sábado, 17 de setembro de 2016

Televisão para dois


Fernando Sabino

Ao chegar ele via uma luz que se coava por baixo da porta para o corredor às escuras. Era enfiar a chave na fechadura e a luz se apagava. Na sala, punha a mão na televisão, só para se certificar: quente, como desconfiava. Às vezes ainda pressentia movimento na cozinha:
- Etelvina, é você?
A preta aparecia, esfregando os olhos:
- Ouvi o senhor chegar... Quer um cafezinho?
Um dia ele abriu o jogo:-Se você quiser ver televisão quando eu não estou em casa, pode ver à vontade.
-Não precisa não, doutor. Não gosto de televisão.
- E eu muito menos.
Solteirão, morando sozinho, pouco parava em casa. A pobre da cozinheira metida lá no seu quarto o dia inteiro, sozinha também, sem ter muito que fazer...Mas a verdade é que ele curtia o seu futebolzinho aos domingos, o noticiário todas as noites e mesmo um ou outro capítulo da novela, "só para fazer sono", como costumava dizer:
- Tenho horror de televisão.
Um dia Etelvina acabou concordando:
- Já que o senhor não se incomoda... 
Não sabia que ia se arrepender tão cedo: ao chegar da rua, a luz azulada sob a porta já não se apagava quando introduzia a chave na fechadura. A princípio ela ainda se erguia da ponta do sofá onde ousava se sentar muito erecta:
- Quer que eu desligue, doutor?
Com o tempo, ela foi deixando de se incomodar quando o patrão entrava, mal percebia a sua chegada. E ele ia se refugiar no quarto, a que se reduzira seu espaço útil dentro de casa. Se precisava vir até a sala para apanhar um livro, mal ousava acender a luz:
- Com licença... 
Nem ao menos tinha mais liberdade de circular pelo apartamento em trajes menores, que era o que lhe restava de comodidade, na solidão em que vivia: a cozinheira lá na sala a noite toda, olhos pregados na televisão. Pouco a pouco ela se punha cada vez mais à vontade, já derreada no sofá, e se dando mesmo ao direito de só servir o jantar depois da novela das oito. Às vezes ele vinha para casa mais cedo, especialmente para ver determinado programa que lhe haviam recomendado, ficava sem jeito de estar ali olhando ao lado dela, sentados os dois como amiguinhos. Muito menos ousaria perturbá-la, mudando o canal, se o que lhe interessava estivesse sendo mostrado em outra estação.A solução do problema lhe surgiu um dia, quando alguém, muito espantado que ele não tivesse televisão em cores, sugeriu-lhe que comprasse uma:
- Etelvina, pode levar essa televisão lá para o seu quarto, que hoje vai chegar outra para mim.
- Não precisava, doutor - disse ela, mostrando os dentes, toda feliz:.
Ele passou a ver tranquilamente o que quisesse na sua sala, em cores, e, o que era melhor, de cuecas -quando não inteiramente nu, se bem o desejasse. Até que uma noite teve a surpresa de ver a luz por debaixo da porta, ao chegar. Nem bem entrara e já não havia ninguém na sala, como antes - a televisão ainda quente. Foi à cozinha a pretexto de beber um copo d'água, esticou um olho lá para o quarto na área: a luz azulada, a preta entretida com a televisão certamente recém-ligada.
- Não pensa que me engana, minha velha - resmungou ele.
Aquilo se repetiu algumas vezes, antes que ele resolvesse acabar com o abuso: afinal, ela já tinha a dela,que diabo. Entrou uma noite de supetão e flagrou a cozinheira às gargalhadas com um programa humorístico.
- Qual é, Etelvina? A sua quebrou?
Ela não teve jeito senão confessar, com um sorriso encabulado:
- Colorido é tão mais bonito...
Desde então a dúvida se instalou no seu espírito: não sabe se despede a empregada, se lhe confia o novo aparelho e traz de volta para a sala o antigo, se deixa que ela assista a seu lado aos programas em cores.Oque significa praticamente casar-se com ela, pois, segundo a mais nova concepção de casamento, a verdadeira felicidade conjugal consiste em ver televisão a dois.


