sábado, 11 de agosto de 2012

O JUIZ RETO

O JUIZ RETO

Ao tribunal de Eliaquim Bem Jefté, juiz respeitável e sábio, compareceu o negociante Jonatan Bem Cafar arrastando Zorobabel, miserável mendigo.
   
- Este homem – clamou o comerciante, furioso – impingiu-me um logro de vastas proporções! Vendeu-me um colar de pérolas falsas, por cinco peças de ouro, asseverando que valiam cinco mil. Comprei as jóias, crendo haver realizado excelente negócio, descobrindo, afinal, que o preço delas é inferior a dois ovos cozidos. Reclamei diretamente contra o mistificador, mas este vagabundo já me gastou o rico dinheiro. Exijo para ele as penas da justiça! É ladrão reles e condenável!...
   
O magistrado, porém, que cultuava a Justiça Suprema, recomendou que o acusado se pronunciasse por sua vez:
   
- Grande juiz – disse ele, timidamente -, reconheço haver transgredido os regulamentos que nos regem. Entretanto, tenho meus dois filhos estirados na cama e debalde procuro trabalho digno, pois mo recusam sempre, a pretexto de minha idade e de minha pobre apresentação. Realmente, enganei o meu próximo e sou criminoso, mas prometo resgatar meu débito logo que puder.
   
O juiz meditou longamente e sentenciou:
   
- Para Zorobabel, o mendigo, cinco bastonadas entre quatro paredes, a fim de que aprenda a sofrer honestamente, sem assalto à bolsa dos semelhantes, e, para Jonatan, o mercador, vinte bastonadas, na praça pública, de modo a não mais abusar dos humildes.
   
O negociante protestou, revoltado:
   
- Que ouço?! Sou vítima de um ladrão e devo pagar por faltas que não cometi? Iniquidade! Iniquidade!...
   
O magistrado, todavia, bateu forte com um martelo sobre a mesa, chamando a atenção dos presentes, e esclareceu em voz alta:
   
- Jonatan bem Cafar, a justiça verdadeira não reside na Terra para examinar as aparências. Zorobabel, o vagabundo, chefe de uma família infeliz, furtou-te cinco peças de ouro, no propósito de socorrer os filhos desventurados, porém, tu, por tua vez, tentaste roubar dele, valendo-te do infortúnio que o persegue, apoderando-te de um objeto que acreditaste valer cinco mil peças de ouro ao preço irrisório de cinco. Quem é mais nocivo à sociedade, perante Deus: o mísero esfomeado que rouba um pão, a fim de matar a fome dos filhos, ou o homem já atendido pela Bondade do Eterno, com os dons da fortuna e da habilidade, que absorve para si uma padaria inteira, a fim de abusar, calculadamente, da alheia inteligência? Quem furta por necessidade pode ser um louco, mas quem acumula riquezas, indefinidamente, sem movimenta-las no trabalho construtivo ou na prática do bem, com absoluta despreocupação pelas angústias dos pobres, muita vez passará por inteligente e sagaz, aos olhos daqueles que, no mundo, adormeceram no egoísmo e na ambição desmedida, mas é malfeitor diante do Todo Poderoso que nos julgará a todos, no momento oportuno.
   
E, sob a vigilância de guardas robustos, Zorobabel tomou cinco bastonadas em sala de portas lacradas, para aprender a sofrer sem roubar, e Jonatan apanhou vinte, na via pública, de modo a não mais explorar, sem escrúpulos, a miséria, a simplicidade e a confiança do povo.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O ponto.

O ponto.

Cris Guerra
Venho de um mar revolto que não me dava descanso, um gosto de sal na garganta e uma sede, em meio a tanta água. Venho cansada da luta. E a minha sede era de água e paz.

Eu não procurava um pouso porque já tinha o meu próprio – que pode não ser macio nem mágico, mas tem o meu cheiro. Eu procurava o que não sei. Procurava parar de procurar. E já vinha desacelerando a busca, numa desistência doce.

Era a paz que eu procurava. A paz que me sorri bem puro. A paz que não é tédio. Que dá colo pra descansar, mas também é capaz de surpreender e fazer o coração bater forte, a circulação aumentar, o corpo se sentir vivo. A paz que atormenta. Paz que é um ponto.

Que é chegar em casa sorrindo. Uma insônia boa. Certeza que não mata. Saudade que revela. Que é quando a imperfeição encontra lugar confortável em nós. É sentir no outro uma semelhança macia. Saber um pouco do que vai no outro, sem saber quem é o outro.

Estou apaixonada por uma tempestade suave em mim.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

GILDETE

GILDETE

Rodolfo Pamplona Filho
Gente muito boa e competente
Inteligente e diligente
Ligeira, tenaz e cuidadosa
Deus mandou para nos abençoar
Ela é absolutamente DEZ
Topa tudo todo tempo toda vez
Ela é Gildete, nosso anjo particular.

Praia do Forte, 20 de fevereiro de 2012.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Soneto de bem-querer

Soneto de bem-querer
 Roseane Freitas

Meu bem querer, tanto me espanto.
Com o bem que te tenho dedicado sempre e tanto
Queria não querer-te como quero
Mas meu coração fraco já não resiste ao seu encanto.

