sábado, 25 de julho de 2020

(Re)Encontros Virtuais na Pandemia




Há tanto tempo
que eu não te via
que parecia
uma lembrança
de um mundo distante...
Mas, neste instante,
parece que foi ontem
que me despedi de nosso papo,
que disse até amanhã,
que marcamos uma saída,
que vivemos a nossa vida...
Um brinde ao reencontro,
ainda que virtual,
pois, em tantos desencontros
da quarentena presencial,
há a plena certeza
de uma única fortaleza:
sempre volta a alegria,
até mesmo na pandemia,
pois o isolamento é efetivo,
mas nunca precisará ser afetivo...

Salvador, 28 de junho de 2020.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Mãe






De terra a tua voz,
de terra os teus gestos,
de terra a tua bênção,
de terra a tua mágoa,
de terra os teus restos
agora enraizados:
árvore crescendo
às avessas - lá onde
tudo começa e finda:
no silêncio do sangue
que me dói ainda.

Poema de Adriano Espínola,
in: Praia provisória, 2006

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Arrogância na Pandemia







“Sabe com quem
você está falando?
Não entende bem
quem está no comando?”

Arrogância
Espírito mau
Petulância
Cara de pau
Dizer: não fiz nada!
Tripudiar
Dar carteirada
Humilhar
Ter a habilidade
de incomodar
autoridades
para livrar
a própria cara
e mandar colocar
no seu devido lugar
quem está
apenas a cumprir
o seu dever
de servir...

E toda essa empáfia
de desfazer do trabalho alheio:
Jogando as multas na cara
de quem mexeu no vespeiro
é somente para arrotar
a sua condição especial
de cidadão exemplar
que defende o social
e que, por isso, é vítima,
e não agressor...
em uma farsa ilegítima,
um verdadeiro complô,
envolvido em um esquema
decorrente do sistema
do que se joga no ventilador...

Salvador, 19 de julho de 2020.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Soneto





Há muito tempo, muito tempo mesmo,
sentisse uma tristeza ou uma alegria,
brotavam-me da pena, às tontas, a esmo,
rastros de poema, cacos de poesia...
É claro que nem tudo que me vinha
com maior ou menor facilidade,
ao fim e ao cabo, na verdade tinha
a mesma altura, a mesma qualidade.
Mas escrevia. Hoje, bem mais distante
ficou aquilo que era minha meta.
Somente a inspiração rara e inconstante
é que me diz que ainda sou poeta.
Já nem sei bem o que daria agora
para escrever poemas como outrora.

Soneto de Sânzio de Azevedo

terça-feira, 21 de julho de 2020

Crianças feridas





Crianças feridas
se reconhecem reciprocamente.
Encontros de sensibilidades
na carência de amor
e de reconhecimento.
Na precisão
do olhar do outro
com bons olhos.
No reconhecimento
não por ser brilhante,
mas por ser específico.
Ser visto com olhos normais
se limita ao senso comum;
os bons olhos veem
apenas o que é único.

Salvador, 12 de fevereiro de 2020

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Fui Eu







Fui eu esse menino que me espia
– melancólico olhar, sereno rosto,
postura fixa e o todo bem composto –
no retrato que o tempo desafia.

Fui eu na minha infância fugidia
de prazeres ingênuos, e o desgosto
de sentir tão efêmera a alegria
bem depressa mudada em seu oposto.

Fui eu, sim; mas o tempo que perpassa
e tudo altera nem sequer deixou
um grão de infância feito esmola escassa.

Fui eu; e da figura só ficou
o olhar desenganado na fumaça
em que a criança inteira se mudou.

abril 1998

(De Sentimento da Morte – 2003)

Poema de Fernando Py (1935-2020)

domingo, 19 de julho de 2020

Consulta




Consultar é uma atitude sofisticada
em uma relação a dois
Por vezes, a ação mais delicada
é dar nome aos bois.
Perguntar e esperar a resposta
é a prova definitiva
de que a opinião alheia Importa
e que o que se vai fazer
não é fruto de um só querer,
mas resultado de um conviver.

Salvador, 09 de abril de 2020.