sábado, 15 de setembro de 2012

Isaura das Rocas

Isaura das Rocas    
                                   Jairo Vianna


Eu queria saber o significado do vocábulo rocas, afora o conhecido mecanismo de tear. Ouvi certo dia de um marinheiro que assim se chama o reforço para mastros e vergas rendidas de veleiros. Nada mais apropriado para nome de Zona Boêmia, pensei. E assim se chama, até hoje, aquela de Natal. Foi lá que conheci Isaura, nos idos de 1951. Eu acabava de sair do seminário. Já não havia mais a base aérea norte-americana, mas restava alguma sombra de fartura nos cabarés. Por coincidência, fui levado ao bordel por um primo soldado da Força Aérea brasileira. Ele fez questão de me levar e o fazia como se fosse um ato de heroísmo. Eu nem em retrato tinha visto mulher nua e entrei no lugar de través. Senti um misto de curiosidade e medo. O ambiente, inverso da minha casa e da escola eclesiástica, deu-me vontade de voltar. Desisti do retrocesso, diante do olhar ríspido do primo. Entramos. Ele escolheu uma das mesas e nos acomodamos. A bruma de tabaco quase impedia que eu visse os que dançavam e as toalhas xadrezes das mesas vizinhas. O cheiro agridoce invadia o salão. Ria-se muito. Homens estranhos limpavam a espuma sobrada da cerveja nos vastos bigodes. Pensei na terrível peleja que haveria, se resolvessem emendá-los. Assim se dizia: brigar era emendar bigode. Invejei-os — queria ter um daqueles. Havia mesmo decidido e já colecionava os primeiros pelos: um sombreado de buço sedoso. Nada em que a espuma colasse e que eu pudesse assear com a mão. Senti-me pueril e pensei em correr aos braços maternos da proteção. Aquietou-me de novo o fuzilamento dos olhos do primo. Com um sinal, ele ordenou que duas mulheres se sentassem nas cadeiras vazias da mesa: ao seu lado a branca, talvez polaca; e ao meu a morena, Isaura. Ele se atracou com a outra. Eu escondi as mãos entre as pernas e rocei o sexo flácido e sumido de susto. Fitei os lábios carnudos e escarlates de Isaura. Eles se abriram vagarosamente e ela disse:
— É tua primeira vez, meu lindo?
— É sim — falei, não sem antes pensar em mentir e fingir experiência.
O primo disse-lhe algo ao ouvido e se foi com a outra.
Tomei um gole da cerveja e achei amarga. Duvidei que algum dia fosse gostar de beber aquilo. Mesmo assim, tentei levar o copo à boca de novo, porém minhas mãos trêmulas impediram. Isaura percebeu. Tomou-me uma das mãos entre as suas e nela depositou um beijo. Senti calafrio. Meus olhos fixos nos seios de Isaura viram o vale do meio e o crucifixo pendente da corrente. Recordei os castigos dos colegas que se masturbavam: horas de rezas sobre os caroços de milho. No dia seguinte, mostravam os joelhos machucados. No fundo, regozijavam-se com rebeldia e a macheza. Eu preferia o medo e a preservação. E Isaura me fez levantar e me levou através da cortina feita de cordas e contas. Ao balanço causado pela nossa passagem, algumas moscas voaram, para depois retornarem àquele berço em busca do sono. Assim ultrapassei a fronteira da vida adulta. Ao lado da mulher, minha pequenez. Ela não devia ser dali, porquanto era alta, embora morena e de sotaque nordestino. Talvez fosse das bandas de Pernambuco. Lá as mulheres eram compridas como o nome do lugar, diziam.
Entramos no quarto. Num canto, a penteadeira com frascos de perfumes, potes de pinturas, uma Nossa Senhora, pentes, escovas e um retrato de cachorro.  Ao lado a cama, forrada de pano estampado, e a pequena mesa. O cheiro agridoce se acentuava. Ela franziu a testa e esboçou um sorriso.
— Fique aí um pouco, lindinho. Não se aperreie. Logo tu vai ver o que é bom.
Isaura das Rocas sumiu porta afora. Eu fiquei de olhos fixos na Nossa Senhora da penteadeira. Resolvi fechá-los e abrir a imaginação. Tinha nas mãos o calor do beijo e no peito o amor nascente. E me vi enroscado nela aos mimos e sussurros. Mil vezes lhe jurei amor e ela respondia com a candura do olhar.
Senti a excitação e o suor.  Tirei a roupa. Continuei de olhos cerrados, temendo não vê-la mais. Talvez tudo, inclusive o primo, fosse fantasia e eu estivesse no dormitório no seminário.
O ranger da porta me trouxe de volta à realidade. Enxerguei Isaura e seu sorriso morno. Ela tirava a roupa. Pude ver o sinal perto do umbigo e os seios agora inteiros, com a cruz indo e vindo enquanto ela se abaixava para se livrar do resto das roupas. As unhas dos pés de Isaura pareciam sangrar, de tão rubras. Ela se aproximou da cama e carinhosamente me empurrou de lado. Abraçou-me. Minha cabeça em seu colo. Eu me embriaguei no seu perfume. A excitação tanta se esvaiu no lençol de tantas flores e folhas e se acrescentou à estamparia.  Ela não se importou. Embalou-me nos braços e peitos. Novamente pronto, e mais calmo, deixei-me conduzir e amei. Não amor sinônimo malcriado de sexo. Amor mesmo, de sentir no fundo, de dentro para fora e vice-versa. Isaura dizia coisas que não pude compreender, enquanto se enroscava cavalgando. Eu, inanimado e feliz, experimentava fluxo e refluxo. Por fim, ela descansou. Virou de costas. Encostei-me nas suas ancas e adormeci, certo de amor. O primo apareceu com o dinheiro para Isaura, ela não aceitou e falou do prazer. Amava-me, com certeza, e não me deixaria mais.  E eu era o mais feliz dos homens, embora ainda me faltassem bigode e o gosto pela cerveja.
Bateram à porta. Levantamos, eu e ela de um só pulo. Era o primo. Isaura começou a se vestir e mandou que eu fizesse o mesmo. Indagava-me se aquilo não teria acontecido ainda agora, de forma diferente. A memória trôpega me confundia. O primo deu o dinheiro para Isaura e me levou quase empurrado dali. Eu transtornado com o vai-e-vem do sonho e da realidade.
Depois, por bom tempo, pensei na Isaura. Nas noites, rondei as Rocas. Não tive coragem de entrar e vê-la na lida, com outro homem. Acreditei que um dia ela sairia do cabaré, viria ao meu encontro, abandonaria a vida e cuidaria do nosso amor. Do primo fiquei sem notícia nem queria alguma. Preferi ficar para sempre com o sonho. A versão boa. Aprendizagem de amor.
Até hoje me lembro de Isaura das Rocas. Mulher capaz de curar mastros e vergas da rendidura. Apta para inflar as velas dos barcos, de modo a lhes assegurar boas viagens nos mares do futuro e nas lembranças do passado.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Soneto das Queixas Sexuais

