domingo, 30 de junho de 2013

A pior audiência da minha vida


A pior audiência da minha vida
por Paulo Rangel Des. TJRJ
A minha carreira de Promotor de Justiça foi pautada sempre pelo princípio da importância (inventei agora esse princípio), isto é, priorizava aquilo que realmente era significante diante da quantidade de fatos graves que ocorriam na Comarca em que trabalhava. Até porque eu era o único promotor da cidade e só havia um único juiz. Se nós fôssemos nos preocupar com furto de galinha do vizinho; briga no botequim de bêbado sem lesão grave e noivo que largou a noiva na porta da igreja nós não iríamos dar conta de tudo de mais importante que havia para fazer e como havia (crimes violentos, graves, como estupros, homicídios, roubos, etc).

Era simples. Não há outro meio de você conseguir fazer justiça se você não priorizar aquilo que, efetivamente, interessa à sociedade. Talvez esteja aí um dos males do Judiciário quando se trata de “emperramento da máquina judiciária”. Pois bem. O Procurador Geral de Justiça (Chefe do Ministério Público) da época me ligou e pediu para eu colaborar com uma colega da comarca vizinha que estava enrolada com os processos e audiências dela.

Lá fui eu prestar solidariedade à colega. Cheguei, me identifiquei a ela (não a conhecia) e combinamos que eu ficaria com os processos criminais e ela faria as audiências e os processos cíveis. Foi quando ela pediu para, naquele dia, eu fazer as audiências, aproveitando que já estava ali. Tudo bem. Fui à sala de audiências e me sentei no lugar reservado aos membros do Ministério Público: ao lado direito do juiz.

E eis que veio a primeira audiência do dia: um crime de ato obsceno cuja lei diz:
Ato obsceno
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

O detalhe era: qual foi o ato obsceno que o cidadão praticou para estar ali, sentado no banco dos réus? Para que o Estado movimentasse toda a sua estrutura burocrática para fazer valer a lei? Para que todo aquele dinheiro gasto com ar condicionado, luz, papel, salário do juiz, do promotor, do defensor, dos policiais que estão de plantão, dos oficiais de justiça e demais funcionários justificasse aquela audiência? Ele, literalmente, cometeu uma ventosidade intestinal em local público, ou em palavras mais populares, soltou um pum, dentro de uma agência bancária e o guarda de segurança que estava lá para tomar conta do patrimônio da empresa, incomodado, deu voz de prisão em flagrante ao cliente peidão porque entendeu que ele fez aquilo como forma de deboche da figura do segurança, de sua autoridade, ou seja, lá estava eu, assoberbado de trabalho na minha comarca, trabalhando com o princípio inventado agora da importância, tendo que fazer audiência por causa de um peidão e de um guarda que não tinha o que fazer. E mais grave ainda: de uma promotora e um juiz que acharam que isso fosse algo relevante que pudesse autorizar o Poder Judiciário a gastar rios de dinheiro com um processo para que aquele peidão, quando muito mal educado, pudesse ser punido nas “penas da lei”.

Ponderei com o juiz que aquilo não seria um problema do Direito Penal, mas sim, quando muito, de saúde, de educação, de urbanidade, enfim… Ponderei, ponderei, mas bom senso não se compra na esquina, nem na padaria, não é mesmo? Não se aprende na faculdade. Ou você tem, ou não tem. E nem o juiz, nem a promotora tinham ao permitir que um pum se transformasse num litígio a ser resolvido pelo Poder Judiciário.
Imagina se todo pum do mundo se transformasse num processo? O cheiro dos fóruns seria insuportável.
O problema é que a audiência foi feita e eu tive que ficar ali ouvindo tudo aquilo que, óbvio, passou a ser engraçado. Já que ali estava, eu iria me divertir. Aprendi a me divertir com as coisas que não tem mais jeito. Aquela era uma delas. Afinal o que não tem remédio, remediado está.
O réu era um homem simples, humilde, mas do tipo forte, do campo, mas com idade avançada, aproximadamente, uns 70 anos.
Eis a audiência:

