sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Mulher da Vida

Mulher da Vida Cora Coralina
Mulher da Vida, minha Irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades e
carrega a carga pesada dos mais
torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.
Mulher da Vida, minha irmã.
Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.
Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.
Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre por
aqueles que um dia as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas,
Escorchadas. Discriminadas.
Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos,
pisadas, maltratadas e renascidas.
Flor sombria, sementeira espinhal 
gerada nos viveiros da miséria, da
pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes da Terra.
Um dia, numa cidade longínqua, essa 
mulher corria perseguida pelos homens que
a tinham maculado. Aflita, ouvindo o 
tropel dos perseguidores e o sibilo das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.
A Justiça estendeu sua destra poderosa e
lançou o repto milenar:
“Aquele que estiver sem pecado
atire a primeira pedra”.
As pedras caíram
e os cobradores deram s costas.
O Justo falou então a palavra de eqüidade:
“Ninguém te condenou, mulher... 
nem eu te condeno”.
A Justiça pesou a falta pelo peso
do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada,
ela é a muralha que há milênios detém
as urgências brutais do homem para que 
na sociedade possam coexistir a inocência,
a castidade e a virtude.
Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.
Sem cobertura de leis
e sem proteção legal, 
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada, 
nem a sociedade a dispensa
nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão, 
a levante, e diga: minha companheira.
Mulher da Vida, minha irmã.
No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça
do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.
E o juiz da Grande Justiça
a vestirá de branco em
novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida
humilhada e sacrificada
para que a Família Humana
possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrurível
da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.
Mulher da Vida, minha irmã.

Declarou-lhe Jesus: “Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem no Reino de Deus”.
Evangelho de São Mateus 21, ver.31.
Poesia dedicada, por Coralina, ao Ano Internacional
da Mulher em 1975.


Poemas dos becos de Goiás, Global, 1983 - S.Paulo, Brasil

4 comentários:

  1. "nem a sociedade a dispensa
    nem lhe reconhece direitos
    nem lhe dá proteção." Pensamentos maravilhosos a de Cora nest poema em defesa da dignidade da "Mulher da Vida".Esse contexto poético ainda serve pra uma infinidade de mulheres que guerreiam dia a após dia pra ter o direito de tomar sua vida "pelas rédeas" e escrever o seu próprio destino!Num mundo de valores e pessoas cada dia mais pervertidas, pra ser Mulher da Vida, em todos os seus múltiplos sentido, há que ter imprescindivelmente um forte estômago e deveras bravura!

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  2. Querida Amanda

    A sua comparação é pertinentíssima!
    Este poema deveria ser a epígrafe obrigatória para todo trabalho que analisasse a disciplina jurídica da prostituição, não acha?
    Saudades!
    Bjs,

    RPF

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  3. Verdade,engraçado estou até buscando informações como é vista juridicamente a prostituição aqui na Suíça!Vou guardar esse poema ,quem sabe um dia eu uso a sua ideia!rs

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