Soneto das Queixas Sexuais

Darci HF

Querer uma constância
que você diz não agüentar.
Não suportar a fragrância
que o corpo quer exalar.

Não conseguir lubrificar
e não gostar de me ver gritar
Negar minha mordida
e frustrar minha expectativa

Aparentar nojo de oral
e ter medo de anal,
como se isso fosse sujo...

A little less conversation,
a little more action...
é só o que peço do mundo.

Salvador, 03 de novembro de 2011.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

AS PAREDES DE UM SONHO

AS PAREDES DE UM SONHO
Você me leva até aquela pedra outra vez. Diz que é sobre ela que ergueremos nossa casa, nosso refúgio e nosso abrigo. Olho para baixo e vejo o mundo lá longe, pensando que seria mesmo muito bom subir ali algumas paredes, me isolar dentro delas, e, protegida de todas as dores da vida, pegar uma taça de vinho, acender a lareira e deitar no seu colo. Aperto um pouco mais sua mão, sento na pedra e começo a sonhar.

Como todo bom sonho, esse sonho não tem começo nem fim, apenas meio. Tudo é meio até que se acabe, essa é a verdade. Outra enorme verdade é que não sei como começaremos a pagar pela casa, nem sei quando terminaremos de erguê-la, mas as paredes já estão subindo dentro de minha imaginação.

Andando pelo terreno que você comprou no topo do mundo – embora ao seu lado todo terreno percorrido seja o topo do mundo – vamos falando a respeito da casa que construiremos – sala, cozinha, quartos, banheiros, deck... tudo vai ganhando vida.

Você diz que quer um aconchegante escritoriozinho para que eu trabalhe em paz e com vista para o oceano de montanhas a nossa frente. Eu digo que quero uma cozinha no meio de tudo e onde eu possa fazer aquele macarrão alho e óleo que minha mãe me ensinou e no qual você se lambuza com o prazer dos esfomeados pela vida – sua intensidade nunca vai deixar de me surpreender.

Construir uma casa é como plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho – deveria fazer parte da lista de coisas fundamentais da vida. Como provavelmente não teremos um filho, podemos substituir a última pela casa, penso.

E, quando fico tentada a colocar no papel nosso orçamento anual, atitude que me faria despertar do sonho empapada em suor, lembro de seu Juca, cujo avô ergueu a dele com a ajuda de amigos, usando apenas barro e madeira. Tud o vale a pena se a alma não é pequena; meu pai adorava citar Pessoa. E usar ponto e vírgula. Só agora, depois dos 40, o poeta começa a fazer sentido. O ponto e vírgula fez bem antes.