Juiz – Consta aqui da denúncia oferecida pelo Ministério Público que o senhor no dia x, do mês e ano tal, a tantas horas, no bairro h, dentro da agência bancária Y, o senhor, com vontade livre e consciente de ultrajar o pudor público, praticou ventosidade intestinal, depois de olhar para o guarda de forma debochada, causando odor insuportável a todas as pessoas daquela agência bancária, fato, que, por si só, impediu que pessoas pudessem ficar na fila, passando o senhor a ser o primeiro da fila.
Esses fatos são verdadeiros?

Réu – Não entendi essa parte da ventosidade…. o que mesmo?

Juiz – Ventosidade intestinal.

Réu – Ah sim, ventosidade intestinal. Então, essa parte é que eu queria que o senhor me explicasse direitinho.

Juiz – Quem tem que me explicar aqui é o senhor que é réu. Não eu. Eu cobro explicações. E então.. São verdadeiros ou não os fatos?

O juiz se sentiu ameaçado em sua autoridade. Como se o réu estivesse desafiando o juiz e mandando ele se explicar. Não percebeu que, em verdade, o réu não estava entendendo nada do que ele estava dizendo.

Réu – O guarda estava lá, eu estava na agência, me lembro que ninguém mais ficou na fila, mas eu não roubei ventosidade de ninguém não senhor. Eu sou um homem honesto e trabalhador, doutor juiz “meretrício”.
Na altura da audiência eu já estava rindo por dentro porque era claro e óbvio que o homem por ser um homem simples ele não sabia o que era ventosidade intestinal e o juiz por pertencer a outra camada da sociedade não entendia algo óbvio: para o povo o que ele chamava de ventosidade intestinal aquele homem simples do povo chama de PEIDO. E mais: o juiz se ofendeu de ser chamado de meretrício. E continuou a audiência.
Juiz – Em primeiro lugar, eu não sou meretrício, mas sim meritíssimo. Em segundo, ninguém está dizendo que o senhor roubou no banco, mas que soltou uma ventosidade intestinal. O senhor está me entendendo?
Réu ¬– Ahh, agora sim. Entendi sim. Pensei que o senhor estivesse me chamando de ladrão. Nunca roubei nada de ninguém. Sou trabalhador.
E puxou do bolso uma carteira de trabalho velha e amassada para fazer prova de trabalho.
Juiz – E então, são verdadeiros ou não esses fatos.
Réu – Quais fatos?
O juiz nervoso como que perdendo a paciência e alterando a voz repetiu.
Juiz – Esses que eu acabei de narrar para o senhor. O senhor não está me ouvindo?
Réu – To ouvindo sim, mas o senhor pode repetir, por favor. Eu não prestei bem atenção.
O juiz, visivelmente irritado, repetiu a leitura da denúncia e insistiu na tal da ventosidade intestinal, mas o réu não alcançava o que ele queria dizer. Resolvi ajudar, embora não devesse, pois não fui eu quem ofereci aquela denúncia estapafúrdia e descabida. Típica de quem não tinha o que fazer.
EU – Excelência, pela ordem. Permite uma observação?
O juiz educado, do tipo que soltou pipa no ventilador de casa e jogou bola de gude no tapete persa do seu apartamento, permitiu, prontamente, minha manifestação.
Juiz – Pois não, doutor promotor. Pode falar. À vontade.
Eu – É só para dizer para o réu que ventosidade intestinal é um peido. Ele não esta entendendo o significado da palavra técnica daquilo que todos nós fazemos: soltar um pum. É disso que a promotora que fez essa denúncia está acusando o senhor.
O juiz ficou constrangido com minhas palavras diretas e objetivas, mas deu aquele riso de canto de boca e reiterou o que eu disse e perguntou, de novo, ao réu se tudo aquilo era verdade e eis que veio a confissão.
Réu – Ahhh, agora sim que eu entendi o que o senhor “meretrício” quer dizer.
O juiz o interrompeu e corrigiu na hora.
Juiz – Meretrício não, meritíssimo.
Pensei comigo: o cara não sabe o que é um peido vai saber o que é um adjetivo (meritíssimo)? Não dá. É muita falta de sensibilidade, mas vamos fazer a audiência. Vamos ver onde isso vai parar. E continuou o juiz.
Juiz – Muito bem. Agora que o doutor Promotor já explicou para o senhor de que o senhor é acusado o que o senhor tem para me dizer sobre esses fatos? São verdadeiros ou não?
Juiz adora esse negócio de verdade real. Ele quer porque quer saber da verdade, sei lá do que.
Réu – Ué, só porque eu soltei um pum o senhor quer me condenar? Vai dizer que o meretrício nunca peidou? Que o Promotor nunca soltou um pum? Que a dona moça aí do seu lado nunca peidou? (ele se referia a secretária do juiz que naquela altura já estava peidando de tanto rir como todos os presentes à audiência).
O juiz, constrangido, pediu a ele que o respeitasse e as pessoas que ali estavam, mas ele insistiu em confessar seu crime.
Réu – Quando eu tentei entrar no banco o segurança pediu para eu abrir minha bolsa quando a porta giratória travou, eu abri. A porta continuou travada e ele pediu para eu levantar a minha blusa, eu levantei. A porta continuou travada. Ele pediu para eu tirar os sapatos eu tirei, mas a porta continuou travada. Aí ele pediu para eu tirar o cinto da calça, eu tirei, mas a porta não abriu. Por último, ele pediu para eu tirar todos os metais que tinha no bolso e a porta continuou não abrindo. O gerente veio e disse que ele podia abrir a porta, mas que ele me revistasse. Eu não sou bandido. Protestei e eles disseram que eu só entraria na agência se fosse revistado e aí eu fingi que deixaria só para poder entrar. Quando ele veio botar a mão em cima de mim me revistando, passando a mão pelo meu corpo, eu fiquei nervoso e, sem querer, soltei um pum na cara dele e ele ficou possesso de raiva e me prendeu. Por isso que estou aqui, mas não fiz de propósito e sim de nervoso. Passei mal com todo aquele constrangimento das pessoas ficarem me olhando como seu eu fosse um bandido e eu não sou. Sou um trabalhador. Peidão sim, mas trabalhador e honesto.

