terça-feira, 18 de março de 2014

ALZHEIMER


ALZHEIMER
* Por MMendes

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Olhando aquele corpo moribundo de boca murcha e desdentada, tentando morder a própria língua, não há como imaginar que já foi cobiçado pelos homens e invejado pelas mulheres. O brilho de seus olhos azuis flamejantes é a única expressão de comunicação. Não anda, não fala, não gesticula, não se alimenta sozinha. Parece que sua alma está deixando o corpo aos poucos. Seu punho fechado e os músculos do antebraço contraídos, parecem ter-se agarrado à vida com medo dela se desprender. Seus pés possuem movimentos involuntários, como que flutuando no ar. Foram amarrados à cama, talvez na tentativa de mantê-la presa à terra.

A enfermeira senta-se a beira de sua cama e lê um trecho de um livro qualquer. Mas, o olhar de Elza se perde no infinito, como quem está com o pensamento muito longe. Talvez buscando uma saída do labirinto em que se encontra, feito pelos corredores de vazios criados pelo desfibrar de sua rede neural. De vez em quando parece encontrar uma saída fazendo foco em alguém. Nesse momento seus olhos fazem água, sua boca treme e um murmúrio rouco rompe a garganta, como se pedisse socorro. Instantes depois, perde novamente a sintonia como que abduzida para o vazio de sua mente.

Seu olhar perpassa os corpos das pessoas, menos o da enfermeira e do marido. Estabelecem conversa pela flutuação do brilho dos olhos. É como um código morse de luzes intermitentes que só eles entendem. Penso que seja um código de amor que só os enamorados conseguem decifrar. O marido cuida de seu corpo, como os embalsamadores preparavam os corpos dos faraós para a eternidade, na esperança de que, depois de terem vencido a morte, retornassem a vida em algum momento. Pede que a enfermeira pinte cuidadosamente suas unhas de vermelho e que deixe suas sobrancelhas finas e arqueadas, retirando o excesso de pelos, como Elza gostava. Também não descuida de mudar sua posição no colchão de água, para que não forme escaras. Ao menor sinal de febre ou expressão de dor, socorre-se do médico da família que a visita semanalmente.

As memórias de Elza se vão como luzes de apartamentos de um edifício apagando-se uma após a outra, até que fique em total escuridão. A evolução da doença sugere que esse apagão segue uma ordem. No início o paciente esquece algumas palavras ou deixa pensamentos inacabados. Passa a esquecer fatos antigos e recentes. A medida em vai progredindo, o portador do mal de Alzheimer se esquece do tempo, se esquece de falar, se esquece dos familiares e por fim, se esquece de comer, de beber, de ir ao banheiro e no final, de viver.

Os médicos dizem que ainda não se descobriu a causa da doença e portanto não tem tratamento. Acho que Elza contraiu essa doença da própria história e do próprio tempo. A vida de cada um de nós é como um neurônio da história e poucas pessoas conseguem ser lembradas. A maioria morre e não deixa nenhum lembrança ou marca. Ao morrer toda aquela vida se apaga, tal qual ocorre no cérebro de Elza por causa do Alzheimer. Quem se lembra quem foi seu antepassado da 10a. geração? E da 5a. geração? Um grande número de pessoas não sabe nada sobre seus avós, quem foram, de onde vieram, o que fizeram. O povo não guarda na memória as mazelas dos políticos. Também os heróis e os artistas descansam esquecidos. Somos um povo sem memória, somos uma nação com Alzheimer.

A vida é um elo entre extremos. Nascimento e morte, bem e mal, certo e errado. Como a vida não se posiciona nos extremos, mas antes é o elo entre eles, tudo que é ruim tem um lado bom e o que é bom, revela seu lado ruim.

Quando detinha alguma capacidade motora, um dos primeiros testes em que reprovou foi o de desenhar um relógio. Se esquecia de colocar os ponteiros. Isso significa que a consciência de Elza perdia noção de tempo. Sem passado, nem presente e nem futuro, presa no limbo entre o infinito primordial e o terminal. Antes da doença era metódica, muito responsável e cheia de obrigações. Acordava logo de manhãzinha pegava seu material de trabalho e ia para a escola dar aulas. Tinha uma carga horária extensa, umas 15 horas de trabalho por dia. Só parava tarde da noite. Para quem não tinha tempo para nada, o tempo agora não tem mais ponteiros. Elza que sempre foi uma pessoa apegada a compromissos, finalmente se livrou deles.

Quando, ainda, sabia falar, já havia se esquecido da relação de parentesco. Uma vez foi perguntada que parentesco teria com sua irmã Marleide. Não se lembrava. Procuraram relembrá-la, então ela disse: “- Ah! É minha irmã!”. Logo em seguida questionaram sobre o parentesco com o marido e ela disse: “-É meu irmão também”. Elza era filha de pais separados e nutria uma profunda mágoa do pai por causa da separação. Finalmente a doença a fez esquecer do parentesco e com isso, acho eu, apagou suas mágoas para sempre. Evidentemente, devido a natureza da doença, no lugar da mágoa ficou um vazio que não foi preenchido. Também haviam desaparecido as paixões carnais subsistindo, entretanto, o mais puro amor pelo marido, que era fraternal.

Elza vive presa numa fração de tempo infinito. Podemos ver em seu olhar o desejo de viver e a luta que trava contra a morte. A única janela acesa no edifício cerebral de Elza é a janela do amor. O amor é a pedra fundamental onde é edificado tudo o que somos e, por isso, é a última coisa a se apagar no cérebro humano.

Benedito Spinosa, filósofo holandês, ensina que o “homem livre não pensa em nada a não ser na morte; e a sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a vida”. Pensar a morte, por mais paradoxal que seja, é o que dá sentido à vida. Aquele que encara a morte, corre para a vida. Elza descobriu, enfim, o sentido da vida.


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