quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Lembrança

 



Cláudia Barral


Te amo como a moça que arde em febre e não dorme

Por longos corredores desertos

Antes mesmo de te amar

Como a um filho

Como a um irmão

Como alguém partindo em breve

Como é o consentir

Como o momento em que acaba a missão de esperar

Como o sol nos pátios dos sanatórios, dos presídios e

            [entre rostos de vidro dos santos das catedrais

Como se sua voz fosse a luz

Como alguém que acabou de dar-se conta que é feito

                                              [somente de lembranças

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Sede de Viver

 



Rodolfo Pamplona Filho


Eu quero viver intensamente

como se fosse morrer de repente

sem nova chance, irremediavelmente...

Eu quero uma vida sem rotina

onde cada dia tenha a sina

de, do outro, ser diferente...


Eu quero nunca ficar sozinho,

mesmo que, alguns momentos,

eu precise estar só para pensar!

Eu quero dar atenção a todo elemento

que precisar de mim, para ajudar,

acreditando que, alguém, posso mudar!


Eu quero que minha mulher

seja simultânea mãe, parceira,

amante e companheira!

Eu quero acompanhar diariamente

o crescimento de meus filhos

e ser seu melhor amigo eternamente!


Eu quero colocar para fora

todos os sentimentos que guardo

no peito que trazem um gosto amargo!

Eu quero produzir tudo que outrora

programei, um dia, escrever,

plantar, compor, construir ou ler!


Eu quero me sentir desejado,

como nunca antes no passado,

e minha energia não sublimar...

Eu quero aprender a me vestir,

saber onde chegar e de onde vir

o que, com quem e como falar...


Eu quero fazer amor outra vez

com o desejo de quem nunca fez

e o conhecimento da experiência!

Eu quero chorar de felicidade

e sorrir na adversidade,

lutando pela sobrevivência!


Eu quero tudo isto e muito mais...

mesmo que digam que é olhar para trás,

eu não vou me importar,

pois tudo que der, eu vou fazer,

sem medo de tentar ou errar,

sem receio de me machucar,

na busca, finalmente, de saciar

minha recém-descoberta sede de viver.


Recife, 14 de janeiro de 2011.


segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Noite morta

 



Manuel Bandeira


Junto ao poste de iluminação

Os sapos engolem mosquitos.


Ninguém passa na estrada.

Nem um bêbado.


No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.

Sombras de todos os que passaram.

Os que ainda vivem e os que já morreram.


O córrego chora.

A voz da noite . . .


(Não desta noite, mas de outra maior.)


Petrópolis, 1921

domingo, 27 de novembro de 2022

Trava-Línguas

 



Rodolfo Pamplona Filho

Quando contar contos, conte quantos contos conta
e pergunte qual é o doce mais doce que o doce de batata-doce,
pois se o rato roeu a roupa do rei de roma
e o sabiá não sabia que a sabiá sabia assobiar;
se a aranha arranha a rã
e a gaivota, voando em volta, voava e virava de volta;
se o tempo perguntou pro tempo quanto tempo o tempo tem,
tendo o tempo respondido pro tempo que o tempo tem o todo tempo que o tempo tem;
se mesmo que três traças tracem três trajes sem trégua
e entreguem três pratos de trigo para três tigres tristes;
por que o único verdadeiro trava-línguas é Treblebes?

Salvador, 15 de agosto de 2010



sábado, 26 de novembro de 2022

Vaidade

 




Florbela Espanca



A um grande poeta de Portugal



Sonho que sou a Poetisa eleita,

Aquela que diz tudo e tudo sabe,

Que tem a inspiração pura e perfeita,

Que reúne num verso a imensidade !



Sonho que um verso meu tem claridade

Para encher todo o mundo ! E que deleita

Mesmo aqueles que morrem de saudade !

Mesmo os de alma profunda e insatisfeita !



Sonho que sou Alguém cá neste mundo ...

Aquela de saber vasto e profundo,

Aos pés de quem a Terra anda curvada !



E quando mais no céu eu vou sonhando,

E quando mais no alto ando voando,

Acordo do meu sonho ... E não sou nada! ...



Livro de mágoas (1919)


sexta-feira, 25 de novembro de 2022

On Every Street

 




Rodolfo Pamplona Filho


On Every Street

I can sleep

On Every Street

I can live

On Every Street

I can be myself


I don’t need a house

to have a shelter

I don’t need a job

to have a matter

I don’t need an office

to write a letter

I’d be a louse

if I can live better


I can take a shower with the rain

I can be everywhere without pain

I can survive without a home

but I don’t like to be alone

I don’t need money to be happy

I prefer to be poor than be a sadist

Homeless, Yes!

But Never Loveless...


quinta-feira, 24 de novembro de 2022

SONETO

 




Rubem Braga



E quando nós saímos era a Lua,

Era o vento caído e o mar sereno

Azul e cinza-azul anoitecendo

A tarde ruiva das amendoeiras.


E respiramos, livres das ardências

Do sol, que nos levara à sombra cauta

Tangidos pelo canto das cigarras

Dentro e fora de nós exasperadas.


