Nadezha Petrovna e os pássaros da estação de
trem.
Foto:
Cláudia Reina.
 Nadezha Petrovna e os pássaros da estação de
trem.
  Ao  Liev
Tolstói
                                                                                                                                                         
      A nevasca
irrompera. Os flocos de neve perolados cintilavam ao encontro da luz pálida das
lamparinas nos  altos postes. Os lampiões
atenuavam a escuridão das ruas vazias. A noite sem lua avançava com rapidez  invernal.
     Konstantin
Vladimirovitch, sentado em sua poltrona de leitura,
acarinhava Putchkin, um gato cinza e sonolento que ressonava em seu colo.  As cortinas abertas permitiam a  contemplação da neve que escorria nas
vidraças, com seus cristais fulgurantes como se houvessem, os cristais, sorvido
a luz das estrelas ausentes, e estivessem devolvendo-a agora,  presenteando o céu sombrio. A neve irradiando
nas janelas e o crepitar das chamas na lareira,  intensificava  a memória daquela tarde gélida  em que partira no trem de Moscou para São Petersburgo.
    Foi
no vagão-restaurante que a vira pela primeira vez. Nadezhda Petrovna tocava o samovar como se pudesse sorver
o calor para o delicado corpo. A tez alva avivada pelos  lábios vermelho-sangue e grandes olhos verdes emoldurados
por sobrancelhas bem definidas. Os cabelos castanhos presos em coque, deixavam
a mostra  o pescoço esguio e o colo bem
definido. Os lábios rubros e os olhos vivos contrariavam o austero vestido azul
marinho. Nos contrastes, ele percebeu a inquietude dessa bela mulher. Konstantin
dava atenção aos detalhes desapercebidos pela maioria. Cordato, ele se tornou,
de repente, atraído pelo perigo. A ameaça do desconhecido que sempre o
amedrontara, acenava. O caráter sedutor  
do acaso realçava o seu cotidiano invariável. 
      Konstantin pensava como facilmente  poderia  esquecer dos sentidos. Todos tinham que morrer
um dia, por que não viver o agora? Queria ser acariciado tal qual os amantes
apaixonados. Não mais importava a falsidade à sua volta. Cansara das máscaras usadas
nos julgamentos. Ser adulado, tão só pelo que podia ofertar o seu cargo, e não
como um homem eivado de falibilidades e renúncias, enfadava-o , em vez de
envaidecê-lo. Há muito   pagara  pela alegria da ambição. Uma  recordação dolorosa invadiu o seu pensamento.
Quando Valentin Makárovitch, presidente da Corte, tivera uma doença terminal. A
aparência definhada e decadente  do
magistrado causada pela enfermidade, difundia temor aos demais. A figura do
Poder vencido pela fragilidade humana. E, tão logo, morto, enterrado e
terminada a cerimônia fúnebre, o interesse velado, era quem assumiria a vaga
aberta. As sombras daqueles homens em volta da sepultura de Valentin,
causavam-lhe náuseas. 
     Não
queria ser como aqueles que sem o Poder nada mais lhes sobra. Visivelmente
perturbado, percebera como sacrificara a vida. A esposa, após tantos anos,
ainda reverenciava autoridades e frequentava todas as recepções. O farfalhar
das sedas e a desilusão dos rostos empoados. Tudo era  tão previsível. As regras burocráticas e os protocolos
o esmagavam como rochas desmoronadas sobre um corpo são. Que importância
descomunal tinha o seu cargo para que pudesse convencê-lo a morrer lentamente a
cada dia? E se a sua existência não passasse de uma grande palco  que criara para dar vida ao seu papel oficial?
Vivenciava o conflito que tanto evitara em 
nome das instituições  que o    enraizavam. 
     Tomou
consciência de sua existência estreita e pesada. As muralhas que antes o
protegiam, agora o sufocavam. A mulher de olhos verdes  desafiava os muros de pedras palacianas que o
cercavam.
     Nadezhda Petrovna também o observava,
enquanto   bebia  o chá escaldante. Gostara da aparência
elegante desse homem discreto. O terno preto bem talhado. O nó alinhado da gravata.