SABINO, Fernando. A falta que ela me faz. 9.ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1923.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

De repente, você...


Rodolfo Pamplona Filho

Sua mão me fez buscar o caminho
que há muito procurei
nos seus olhos, notei o cantinho
que há muito desejei

A vida me deu rasteiras
que eu nunca esperei.
mas o céu não limitou o espaço
que eu sempre acreditei

Assim. construí minha vida.
caminhando com sensatez
e, de repente, você aparece
como nunca imaginei...

San Francisco, 30 de setembro de 2010.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Saudades



Florbela Espanca

Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?...
Se o sonho foi tão alto e forte
Que pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais decididamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais saudade andasse presa a mim!

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Sempre estarei aqui...



Rodolfo Pamplona Filho

Sempre estarei aqui...
mesmo que nosso futuro seja incerto,
talvez sem ver a chuva cair
ou sem lugar para dormir

Sempre estarei aqui...
mesmo quando tivermos que fugir
e esperar que a vida
possa novamente nos reunir

Sempre estarei aqui...
mesmo que os olhos nunca mais se cruzem
que nossos lábios não se juntem
e que a vida trate de cumprir
o inevitável momento do partir.

Sempre estarei aqui...
mesmo que não receba o seu OK
mesmo que o mundo mude sua lei
mesmo que o destino nos afaste de uma vez...

Sempre estarei aqui...
mesmo quando não haja pôr-do-sol
mesmo quando não vejamos o amanhecer
mesmo quando o mundo me tomar você...

Sempre estarei aqui...
ainda que tudo conspire
para que a gente se separe,
meu amor não quer que acabe...

Sempre estarei aqui...
em toda e qualquer ocasião,
em que possa ter a sua atenção
para me entregar na mais louca sensação...

Sempre estarei aqui...
mesmo que você deixe de me amar...
mesmo que você nunca mais queira me ver...
eu nunca descumprirei a promessa
de viver eternamente para seu prazer.

Salvador, 10 de outubro de 2010.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Brisa


Manuel Bandeira

Vamos viver no Nordeste, Anarina.
Deixarei aqui meus amigos, meus livros, minhas riquezas, minha vergonha.
Deixaras aqui tua filha, tua avó, teu marido, teu amante.

Aqui faz muito calor.
No Nordeste faz calor também.
Mas lá tem brisa:
Vamos viver de brisa, Anarina.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Refazendo a História



Rodolfo Pamplona Filho 
Zuckember​
é Gutemberg ​
A internet​
é a imprensa​
O fundamentalismo​
é o nazismo​
O feminismo ​
é o comunismo
Michael Jackson​
é Elvis Presley​
Câncer ​
é a tuberculose ​
Alzheimer​
é a lepra ​
Ser branco​
é ser judeu
Steve Jobs​
é Karl Marx​
Honestidade ​
é virtude​
Deus​
é o dinheiro​
O anticristo ​
é o próximo.

Sábado, 20 de agosto de 2016,  literalmente no voo para São Paulo.

domingo, 11 de setembro de 2016

Vilarejo



Marisa Monte

Há um vilarejo ali
Onde areja um vento bom
Na varanda, quem descansa
Vê o horizonte deitar no chão

Pra acalmar o coração
Lá o mundo tem razão
Terra de heróis, lares de mãe
Paraíso se mudou para lá
Por cima das casas, cal
Frutas em qualquer quintal
Peitos fartos, filhos fortes
Sonhos semeando o mundo real

Toda gente cabe lá
Palestina, Xangri-Lá
Vem andar e voa
Vem andar e voa
Vem andar e voa

Lá o tempo espera
Lá é primavera
Portas e janelas ficam sempre abertas
Pra sorte entrar

Em todas as mesas, pão
Flores enfeitando
Os caminhos, os vestidos, os destinos
E essa canção
Tem um verdadeiro amor
Para quando você for