sábado, 9 de julho de 2011

Explosão


Explosão


Joguei pela janela os autos da reclamação. Acho que está se desenhado um quadro maníaco-obsessivo. Instruções, audiências; verdades e mentiras, em doses homeopáticas: quatro palavras desta e três daquela. Tanto trabalho, tanta gente, tanto calor. Os corredores repletos de gente ávida por Justiça. As prateleiras entupidas de processos. Advogados, servidores, telefone, cobrança, dívidas... Levei as mãos à boca e gritei: CHEGA!!!!
 - Doutor? Tudo bem?
Era voz feminina, mas não quis saber de quem era o espanto.
Retornei para casa. 9h30 da manhã. Paletó e gravata no sofá; chutei os sapatos na parede. Enquanto tirava a calça, escutei a voz da empregada que conversava ao celular. Fui para o quarto, liguei o condicionador de ar. 18 graus centígrados. Tirei a roupa e, sem vergonha nenhuma, fechei os olhos. Sequer pensei como estaria a Vara e os servidores. Esqueci-me, completamente, do valor social do trabalho e do significado da pacificação social. Estava puto, pelado e começava a sentir frio. Desliguei o telefone do quarto e percebi que o celular não estava comigo. Talvez flutuasse pela janela do fórum junto à reclamação. Naquela hora, provavelmente, a gravidade da Terra (e do fato) determinara a inércia dos objetos. Papéis e celulares, quando jogados das janelas, repousam no mesmo e sólido chão. A gravidade é indiscutível. Insolúvel.
A boca retinha um gosto amargo. Os ouvidos escutavam um agudo e interminável zumbido. Angustiante. As pálpebras cerraram os olhos. Não sentia cheiro algum. O lençol fora retirado da cama e o velho colchão, áspero e rugoso, com suas manchas indecifráveis das noites eternas, ficou impotente e imóvel com o peso do meu corpo e da minha loucura. O grito que espantou a todos, inclusive as inconfessáveis paredes da sala de audiência, foi minha última manifestação oral. Gutural e peremptória.
À medida que a pulsação cardíaca diminuía, os músculos das pálpebras relaxavam. Dormi, assim, platonicamente. Alguém me cobriu. Não sei se foi a empregada ou a minha mulher. Naquele momento, nada existia ao meu redor; nada havia em minhas entranhas; nada havia no exterior de meu quarto, domicílio de meu delírio matinal.
Tive um pesadelo horrível. Sonhei que perdera os sentidos. Todos ao mesmo tempo, com exceção do tato. Fiquei desesperado ao perceber que a minha visão tão peculiar do mundo não poderia ser compartilhada com mais ninguém, nem comigo. Nada escutava e o paladar continuava amargo. Ao otimista, o amargor de minha boca poderia ser ainda resquício da permanência de alguma sensibilidade sensorial. Amarga, mas sensível. O zumbido silenciara-se e a sensação era sombria. Sentia frio, vento e umidade. Caminhava lentamente por um chão sem deformações e, num átimo, pensei que caminhava em lugar desconhecido. Começou a incomodar-me a percepção de que estava sem sentidos, paradoxalmente. Sentidos ausentes, percepção aguçada. A umidade do ar, gradativamente, diminuía sua interferência em minha pele. Durante a lenta caminhada onírica, encontrava paredes, muitas paredes. Tentava me deslocar em diagonais, em movimentos aleatórios, em linhas retas e sempre me deparava com paredes. Quando conseguia movimentar-me em círculos, não as encontrava. Senti objetos pontiagudos rasgarem a sola de meus pés e acomodarem-se, rijamente, ao lado de meus artelhos. Pelo dorso, as minhas mãos foram devassadas por pregos imensos. Senti a temperatura da pele subir, rapidamente, com o sangue que a cobria...
Acordei. Era noite de chuva intensa. Desliguei o condicionador de ar. O frio do quarto incomodava-me. Não havia sangue, nem feridas. Continuava nu e um copo d’água repousava no criado-mudo. Não ouvia mais o agudo zumbido e tudo era silêncio. Uma luz brilhava ao longe e ao abrir a janela senti o olor dos jambeiros. Molhei a boca amarga e, apesar de sentir fome, resolvi deitar novamente.
As portas do quarto estavam fechadas e assim continuariam.

Manaus, 26.3.2011
José Antonio

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