O réu prestou o depoimento constrangido e emocionado e o juiz encerrou o interrogatório. Olhei para o defensor público e percebi que o réu foi muito bem orientado. Tipo: “assume o que fez e joga o peido no ventilador. Conta toda a verdade”. O juiz quis passar a oitiva das testemunhas de acusação e eu alertei que estava satisfeito com a prova produzida até então. Em outras palavras: eu não iria ficar ali sentado ouvindo testemunhas falando sobre um cara peidão e um segurança maluco que não tinha o que fazer junto com um gerente despreparado que gosta de constranger os clientes e um juiz que gosta de ouvir sobre o peido alheio. Eu tinha mais o que fazer. Aliás, eu estava até com vontade de soltar um pum, mas precisava ir ao banheiro porque meu pum as vezes pesa e aí já viu, né?

No fundo eu já estava me solidarizando com o pum do réu, tamanho foi o abuso do segurança e do gerente e pior: por colocarem no banco dos réus um homem simples porque praticou uma ventosidade intestinal.

É o cúmulo da falta do que fazer e da burocracia forense, além da distorção do Direito Penal sendo usado como instrumento de coação moral. Nunca imaginei fazer uma audiência por causa de uma, como disse a denúncia, ventosidade intestinal. Até pum neste País está sendo tratado como crime com tanto bandido, corrupto, ladrão andando pelas ruas o judiciário parou para julgar um pum.