Querendo, deposito-o em teus altares
Meu amor bendito irei te dedicar
Com tal bem hei de querer-te
Que cheguei um dia a te amar

Com um amor puro e verdadeiro
Da vida errante e do amor inteiro
Se bem que já o tenho amado tanto

Que minha vida outrora desencanto
Fez-se riso incandescente transcendendo
O bem que me quero ao te amar tanto.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

"O Homem Velho"


pasquale cipro neto

 

02/08/2012 - 03h30

"O02/08/2012 - 03h30

"O Homem Velho"

DE SÃO PAULO
Pensei e repensei se devia escrever "antes da hora" sobre os (quase) 70 anos do amado Caetano Veloso. Abro o site de Caetano e vejo que ele (o site) mudou. Os 70 anos do mestre já estão estampados ("Caetano Veloso 70"), então perco o receio de falar antes do aniversário (no próximo dia 7).
Faz mais de um mês que penso em escrever sobre isso e, quando me imaginava fazendo-o, a primeira coisa que me vinha à mente era a monumental canção "O Homem Velho", que está no não menos monumental disco "Velô", de 1984. Caetano dedica a canção "à memória de meu pai, a Mick Jagger e a Chico Buarque, que agora tem 40 anos, mas aos 20 fez uma canção belíssima sobre o tema".
A canção a que Caetano se refere é a também monumental "O Velho", que está no disco "Chico Buarque Vol. 3", de 1968 (Chico tinha 24 anos): "O velho vai-se agora / Vai-se embora / Sem bagagem / Não sabe pra que veio / Foi passeio / Foi passagem / Então eu lhe pergunto pelo amor / Ele me é franco / Mostra um verso manco / De um caderno em branco / Que já se fechou...".
O homem velho da canção de Caetano é outro. Parece saber pra que veio -e não foi passeio, nem passagem: "Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval / Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal / Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual / Já tem coragem de saber que é imortal".
Caetano já tinha feito um "acordo" com o deus Tempo, na inesquecível "Oração ao Tempo" (do disco "Cinema Transcendental", anterior a "Velô"): "És um senhor tão bonito / Quanto a cara do meu filho / Tempo Tempo Tempo Tempo / Vou te fazer um pedido (...) Peço-te o prazer legítimo / E o movimento preciso (...) Quando o tempo for propício (...) De modo que o meu espírito / Ganhe um brilho definido / (...) E eu espalhe benefícios / (...) O que usaremos pra isso / Fica guardado em sigilo (...) / Apenas contigo e migo (...) / E quando eu tiver saído / Para fora do teu círculo (...) / Não serei nem terás sido (...) / Ainda assim acredito / Ser possível reunirmo-nos (...) / Num outro tipo de vínculo (...) / Portanto peço-te aquilo / E te ofereço elogios (...) / Nas rimas do meu estilo / Tempo Tempo Tempo Tempo".
O homem velho da letra de Caetano parece mesmo ser esse nobre ser que fez um pedido ao deus Tempo (e caminha para ser merecedor da anuência desse deus). Lembra o que diz Drummond em seu antológico poema "Os Ombros Suportam o Mundo": "Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? / Teus ombros suportam o mundo / e ele não pesa mais que a mão de uma criança".
Volto à letra de "O Homem Velho" e a alguns de seus fortes versos: "O homem velho deixa vida e morte para trás / (...) O homem velho é o rei dos animais / A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol / As linhas do destino nas mãos a mão apagou / Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n rol / As coisas migram e ele serve de farol...".
Detenho-me neste belíssimo verso: "As linhas do destino nas mãos a mão apagou". Como se não bastassem a beleza e a profundidade do sentido desse verso, há nele a quinta-essência da construção linguístico-literária. Ao inverter a ordem "natural" da frase ("A mão apagou as linhas do destino nas mãos") e, consequentemente, mantê-la na voz ativa (a passiva seria "As linhas do destino nas mãos foram apagadas pela mão"), Caetano é certeiro: mostra com ênfase e sabedoria o que faz a "mão" (que aí é metáfora e metonímia da vida, da passagem do tempo) com as linhas do destino que temos nas mãos.

Um beijo na alma, Caetano. É isso

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Interpretando Camões...



O vestibular de uma determinada instituição de ensino superior, em um determinado ano, cobrou dos candidatos a interpretação do seguinte trecho de Camões:

'Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente,
é um contentamento descontente,
dor que desatina sem doer '.

Uma vestibulanda de 16 anos deu a sua interpretação :
 

'Ah, Camões!, se vivesses hoje em dia,
tomavas uns antipiréticos,
uns quantos analgésicos
e Prozac para a depressão.
Compravas um computador,
consultavas a Internet
e descobririas que essas dores que sentias,
esses calores que te abrasavam,
essas mudanças de humor repentinas,
esses desatinos sem nexo,
não eram feridas de amor,
mas somente falta de sexo!'