Horizonte
Você enfia a mão no meu cabelo e bagunça todos os fios, como faz desde a primeira noite em que ficamos juntas. Feito um gato, eu me ofereço esticando o pescoço e ronronando enquanto continuamos a andar – e a sonhar – pelo mato.

Talvez o único antídoto para esta dolorida jornada humana sejam os sonhos – sem eles não levaríamos à boca uma xícara de café pela manhã e não desceríamos um lance de escada. O sonho é a pele da alma dos apaixonados.

Enquanto me entrego ao devaneio que só a mistura de vinho e frio permite, você continua falando a respeito da casa. Está agora colocando os batentes e as esquadrias, aparentes e de madeira. Tem ainda uma pequena adega, muito vidro e uma bancada onde eu vou poder co rtar os tomatinhos do macarrão alho e óleo e, ao mesmo tempo, ver você lendo na sala. Tem os cachorros lá fora e aqui dentro, embora eu continue a reclamar das patas sujas no sofá e você continue a me ignorar dando ampla preferência à vontade dos cachorros.

Em menos de duas horas ela fica pronta, a nossa casa no mato – e eu entendo que melhor do que sonhar é sonhar junto. Fico pensando que um amor morto é aquele que não sonha mais junto.

Você volta a sentar na pedra e eu agora vejo você inserida no horizonte de montanhas ao fundo, tudo parte de uma mesma substância, que é o que somos, que é o que temos que ser. Quero fotografar, mas minhas mãos, no bolso do casaco, estão congeladas: subjetivamente, pela beleza daquele momento; objetivamente, pelo frio.

Eu estava dormindo a primeira vez que sonhei com uma casa com vista para o infinito. No sonho, eu tinha uns 60 anos e tomava uma xícara de café olhando pela janela. Sei qu e fazia frio porque eu usava um casaco branco de lã e gola alta. Atrás de mim, uma escrivaninha com muitos livros e uma máquina de escrever. A imagem veio como em uma fotografia superexposta: as cores eram fortes e vivas. Eu tinha menos de 20 anos e nenhuma perspectiva de virar escritora ou de conhecer um amor tão intenso.

A vida fazendo sentido
E agora tudo está ali comigo: o sonho mais belo que já sonhei querendo acontecer, você – um sonho tão espetacularmente absurdo que nem sonhado tinha sido – e aquele monte de picos e vales, os altos e baixos da experiência humana.

Mais uma vez, você coloca a mão em meu cabelo e começa a despenteá-lo. Mais uma vez, feito um gato, eu me entrego e coloco a cabeça em seu colo. A vida vai fazendo sentido.

Amanhã é segunda-feira e o mundo vai tentar ofuscar todos os sonhos – telefonemas fora de hora, contas bloqueadas, o processo do empresário safado e esperto que cai sobre seus ombros, a grana que não vai dar para pagar tudo, o portão da garagem que quebra, a obra do vizinho, o ralo que entope.

O grande truque é não deixar o mundo entrar. O grande truque é erguer paredes sólidas – mesmo que sejam de barro –, fechar a porta, acender a lareira, pegar uma taça de vinho e continuar olhando para o horizonte de montanhas. O grande truque é jamais perder o sonho de vista, nem mesmo o mais maluco deles, porque, no fim, é ele que nos terá elevado a um lugar onde tudo fará sentido.

A carioca Milly Lacombe, 43 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Fazer Amor

Fazer Amor

Rodolfo Pamplona Filho
Preciso fazer amor...
Preciso fazer amor com você
novamente
como nunca tivesse feito
anteriormente.

Eu quero isso sempre...
Sentir seu corpo sobre o meu,
sugar seus seios como quem
sorve um néctar indizível,
ver você gozar sem controle...
dizer que estar comigo é incrível...

Eu quero isso e muito mais...
Quero que você me sinta
inteiro dentro de si...
Penetrando seu coração,
muito mais do que aqui...

E, depois de tanto amor,
apenas sonho singelamente
em simplesmente  dormir
tranquilo, ao seu lado,
sem nunca mais estar longe...

Belo Horizonte, 06 de junho de 2011

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Remédio para a pressão...