Resultado: pedi a absolvição do réu alegando que o fato não era crime, sob pena de termos que ser todos, processados, criminalmente, neste País, inclusive, o juiz que recebeu a denúncia e a promotora que a fez. O juiz, constrangido, absolveu o réu, mas ainda quis fazer discurso chamando a atenção dele, dizendo que não fazia aquilo em público, ou seja, ele é o único sear humano que está nas ruas e quando quer peidar vai em casa rápido, peida e volta para audiência, por exemplo.
É um cara politicamente correto. É o tipo do peidão covarde, ou seja, o que tem medo de peidar. Só peida no banheiro e se não tem banheiro ele se contorce, engole o peido, cruza as perninhas e continua a fazer o que estava fazendo como se nada tivesse acontecido. Afinal, juiz é juiz.
Moral da história: perdemos 3 horas do dia com um processo por causa de um peido. Se contar isso na Inglaterra, com certeza, a Rainha jamais irá acreditar porque ela também, mesmo sendo Rainha… Você sabe.

Rio de Janeiro, 10 de maio de 2012.

Paulo Rangel (Desembargador do Tribunal de Justica do Rio de Janeiro).

sábado, 29 de junho de 2013

Tem, mas acabou...


Tem, mas acabou...

Rodolfo Pamplona Filho
Tem, mas acabou...
Se aqui tivesse, eu daria
Se minha mãe me desse, eu teria...
E te daria, se eu tivesse...
Mas como eu não tenho,
ficamos na vontade...

Santiago-Chile, 03 de julho de 2012.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Soneto do Ódio




Soneto do Ódio.





por Antônio De Albuquerque Paixão, quinta, 5 de Julho de 2012 às 10:31 ·


A despeito de meu atual aspecto,
Carcomido, amorfo e sem rutilância,
Já fui garbo, um elegante circunspecto,
Um módico ambicioso sem ganância.

Amei o lúdico, o estético, o singelo,
Garimpei sorrisos, amores, amizades,
Amealhei porém o oposto do belo,
Recebi de troco, torvas falsidades.

Me fiz então corsário, pirata, bucaneiro,
Singrei os mares buscando fama e dinheiro,
Remanescendo a dor de inocentes mutilados.

Avaliando minhas pilhagens, meu butim.
Restou-me um coração profligado e ruim,
Pelo ódio de todos os desgraçados.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Soneto da Educação Castradora


Soneto da Educação Castradora

Rodolfo Pamplona Filho
É preciso muito cuidado
em qualquer forma de instrução,
para não podar liberdades
ou castrar espontaneidades...

Por vezes, faz sentido
deixar que o erro seja cometido
para que se possa aprender
ou mesmo se arrepender...

Sempre é necessário
ensinar mais que o abecedário
para verdadeiramente educar,

já que só lembra quem apanha
e descobre a tamanha
diferença entre podar e lapidar.

Santiago-Chile, 04 de julho de 2012.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A Linha e o Linho


É a sua vida que eu quero bordar na minha
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
Fosse bordando ponto a ponto nosso dia-a-dia
E fosse aparecendo aos poucos nosso amor
Os nossos sentimentos loucos, nosso amor
O zig-zag do tormento, as cores da alegria
A curva generosa da compreensão
Formando a pétala da rosa, da paixão
A sua vida o meu caminho, nosso amor
Você a linha e eu o linho, nosso amor
Nossa colcha de cama, nossa toalha de mesa
Reproduzidos no bordado
A casa, a estrada, a correnteza
O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza

terça-feira, 25 de junho de 2013

Sono


Sono

Rodolfo Pamplona Filho
Na fila de espera,
sem poder fazer nada,
somente nos resta
o sono...

Quando já se esgotou
toda a paciência,
somente nos resta
o sono...

Se o papo está chato
ou o discurso enfadonho,
somente nos resta
o sono...