Os sapatos lustrados. Olhar firme. Nariz reto. Lábios finos. A aproximação iniciou  entre eles uma conversa agradável. Ele contou
ser magistrado do Tribunal de Apelação; noutros tempos estudara música
clássica. Tinha duas filhas. Viajava para um congresso jurídico.  Narrou nas entrelinhas das palavras não
ditas, o trabalho ser o anestésico dos desejos encobertos.  
     Ela o 
mirava com  olhos compreensivos..
Algo nele despertava ternura. A ausência de vida. Pulsante.Quis  abraçá-lo. Conteve-se. 
     Por sua vez, Konstantin soube que ela era professora
universitária de literatura russa. Ia  celebrar
o nascimento de Dmítre, seu esperado sobrinho. Viúva precocemente, não tinha
filhos. Possuía três gatos: Tolstói, preto com brilhantes olhos amarelos, arisco
e desconfiado. Somente permitia ser afagado quando quisesse; Dostoiévski, mesclado
de preto e branco tinha argutos olhos verdes, e, mostrava-se impaciente, guloso
e asmático.  Tchekhov, sensível  e alegre, era branco com delicados olhos azuis.
Encontrou os três, ainda filhotes, abandonados no parque Iskussitv onde
costumava caminhar. Confessou ponderar com os felinos sobre as críticas literárias
que escrevia. Tinha a nítida impressão que eles compreendiam, pois balançavam
levemente os rabos e as orelhas ficavam bem em pé. Disse, gracejando, adorar a
gradação sincrônica do preto e do branco em seus bichanos. Konstantin soube ter
se apaixonado quando ela gargalhou sem pudor. De si mesma. Havia nela algo  deixado pela juventude inexperiente. Não
estava conspurcada pela corrupção do caráter, pela devassidão dos jogadores
imperturbáveis. 
     Conversavam
indiferentes ao tempo e ao que falar. Os assuntos se embaralhavam desordenados.
Falavam como seres libertos .  
     Recordavam
o verão, quando os campos e as florestas, livres das geadas e da neve,  resplandeciam. Os arvoredos seculares. Os juníperos  milenares  ao crescerem lentamente .  O  vigor  dos abetos. A resistência dos  lariços. A beleza das bétulas com sua casca
branca e prateada, e as folhas ovais verde-claras. Ele também havia sido
criança. Sonhara. Estendera-se sobre a relva. Gostara de ir à floresta. Colher
cogumelos. Se não podia resgatar a inocência, ao menos buscaria a satisfação
das sensações e dos sentidos soterrados.
     Ela disse gostar tanto do pão de mel de Tula
que lá esteve para conhecer o  museu
destinado à guloseima. Ele preferia um saboroso medovik para acompanhar o café nos intervalos
entre as sessões do Tribunal. 
     Os
campos nevados avançavam pelas janelas do vagão. Sobre as planícies
grisalhas   filetes de terra escura
formavam estranhos  desenhos. Os
salgueiros e as bétulas desfolhadas se contorciam, atormentados pelas rajadas
de fortes ventos.  Os pinheiros
embranquecidos, elevavam-se como torres. Em algumas aldeias,  casas 
à  margem da ferrovia  emolduravam a paisagem com   luzinhas acesas e chaminés. As cúpulas  douradas, azuis com estrelas  e verdes das catedrais ortodoxas, sobrepunham-se
ao céu abrumado. A simbologia dos templos.  A luta do bem contra o mal .
     Surpreenderam-se
quando anunciaram a última estação. Sentiram o frio cortante ao abandonarem o trem.
O
piso descoberto da plataforma estava nevado. Caminharam pelos extensos corredores, lado a lado. Assombraram-se ao ver dois
pássaros voando sobre os tetos da estação, sem se importarem com o ar glacial  e o céu plúmbeo.  
     O
voejar dos pássaros era como um alerta para não deixá-la  partir.  Não poderia destruir a chance que o acaso lhe
deu. Sentia-se vivo. Vivo! Lutava contra os sentimentos. Mas sabia que toda
resistência  era  inútil.  
     Um
silêncio tomou conta dos dois, um silêncio em que nenhum cristal de gelo se atrevia
a  estilhaçar.
      Por
momentos, a surda desesperança bateu nele. Numa resignação desesperada. A
ausência de coragem em pedir que ela não partisse. Não se perdesse na multidão
aglomerada das plataformas. 
       De
repente, percebeu  que Nadezhda estava ao
seu lado fitando os pássaros.  
Cláudia Reina.
25 de julho de
2013.