Remédio para a pressão... (Luiz Fernando Veríssimo)


Eu tomo um remédio para controlar a pressão.
 Cada dia que vou comprar o dito cujo, o preço aumenta.
 Controlar a pressão é mole.
 Quero ver é controlar o preção.
 Tô sofrendo de preção alto.
 O médico mandou cortar o sal.
 Comecei cortando o médico, já que a consulta era salgada demais.
 Para piorar, acho que tô ficando meio esquizofrênico.
 Sério! Não sei mais o que é real.
 Principalmente, quando abro a carteira ou pego extrato no banco.
 Não tem mais um Real.
 Sem falar na minha esclerose precoce.
 Comecei a esquecer as coisas:
 Sabe aquele carro? Esquece!
 Aquela viagem? Esquece!
 Tudo o que o presidente prometeu? Esquece!
 Podem dizer que sou hipocondríaco, mas acho que tô igual ao meu time: - nas últimas.
 Bem, e o que dizer do carioca?
 Já nem liga mais pra bala perdida...
 Entra por um ouvido e sai pelo outro.
 Faz diferença...
 "A diferença entre o Brasil e a República Checa é que a República Checa tem  o governo em Praga  e o Brasil tem essa praga no governo"
 "Não tem nada pior do que ser hipocondríaco num país que não tem remédio"...

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Soneto do Viver Intensamente

Soneto do Viver Intensamente

Rodolfo Pamplona Filho

O que se entende
por viver intensamente?
Seria sequer não parar
para simplesmente respirar?

Se for tudo isso,
loucura é o desperdício
de tempo e oportunidade
quando se pensa na realidade

de quanta coisa não se faz
apenas para manter a paz
de uma vida que não passa de cem

Na verdade, penso que não importa
viver muito, na via reta ou torta,
mas, sim, viver sempre bem.

Salvador, 03 de novembro de 2011.

domingo, 9 de setembro de 2012

Existe sempre uma coisa ausente-Caio F.Abreu.

Existe sempre uma coisa ausente-Caio F.Abreu.

Paris — Toda vez que chego a Paris tenho um ritual particular. Depois de dormir algumas horas, dou uma espanada no rodenirterceiromundista e vou até Notre-Dame. Acendo vela, rezo, fico olhando a catedral imensa no coração do Ocidente. Sempre penso em Joana d’Arc, heroína dos meus remotos 12 anos; no caminho de Santiago de Compostela, do qual Notre-Dame é o ponto de partida — e em minha mãe, professora de História que, entre tantas coisas mais, me ensinou essa paixão pelo mundo e pelo tempo.

Sempre acontecem coisas quando vou a Notre-Dame. Certa vez, encontrei um conhecido de Porto Alegre que não via pelo menos á2o anos. Outra, chegando de uma temporada penosa numa Londres congelada e aterrorizada por bombas do IRA, na época da Guerra do Golfo, tropecei numa greve de fome de curdos no jardim em frente. Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém m andava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis, e você pode então ir tanto para Botucatu quanto para Java, Budapeste ou Maputo — nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”,feito Pessoa. Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio.

Enrolado num capotão da Segunda Guerra, naquela tarde em Notre-Dame rezei, acendi vela, pensei coisas do passado, da fantasia e memória, depois saí a caminhar. Parei numa vitrina cheia de obras do conde Saint-Germain, me perdi pelos bulevares da le dela Cité. Então sentei num banco do Quai de Bourbon, de costas para o Sena, acendi um cigarro e olhei para a casa em frente, no outro lado da r ua. Na fachada estragada pelo tempo lia-se numa placa: “II y a toujours quelque choe d’abient qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) — frase de uma carta escrita por Camilie Claudel a Rodín, em 1886. Daquela casa, dizia aplaca, Camille saíra direto para o hospício, onde permaneceu até a morte. Perdida de amor, de talento e de loucura.

Fazia frio, garoava fino sobre o Sena, daquelas garoas tão finas que mal chegam a molhar um cigarro. Copiei a frase numa agenda. E seja lá o que possa significar “ficar bem” dentro desse desconforto inseparável da condição, naquele momento justo e breve — fiquei bem. Tomei um Calvados, entrei numa galeria para ver os desenhos de Egon Schiele enquanto a frase de Camille assentava aos poucos na cabeça. Que algo sempre nos falta — o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. E atormenta.

Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente. Três anos depois fui parar em Saint-Nazaire, cidadezinha no estuário do rio Loire, fronteira sul da Bretanha. Lá, escrevi uma novela chamada Bem longe de Marienbad , homenagem mais à canção de Barbara que ao filme de Resnais. Uma tarde saí a caminhar procurando na mente uma epígrafe para o texto. Por “acaso”, fui dar na frente de um centro cultural chamado (oh!) Camille Claudel. Lembrei da agenda antiga, fui remexer papéis. E lá estava aquela frase que eu nem lembrava mais e era, sim, a epígrafe e síntese (quem sabe epitáfio, um dia) não só daquele texto, mas de todos os outros que escrevi até hoje. E do que não escrevi, mas vivi e vivo e viverei.

Pego o metrô, vou conferir. Continua lá, a placa na fachada da casa número 1 do Quai de Bourbon, no mesmo lugar. Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo.

O Estado de S. Paulo, 3/4/1994 (http://caio-fernando-abreu.blogspot.com/)