segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A cidade

Myriam Fraga





Foi plantada no mar
E entre corais se levanta.
O salitre é seu ar, 
Sua coroa, sua trança
de salsugem, 
Seu vestido de ametista, 
Seu manto de sal
E musgo.


Armada em firme silêncio
Dependura-se dos montes
E tão precário equilíbrio
Se propõe
Que além da porta ou portada, 
De janela ou de horizonte, 
O que a sustenta é o mistério, 
Triste chão, sombra vazia, 
Tempo escorrendo das pedras, 
Lacerado nas esquinas, 
Tempo — sudário e guia.




Mas que fera (ou animal)
Esta cidade antiga
Com sua densa pupila
Espreitando entre torres, 
Seu hálito de concha
A babujar segredos, 
Deitada entre os meus pés, 
Minha cadela e amiga.


Repete esta dureza
Este arfar entre dentes, 
Seu pulmão de basalto
Onde a morte respira.
E nas sombras da tarde
Em sangue no poente, 
Abre os olhos sem pálpebras
E dança. Em maresia
E estrelas afogada.


E nesta coreografia, 
Sopro de antigas paisagens
Um calendário se arrasta, 
Nas corroídas legendas
Apodrecidas fachadas
A mastigar as divisas
E outros símbolos manchados, 
Nos brasões onde goteja
O limo do esquecimento.


Não fosse a imaginada
Profecia, face e apelo
Das inscrições lapidares
Palimpsesto ou astrolábio
Na pedra, na cal, nos muros, 
Fendida casca de um mundo
Coagulado em memórias.


Restavam ossos e nomes, 
Desassistida batalha
Contra o tempo. E esta cidade, 
Com seu signo, seu quadrante
De cristal, 
Sua mensagem de calcário, 
Desfeita em vaga o soluço, 
Mergulharia no espaço
Pássaro alado, albergália.

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