Minha fuga,
meu consolo
ou salvação
é no sono...

Santiago-Chile, 03 de julho de 2012.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

O Habitat da Felicidade



O Habitat da Felicidade

Lula Queiroga

Morava numa caverna/ escrevia nas paredes
Morava no mar vermelho/ escrevia numa pedra
Morava num palacete/ escrevia num papiro
Morava numa palafita/ escrevia num bilhete
Morava numa oca/ escrevia com fumaça
Morava num sobrado/ esrevia num caderno
Morava no inferno/ escrevia via fax
Morava num viaduto/ escrevia com sotaque
Morava numa favela/ escrevi uma canção prá ela
Que dizia assim
Felicidade não precisa de culpa
Felicidade é o alívio da dor
Felicidade é higiene mental
Exercício da alma
Só alguém
Que na vida tanto sofreu
Todo tipo de dor
Sabe dar valor
Aos caprichos da felicidade
Felicidade não precisa de culpa
Felicidade é fome de amor
Felicidade é a temperatura
Da febre que eu sinto
Eu sei
Que amanhã pode ser tarde
Prá recuperar
O tempo que eu passo
Sonhando acordado
Com a felicidade

domingo, 23 de junho de 2013

Um e-mail que recebi, com pseudônimo...

----- Original Message -----
From: (...)
Sent: Sunday, December 18, 2011 7:33 AM
Subject: Texto para o blog! Espero que goste!

                                                                                 O nerd mais legal que eu ainda não conheci

   Há pessoas, cujo caminho você atravessa assim: sem permissão; sem educação; de supetão! É a sua curiosidade que é tão forte e desafia eventual decepção.
   Fato: na maioria das vezes, muito melhor ter ficado quieto, não ter dado chance ao azar, pois o indivíduo, um chato inveterado, devia ter permanecido no anonimato.
   Outras vezes, porém, a vida, caridosa conosco, desvela pessoas tão legais e sensíveis; inteligentes e gentis, que fazem você não se arrepender de ter sido um inconveniente e curioso.
   Foi assim comigo. Não sei por que, onde e quando. Só ouvi todo mundo dizendo que um professor, um tal  Rodolfo era “fofo” e amigo.
   Fui lá conferir. Ou melhor, fui lá solicitar, pois na era das comunidades, nada melhor do que dispensar as falsidades do “muito prazer”; “o prazer é todo meu”, e já chegar solicitando as ‘amizades’.
   Então. Estavam certos. O tal professor; juiz; doutor; boxeador; poeta e colecionador é, de fato, um sujeito raro...
   Ele pode não saber, nem ter notado, mas, ao postar seus textos, me convence, todos os dias, que palavras respiram; transpiram e inspiram, conforme o olhar adotado.
   O homem é baiano. Pablo, Fredie, Ruy, Gil e Caetano. Que terra é essa, minha gente, onde o povo confraterniza com o tédio como que cantando?
   Deve ser o mar. O sol. O dendê. Ou não. Foi a mão divina que errou na medida e lhes deu um espírito sem comparação.
   “Baiano? Ô povo preguiçoso!”. Ah... pura intriga da oposição. O ócio por aquelas bandas deve ser burlado, pois entende e rende, dá chance de ser eternizado.
   Voltando à figura ilustre, Rodolfo é nerd, concluí. Aliás, o próprio assim mesmo se diz.
   Seria porque sabe tanto, mas acha que não o quanto gostaria de saber?
   Ou deve ser porque multiplica a palavra, algo quase cristão. Confere-a  diariamente aos outros pelo olhar singelo das coisas mais simples ao que há de mais belo.
   É como se esperasse do leitor uma réplica.
   - Vamos, amigo, diga alguma coisa!
   - Falar o que, Dr.? O Sr. Já disse tudo...
   - Por favor... Por mais que eu saiba tanto, ainda não sei o quanto... Atingi você!
   E ele lava; cava e escava. Segue fundo.
   Arrebanha palavras para nos traduzir. Um espelho silabado, nada cifrado.
   Revela, sem dolo, com culpa, talvez, segredos alheios; sentimentos; devaneios, que só quem visita o seu blog entende que ninguém dele foge, quando o assunto é você, leitor.
   É uma devassa estranha.  Da minha, da sua alma. Um poeta ou um microscópio, tanto faz. Um padre publicando confissões inconfessáveis. Um divã, Madame Beatriz, quem sabe. Continente e conteúdo formidáveis!
   Por tudo isso é que eu sou pela adjetivação da palavra nerd. De tão incurável que o seu mais ilustre postulador se diz, penso que, pela genialidade, a homenagem procede.
  Advogo também a tese de que não existe mais sigilo. Se, antes, somente a privacidade e o segredo padeciam com o medo da descoberta, agora, nem mais a intimidade se faz de rogada e é aberta.
   O Pamplona a coloca cuidadosamente no pedestal e, depois, desce, despretensioso, mui ansioso, só para nos perguntar: “E aí, pessoal?"



