O Alvorecer das Formas
O espetáculo avermelhado do crepúsculo. Ao longe, a curva quase reta do
horizonte. Os homens. As mulheres. Aquele ser inventado, ora no chão, ora no
ar, às vezes em lugar nenhum e outras, em todos os lugares. Imaginação. A rosa
rubra, logo enegrecida, mas, por essas coisas da reinvenção, rejuvenescida a
cada amanhecer, nas alvoradas saltitantes dos altiplanos.
Lá se vai, em busca de outras paragens, o homem que
mira o horizonte, com o seu lápis e com o seu papel. O pensamento imerso na
sabedoria aprendida a cada dia, na observação dos camaradas, na amizade, no
amor, no destino e nos desatinos. No papel, curvas e retas. Horizontes. Belos
horizontes. O suor dos homens: martelos a construírem o mundo sobre o mundo,
sobre o natural. E, por dentro, aquela louca vontade de reinventar cada
invento.
Os ventos benfazejos do distante. Andanças. Meio
adulto e meio criança, a brincar com os desenhos. Forma e espaço, música e
silêncio. Ele a perambular por vales e mares, a cortar, afoito, os ares.
Separar quadrantes. Por ele,
estreitam-se os continentes. O homem, a sina, ensina e aprende. Entende-se com
a natureza e a transforma: luzes, formas e sonhos.
No alvorecer, o homem se esquece do crepúsculo de
ontem, fixa-se no
porvir, no futuro do presente, e presenteia. Mas também se apresenta a
quem quiser ouvir e, para ouvi-lo, são desnecessários ouvidos, basta o olhar,
ou um simples passar de mãos, uma respiração mais profunda qualquer.
Ele e o caminho. Estradeiro, abre os espaços, conta os
passos, um a um, que lhe separam do ideário. Ele segue a conversar com homens e
bichos. Às vezes, um olhar para o passado lhe escapa, vem a noção da entrega e
também a louca vontade de refazer, repensar os símbolos nascentes das formas,
embora saiba, como os poetas, não lhe pertencer o que provoca, cabendo a cada um dos viventes
sentir como mais lhe for aprazível.
Senhor ou escravo dos traços? Talvez se confundam
homem e formas. É possível que ele mesmo não perceba o jugo ou, humilde, não dê
valor ao senhorio. O certo é que o andarilho das retas e das curvas, mestre dos
templos alheios, segue o caminho, em direção ao poente rubro da paixão, a
procurar a rosa do sorriso. E segue.
Ao vê-lo em sua lida, é impossível se negar
bem-querença ao carpinteiro-chefe, ao archetector, ao artista dos
espaços, do construir de um nada o que é tudo, muito tudo.
Adivinhar seus próximos passos é missão temerária. Em
torno do homem do papel e do lápis, dissolvem-se crenças e viceja o trabalho
fecundado.
Quando resolvi segui-lo, surpreendi-me com a destreza
que me era pouca. Subir em torres de argamassa, arremessar-me, tal qual um
surfista louco, pelas retas e curvas das formas seria missão impossível.
Entretanto, isento de qualquer fadiga, segui o homem do lápis e do papel, certo
de sua firmeza de timoneiro e o cansaço se esvaiu, como que por encanto. Com
ele, naveguei pelos lagos dos espelhos d'água, subi e desci rampas, voei em
discos-flores e sorri com os olhos marejados.
Um belo dia, pensei em imitá-lo. Tremeram-me o peito e
as mãos mal produtoras de riscos. Nem retas e nem curvas. Nada que se
aproximasse do traço do guia. Eu com o meu vazio; ele com o seu espaço. Meus
sonhos se amiudaram diante daqueles idealizados pelo homem do lápis e do papel.
Mas mais queria saber. Continuei a segui-lo. Com ele, atravessei fronteiras e
acreditei no equilíbrio. Certa vez, porém, pesaram-me as pernas trôpegas e caí,
de corpo e alma. Eu quedo ao chão; ele a seguir avante, sempre.
Ao desistir do caminho, pude vê-lo vida afora e
percebi que ele não era um mago. Sofria perdas e, algumas vezes, derrotas. Um
homem e só, a seguir, com passos lentos, mas definitivos, na centenária busca
da púrpura do ocaso, a fim de transformá-la, a cada dia, no carmesim do
amanhecer.
Aos poucos, restava-me a visão da silhueta de encontro
ao horizonte e a certeza de que o homem dos traços ensinou-me que retas e
curvas podem ser iguais aos justos e puros, aos que acreditam na beleza e na
amizade.
Jairo Vianna Ramos <jaberamos@msn.com>