pensei no amor e olhei para a moça, e lhe segurei a mão. Ela me olhou assustada por um instante, mas logo sorriu com sumiço das rugas e aumento das covinhas. E nossas mãos ficaram coladas por alguma energia somente explicável na poesia. Chegamos à Cinelândia. Ocorreu um não se sabe o quê. O movimento agora estático. Qual seria o próximo passo? Cantavam-se músicas e gritavam-se palavras de ordem. Nossas mãos unidas. Nem sei quanto tempo ficamos assim, de mãos dadas e olhares perdidos. Súbito o estrondo. Outro. A fumaça. Apertei a mão da moça com mais vigor. Ela se virou e nos beijamos. Na bruma, o beijo infindável. Sugávamos a ternura e chorávamos lágrimas de gás.
- Jairo Vianna Ramos
Minha menina de 50 anos!
Meu desejo e meu descanso!
Meu conforto e meu encanto!
Meu apoio em meio ao pranto!
Meu sorriso envergonhado!
Meu cuidado extremado!
Meu carinho da madrugada!
Minha força para a estrada!
Minha maratona de séries e sexo
Minha lógica sem muito nexo!
Minha falta de memória!
Minha nova e linda história!
Minha mãe mais nova!
Minha filha mais velha!
Minha razão para ter esperança!
Meu renovar do sorriso de criança…
Salvador, 08 de maio de 2022.
A lua projetava o seu perfil azul
Sobre os velhos arabescos das flores calmas
A pequena varanda era como o ninho futuro
E as ramadas escorriam gotas que não havia.
Na rua ignorada anjos brincavam de roda…
- Ninguém sabia, mas nós estávamos ali.
Só os perfumes teciam a renda da tristeza
Porque as corolas eram alegres como frutos
E uma inocente pintura brotava do desenho das cores
Eu me pus a sonhar o poema da hora.
E, talvez ao olhar meu rosto exasperado
Pela ânsia de te ter tão vagamente amiga
Talvez ao pressentir na carne misteriosa
A germinação estranha do meu indizível apelo
Ouvi bruscamente a claridade do teu riso
Num gorjeio de gorgulhos de água enluarada.
E ele era tão belo, tão mais belo do que a noite
Tão mais doce que o mel dourado dos teus olhos
Que ao vê-lo trilar sobre os teus dentes como um címbalo
E se escorrer sobre os teus lábios como um suco
E marulhar entre os teus seios como uma onda
Eu chorei docemente na concha de minhas mãos vazias
De que me tivesses possuído antes do amor.
É o preço a se pagar
para nunca se afastar…
Antes a castidade
do que a perda da conectividade
Antes a castidade
do que a perda da amizade
Antes a castidade
do que a perda da sintonia
Antes a castidade
do que a perda da utopia
Mesmo que o desejo
tenha de ser sublimado,
o amor jamais será apagado.
Salvador, 11 de maio de 2022.
Valentina acordou cedo, o que não era qualquer novidade. Diferente era aquela sensação de angústia. Levou um tempo para compreender e, só depois do café reforçado que fez para Valteir é que se deu conta... Nove meses. "Dava um filho", pensou. Estava sem receber seu salário há tanto tempo que já se acostumara. Mas naquele dia, não. Pensou no marido, se esforçando nas vendas da concessionária, pensou no casal de filhos cujas roupas começavam a puir pela falta de novas e resolveu que ia tomar uma atitude, Ah! se não ia! Era o fim e ela tinha cabelo nas ventas. Não deixava nada barato.
Correu para a escola em que trabalhava e começou a conversar com todos. Tinham de fazer algo.
Ao longe, alguém a observava sem que ela percebesse. Meia hora depois, um milico todo engalanado entrou e acabou com tudo... "olhem, moças, vocês vão ter que parar com essa reunião, senão, infelizmente, vou ter que prender todo mundo". Ficou com raiva. Olhou fundo nos olhos dele, mas enxergou, como sempre, mais longe na alma do sujeito. Fazia o que lhe mandavam, não era por vontade própria...
Se apiedou do homem.
E foi lutar em outra frente.
Ney Pimenta
Há pessoas que são porto e há pessoas que são âncora
Há pessoas que são cruzeiro e há pessoas que são naufrágio
Há pessoas que são mar aberto e há pessoas que são iceberg
Há pessoas que são calmaria e há pessoas que são tempestade
Há pessoas cuja missão de vida é infernizar…
Não consegue ser feliz e
não quer que ninguém mais seja…
Elas não são pessoas: são abismo profundo, insondável e
fatal.
Salvador, 15 de maio de 2022.