Andamos em silêncio pela praia.

Nos corpos leves e lavados ia

O sentimento do prazer cumprido.


Se mágoa me ficou na despedida

Não fez mal que ficasse, nem doesse –

Era bem doce, perto das antigas.

(1947)

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

O Tempo é o Senhor da Razão

 



Rodolfo Pamplona Filho




Quantas vezes eu gostaria


de alterar a ordem do dia


e poder fazer de forma diferente


o que encontro no tempo presente.




Vejo como eu poderia encontrar alegria


onde, hoje, só vejo melancolia


e descobrir uma felicidade


que perdi pouco a pouco com a idade...




Será que é possível mudar


opções que fiz no caminhar


por não saber o que me esperava


ou o que na minha vida faltava...




Como eu poderia saber ou prever


que o destino reservaria novo prazer,


encontrando novo sentido no viver


e uma forma alternativa de ser...




Ainda terei coragem para novo desafio?


Ainda enfrentarei tudo com brio?


Conseguirei ser outro alguém?


Encontrarei um mundo além?




Dúvidas são uma constante


em uma mudança tão fulminante


e o receio não é uma temeridade


no encontro da essência de verdade!




Conheço o que já tenho e não é perfeito!


Sei o que quero e o que não mais aceito!


A esperança é o gás da Transformação


e o Tempo é o Senhor da Razão...




São Paulo, 20 de novembro de 2010.

terça-feira, 22 de novembro de 2022

RETROSPECTO

 




Humberto de Campos


 

Vinte e seis anos, trinta amores: trinta

vezes a alma de sonhos fatigada.

e, ao fim de tudo, como ao fim de cada

amor, a alma de amor sempre faminta!

 

Ó mocidade que foges! brada

aos  meus ouvidos teu futuro, e pinta

aos meus olhos mortais, com toda a tinta,

os remorsos da vida dissipada!

 

Derramo os olhos por mim mesmo... E, nesta

muda consulta ao coração cansado,

que é que vejo? que sinto?  que me resta?

 

Nada: ao fim do caminho percorrido,

o ódio de trinta vezes ter jurado

e o horror de trinta vezes ter mentido!

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Desespero

 




Rodolfo Pamplona Filho


Ninguém vai saber minhas intenções...

Ninguém vai saber minhas intenções...

...minhas intenções...


Onde é o seu lar?

Onde é o seu deserto?

Prefiro vagar

Sem destino certo

(desespero)

Ninguém vai sair daqui com vida!

Faça o que quer

Faça como quiser

Faça como puder


A vida é muito curta

E a dor é muito grande

Quando não se tem fé,

A paz é um sonho distante

Meus pés estão no chão,

Minha cabeça está na lua,

Minha família está na rua

E eu não sei o que fazer!

Um filho sem o pão

Um choro de criança

Faminta de esperança

Me faz enfrentar... a realidade!


Onde é o seu lar?

Onde é o seu deserto?

Não há saída!

Estou perdido!!!

“Meu Deus, o que fiz?”


Letra: Rodolfo Pamplona Filho

Música: Rodolfo Ramirez / Cedric Romano

(maio/1988)

domingo, 20 de novembro de 2022

Cinzas

 




Heitor Lima


    A última brasa ardeu na cinza adusta:

    Tudo passou, tudo se fez em poeira...

    E na minha alma, que o abandono assusta,

    Morre a luz da esperança derradeira.



    O amor mais casto, a aspiração mais justa

    Têm a desilusão para fronteira...

    Um momento de sonho às vezes custa

    O sacrifício da existência inteira!



    Chama efêmera, o amor! Baldado surto,

    A glória! Ah! coração mesquinho e raso...

    Ah! pensamento presumido e curto...



    E o amor, que arrasta, e a glória, que fascina,

    — Tudo se perderá no mesmo ocaso

    E se confundirá na mesma ruína.

sábado, 19 de novembro de 2022

Ônus da Prova

 




Rodolfo Pamplona Filho



O que se prova?

Tudo aquilo de que se quer

tirar uma efetiva consequência.

Quem tem de provar?

Todo aquele que pretende 

obter a resposta da providência

Para quem se prova?

Para aquele que pode decidir

o futuro da sua pretensão.

O que se prova?

O fato, o simples fato,

e não a sua convicção.

Como se prova?

Por todos os meios 

que a imaginação

e as regras do jogo

permitirem...

O que é a prova?

Pode ser a verdade

ou uma simples evidência,

desde que, por causa dela,

construa-se uma consciência.

Para o processo,

não existe diferença 

entre verdade e versão,

pressa e pressão,

surra ou sova.

Na loucura da decisão,

o que permite o juiz dormir 

não é a força do sonífero,

mas o desincumbir do ônus da prova.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Tântalos

 




Inácio Raposo


     Não pode ter de certo os olhos sempre enxutos


     Quem sofre qual, no Erebo, o Tântalo maldito:


     Sedento — vê debalde um córrego infinito;


     Faminto — vê debalde os floridos produtos!...



