sábado, 28 de março de 2020

Repouso


Falando da vida de Ferreira Gullar



Ferreira Gullar

pouso o rosto
na mesa
que
alívio
ser apenas
tato
só o
macio
contato
o corpo
corpo
defeso
dos esplendores
da vida

sexta-feira, 27 de março de 2020

Banalização da morte



Rodolfo Pamplona Filho




A TV divulga, a rádio anuncia,
o jornal comunica
o saldo das mortes do final de semana...
o trânsito, o acidente doméstico
ou a costumeira e pontual queima de arquivo...

Normal...

Ouvimos impassíveis,
tomando o café nosso de cada dia,
no meio das notícias políticas
ou da alegria, tristeza com
o resultado do jogo do nosso time...

Normal...

Não há espaço para indignação,
nem mesmo há tempo para isso...
A informação passa por
nossos olhos e ouvidos
como uma brisa imperceptível...

Normal...

O sangue escorre das imagens,
do som e dos papéis...
mas não se sente nada...
Anestesia coletiva, difusa e impessoal...
A apatia e a indiferença
não fazem acepção de pessoas...

Normal...
Normal?

Salvador, 16 de agosto de 2010, uma segunda-feira sangrenta...

quinta-feira, 26 de março de 2020

Uma aranha

Spider (Aranha) | Louise Bourgeois - iberecamargo.org.br



FERREIRA GULLAR



ela surgiu não sei de onde
quando abri o Dicionário de Filosofia
de José Ferrater Mora
(no verbete Descartes, René;) mi-
núscula
com suas muitas perninhas
quase invisíveis
cruzou a página 1 305 como se flutuasse
(uma esfera de ar
viva)
e foi postar-se no alto
no limite entre o texto e a margem branca
enquanto eu
fascinado
indagava:
como pode residir
insuspeitado
nestas encardidas páginas
– em minha casa, afinal de contas –
um tal ser
mínimo mas vivo
consciente de si
(e como eu
parte do século XXI)
e que agora parece observar-me
tão espantado quanto estou
com este nosso inesperado encontro?

quarta-feira, 25 de março de 2020

Eu digo não!



Rodolfo Pamplona Filho




Eu digo não a quem faz corrupção
Eu digo não a quem aumenta o feijão
Eu digo não a quem faz parte do Centrão
Eu digo não a político ladrão
Eu digo não a quem faz nada no Senado
Eu digo não a seu nobre Deputado
Eu digo não ao governador do Estado
Eu digo não a quem põe povo de lado
Eu digo não à União Ruralista
Eu digo não ao Partido Comunista
Eu digo não ao homem do decreto-lei
Eu digo não ao presidente José Sarney

Eu digo não à perda da inocência
Eu digo não a viver em violência
Eu digo não ao rombo da previdência
Eu digo não a esta falta de decência
Eu digo não a quem só sabe mandar
Eu digo não a quem vive a torturar
Eu digo não a quem mata para calar
Eu digo não à ditadura militar

(1987)
Letra: Rodolfo Pamplona Filho
Música: Rodolfo Pamplona Filho, Cedric Romano e Jorge Pigeard

terça-feira, 24 de março de 2020

O duplo

Alma Iluminada - "Haverá sempre a dualidade em voce, as... | Facebook




FERREIRA GULLAR


Foi-se formando
a meu lado
um outro
que é mais Gullar do que eu

que se apossou do que vi
do que fiz
do que era meu

e pelo país
flutua
livre da morte
e do morto

pelas ruas da cidade
vejo-o passar
com meu rosto

mas sem o peso
do corpo
que sou eu
culpado e pouco

segunda-feira, 23 de março de 2020

A Medida da Dor





Rodolfo Pamplona Filho



Eu não quero
ser insensível...
Eu não quero
desprezar a sua dor
Eu não pretendo
fazer competição de tristezas,
mas a dor do que se sente
é muito pior
do que a dor
do que se gostaria de sentir
e não se sente...


Salvador, 14 de maio de 2017. 

domingo, 22 de março de 2020

NOTURNO COM AR CONDICIONADO






Tédio - 7 curiosidades sobre esse estado de espírito deplorável

PAULO HENRIQUES BRITTO



O tédio infinito dos hotéis
de três estrelas, tardes que se estendem
em direção a noites povoadas

por dois ou três garçons indevassáveis
num bar onde nenhum turista húngaro
cochila diante da tevê autista

em que uma locutora silenciosa
exibe a três poltronas de pelúcia
duas fileiras de dentes de carnívora.