A Vestibulanda ganhou nota DEZ, pela originalidade, pela estruturação dos versos, e das rimas insinuantes.
Foi a primeira vez que, ao longo de mais de 500 anos, alguém desconfiou que o problema de Camões era apenas falta de mulher.

domingo, 5 de agosto de 2012

NOSSO JARDIM DENTRO DOS MEUS OLHOS

NOSSO JARDIM DENTRO DOS MEUS OLHOS
Vou te contar, meu amor, por que eu acho que você é a mulher mais interessante do mundo.
Primeiro, naturalmente, porque você é alta, tem as costas largas e uma pinta bem embaixo do olho direito - uma combinação que é só sua. E, há quatro anos, minha também.
Depois, porque a sua pele é cor de mel, a sua sobrancelha é grossa e, embora esteja quase sempre deliciosamente despenteada, é moldada aos seus olhos, que têm um desenho perfeitamente assimétrico, sendo o esquerdo levemente menos arredondado do que o direito - apenas mais uma de suas sublimes imperfeições.
Tem também o seu jeito marrento de andar, que não deixa dúvidas sobre a pegada que você impõe à vida: forte, determinada, sem muita margem para erros. Tem o cabelo cheio de volume e longo, que sempre brilha muito e cai suavemente sobre suas costas largas - e sobre o meu rosto na cama.
Tem o jeito que você mexe a cabeça quando dança e o ritmo cadenciado com que as suas mãos passeiam pelo meu rosto, dizendo, numa linguagem que é só delas - e minha há 50 meses -, que me amam. O jeito que você segura o cigarro, que mexe naquele pelinho do queixo que é só seu - e, vá lá, faz algum tempo, meu também.
Tem o bico que se instala no seu rosto sem que você perceba e a maneira como você fala com a sua mãe ao telefone, inigualavelmente doce e atenta.
Tem ainda o jeito esparramado que você deita de bruços na cama, desafiando meu poder de encaixe, que sempre te surpreende. E o sacolejo que só você sabe dar para fazer com que aquela calça abençoadamente mais justa suba até onde você quer que ela suba. E então eu vejo seu corpo moldado pela calça (ou a calça moldada pelo seu corpo, mais correto) e entendo que aquelas curvas são só suas, intensamente suas - e, há alguns anos, orgulhosamente minhas.
Banalidades
Posso também falar do jeito moleque que você anda de bicicleta, eu atrás, temendo que minha mulher derrape e se estatele no asfalto. Mas isso não acontece, porque você é a única senhora de seus domínios, e eles são vários.
Tem o jeito que você se veste, que vai do largado ao clássico, passando pelo pop sofisticado. Tem o jeito cheio de ritmo que você faz amor, e que me beija na cama. E os pelos que crescem em sentido contrário na sua perna, e que são só seus - e meus, há inacreditáveis 50 meses.
Tem a forma como você tempera a salada, alternando, com os talheres, as folhas, suavemente de cima para baixo, de baixo para cima, a fim de que o azeite que você acabou de jogar possa lambuzar todas as folhas, sem um único centímetro de exceção.
Tem o jeito que você se comporta nas festas, buscando uma nova forma de ver a realidade, e o jeito que você mexe e remexe o maxilar sempre que está com seus sentidos superaguçados.
Tem o jeito sério e maduro que você vê a vida, e a variada lista de assuntos que fazem parte do nosso menu de conversas, que vão do futebol - sempre fundamental - ao futuro da humanidade, passando - para meu delírio - pelas fundamentais banalidades.
Tem o jeito que você prende a toalha no cabelo molhado e passa creme no corpo depois do banho, enquanto acha que eu ainda durmo. Você coloca o pé direito sobre a cama (o direito primeiro, sempre) antes de espalhar, com a palma da mão bem aberta, o creme pelos pés, canelas, coxas - incluindo, de forma quase displicente, a parte interna delas -, barriga, peitos, colo, ombros, braços. Nessa ordem - imaculadamente sua, e minha há tantos e indescritíveis meses.
Doce futuro
Tem o jeito manhoso que você me pede um beijo, que esfrega seu rosto no meu, que diz "eu banana". E o jeito que você seca o cabelo de manhã, de salto alto e sem mais nenhuma peça de roupa, para brincar com minha libido e me fazer delirar. E o jeito que você desafia minha timidez, minhas manias, meus traumas.
O jeito que você me fala sobre o seu trabalho, sobre seus sonhos, sobre nossa casa na montanha. O jeito que você me tira para dançar no meio da sala numa quarta qualquer à noite, enquanto a cidade dorme. O jeito que você passa gloss no carro e deita sobre meu ombro na cama. O jeito único que você me lê e me vê. O jeito que você me sente, me seduz e me conduz.
E tem, finalmente - embora eu pudesse continuar a listar os motivos que me levam a ter certeza de que a minha mulher é a mais interessante do mundo -, o jeito travesso e poético com que você sonha com nosso incerto, mas cada dia mais doce, futuro.
Mas, talvez, mais do que tudo, tem o jeito como você, com gestos, palavras e sentimentos, não para de me surpreender. E consegue, numa manhã qualquer de domingo, ver nosso jardim dentro dos meus olhos.