sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Bem no fundo



Paulo Leminski

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Alienação Parental




Rodolfo Pamplona Filho

Qual é o sentido de ser deixado só?
Qual é o significado de
virar joguete de quem o criou?
O que faz alguém transformar
o fruto do amor
em uma forma para torturar
alguém a quem já se entregou?
Como imputar tamanha dor
a quem não pediu sequer
para vir ao mundo viver
ou provar o seu sabor?

Quando filhos viram massa,
só se construi um muro de tristeza;
Quando filhos viram moeda,
só se paga o preço do rancor;
Quando filhos viram brinquedos,
só se joga o jogo do ódio;
Quando filhos viram propriedade,
só se é dono do seu próprio veneno...

Morte, tragédia, culpa,
homicídio doloso da inocência
isolamento, depressão,
raiva convertida em manipulação
roubo, furto, perda,
em pungente sede de não,
vítima que é assassina
também de seu próprio eu,
em uma Medéia que ensina
o avesso de amar o seu
para, ao mesmo tempo,
nunca mais ser de ninguém...

Não seja algoz de quem te ama.
Não seja cúmplice da frustração.
A vida vai além da lei e da cama
e o mundo não é só comiseração.
Se relacionamentos terminam,
filhos são para sempre...
Se partir é doloroso,
mais ainda é deixar de ser gente...


Porto Alegre, 12 de abril de 2013.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Eu sou trezentos...



Mário de Andrade

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

O Martelo e o Tacape



Rodolfo Pamplona Filho

Qual é a diferença
entre o martelo e o tacape?
Qual é a distinção
entre autoridade e ditadura?
Qual é a crença
da importância da postura?
Qual é a sensação
de fazer algo de livre vontade?
Qual é a consequência
de assumir sua liberdade?
Qual é a vantagem
de encarar a realidade?
Qual é a diferença
entre o martelo e o tacape?

Salvador, 08 de novembro de 2013

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Solitário



Augusto dos Anjos

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta…
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
-Velho caixão a carregar destroços-

Levando apenas na tumbal carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

domingo, 30 de setembro de 2018

Fantasia Fugaz II


Letra: Rodolfo Pamplona Filho
Música: Jorge Pigeard

Loucos são os que pensam
Haver padrões para uma mente
Destroços de cultura
De um mundo tão doente
Homem: ser ambíguo
Pois sua sina é a incerteza
Fruto produzido em sua própria natureza
Sem respostas, cem questões
No infinito das ilusões

Fronteiras do Inconsciente
São como sonhos: tênues linhas
As mudanças de lágrimas para risos
Têm a complexidade da noite para o dia
da tristeza para alegria

Vida, margens duma porção,
Um todo preenchendo metade,
O ciclo da dualidade
Lucidez e Loucura,
Tangentes da Razão,
Mas são frágeis correntes entrelaçadas
Numa mesma...
... canção!

Fantasia fugaz fluindo...
... como uma...
... canção!!!

(1992)