     Ante um castigo tal, que apiedava os brutos,


     Leve talvez pareça um bárbaro delito!...


     Foge sempre a torrente ao mísero precito


     E, se tenta comer, escapam-se-lhe os frutos!



     Há Tântalos também na vida transitória:


     Querem estes a lympha e os pomos do talento,


     E morrem no hospital para viver na história.



     Desditosos que são... no malogrado intento!...


     Longe de haverem ganho os loiros da vitória,


     Encontram no sepulcro o eterno esquecimento!

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Eu digo não!

 




Rodolfo Pamplona Filho


Eu digo não a quem faz corrupção

Eu digo não a quem aumenta o feijão

Eu digo não a quem faz parte do Centrão

Eu digo não a político ladrão

Eu digo não a quem faz nada no Senado

Eu digo não a seu nobre Deputado

Eu digo não ao governador do Estado

Eu digo não a quem põe povo de lado

Eu digo não à União Ruralista

Eu digo não ao Partido Comunista

Eu digo não ao homem do decreto-lei

Eu digo não ao presidente José Sarney


Eu digo não à perda da inocência

Eu digo não a viver em violência

Eu digo não ao rombo da previdência

Eu digo não a esta falta de decência

Eu digo não a quem só sabe mandar

Eu digo não a quem vive a torturar

Eu digo não a quem mata para calar

Eu digo não à ditadura militar


(1987)

Letra: Rodolfo Pamplona Filho

Música: Rodolfo Pamplona Filho, Cedric Romano e Jorge Pigeard


quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Tietê

 



Ieda Estergilda


No caldo grosso do rio

derramei lágrimas de tristeza e mágoa

pela águas urbanas, paulistanas, devastadas.

Ontem peixes e barcos, hoje leito fedido

na capital

esse rio vive além da lama

dos cadáveres encalhados

dos esgotos que desembocam nele

esse rio em que acredito

pois salvar é coisa dos homens

mesmo que tarde.


Um rio

é uma beleza, um ser

o Tietê é uma beleza ferida

uma ferida que brilha

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Pagar o Pato

 




Rodolfo Pamplona Filho

Pagar o pato 

é uma expressão popular 

na língua portuguesa, 

utilizada no sentido de

 "levar a culpa por algo" 

ou arcar com as consequências 

de determinada situação 

provocada por outra pessoa.



Ser o pato 

é outra expressão 

utilizada para dizer 

que uma pessoa é boba, 

ingênua ou sem coragem. 

Outro uso de "pato" 

é pra falar de alguém 

que seja muito fraca em algo, 

alguém que sempre perde.



Coitado do pato...

É preciso resgatar 

o pato do ostracismo

e promover a sua redenção...

Em épocas de negacionismos

ou de históricos revisionismos,

fica a singela sugestão...



Salvador, 07 de dezembro de 2020.
Política, Revolta, Sociedade






segunda-feira, 14 de novembro de 2022

O sítio

 



André Carvalheira



Em cada canto da casa,


teu cheiro felino


Em tudo reluz


Nas folhas, teus cabelos embaraçam


No vento, teu som-só sopra prazeres


N'água, teu corpo escorre segredos


Nas pedras, teus pés nus-húmidos gozam


Em cada canto de mim, teu cheiro felino


Em tudo reluz

domingo, 13 de novembro de 2022

Caça às Bruxas

 



Rodolfo Pamplona Filho


Começam queimando livros 


para, depois, queimar pessoas...


Qualquer sinal de divergência 


é duramente repelido


como se a inteligência 


fosse um pecado a ser punido...


Na cabeça dos inquisidores,


é impossível a reflexão,


pois, no universo de seus humores,


não há espaço para a oposição.




Salvador, 01 de fevereiro de 2021.

sábado, 12 de novembro de 2022

As coisas, de Jorge Luis Borges

 





A bengala, as moedas, o chaveiro,

A dócil fechadura, as tardias

Notas que não lerão os poucos dias

Que me restam, os naipes e o tabuleiro.

Um livro e em suas páginas  a desvanecida

Violeta, monumento de uma tarde

Sem dúvida inesquecível e já esquecida,

O rubro espelho ocidental em que arde

Uma ilusória aurora. Quantas coisas,

Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,

Nos servem como tácitos escravos,

Cegas e estranhamente sigilosas!

Durarão para além de nosso esquecimento;

Nunca saberão que  partimos em um momento.


Jorge Luis Borges  (Obras Completas Volume II-página  394)

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

A louca

 



Augusto dos Anjos


A Dias Paredes


Quando ela passa: - a veste desgrenhada,

O cabelo revolto em desalinho,

No seu olhar feroz eu adivinho

O mistério da dor que a traz penada.


Moça, tão moça e já desventurada;

Da desdita ferida pelo espinho,

Vai morta em vida assim pelo caminho,

No sudário de mágoa sepultada.


Eu sei a sua história. - Em seu passado

Houve um drama d’amor misterioso

- O segredo d’um peito torturado -


E hoje, para guardar a mágoa oculta,

Canta, soluça - coração saudoso,

Chora, gargalha, a desgraçada estulta.