sábado, 22 de junho de 2013

Café e Cigarro - Camila Nuñez Muitas

Café e Cigarro - Camila Nuñez Muitas


Eis um trecho, um fragmento de um texto, um seixo...
De uma poetisa cheia de azuis, cheia de Muitas.
Poetisa em conto, verso e prosa - rimas, gris
Cosmopolita cidade-mulher; idílica colina menina
                                                                                 L. Calazans


 

Primeiro trecho de longas estrofes tal qual a própria autora. Repleta de jogos misteriosos e deslumbrantes.


Em pingo lágrima...
Contentar-me-ei com o que está
Com o nó, com a água, com a lágrima...
Com o gosto do escrever
Ainda que sem saber


O poder das palavras!
As coisas malditas...
Não voltam...
As coisas benditas não voltam...
As coisas vividas simplesmente não voltam...
Não voltam em atos...
Mas voltam em palavras...
Quantas vezes quiser... Em palavras...
Palavras blasfemadas, inventadas, deturpadas, modificadas, ficcionadas, recontadas por ti , por outrem, no trem....






 As palavras se espalham como um trem espalha apito e fumaça...
As vidas vividas, só revividas através de palavras, fumaças, fantasmas!

Outro dia constatei e consumei que escrevo quando estou triste
Será por isso insisto em estar triste? para extrair palavras?


 Será que vai até aí meu desejo necessidade de gozar das palavras?
O gozar lacaniano
Não necessariamente bom nem ou ruim
Mas que misteriosamente precisa existir
Gozar o triste em mim


Gozar  das palavras para imprimir o que de mim insiste em existir
Gozando, falando, falando , gozando, sangrando, existindo, exprimido, imprimindo, fantasiando....
PALAVRAS!!!!
Não existo sem palavras, não existo sem tristezas, não existo apenas em contentamentos
Meu contentamento esta em criar












Criar palavras que advém de tristeza também...
Porque relutar contra à tristeza
Porque perseguir ser saltitante inteira feliz e contente?
CHEGA....
Chega perto de mim...entra em mim, me faz me sentir inteira, saltitante, me contenta...
Chega!
Chega bem perto, bem dentro, bem fundo, dando-me à sensação de inteira...
E começa, ANUNCIA o fim...seu FIM,anuncia meu fim.....
A morte, a metade, a finitude...
Me faça em PEDAÇOS
Assim meu bem...
deixa eu me apropriar da minha dor , da minha metade, dos meus pedaços...
Deixa eu poder exprimir em PALAVRAS
fragmentadas
cada pedaço que tento juntar.



Camila Nuñez Muitas

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Cyberstalking

Cyberstalking

Rodolfo Pamplona Filho
Acuado, sem conseguir respirar
Perseguido, sem ter o que fazer.
O monitor, não pretendo mais olhar,
e contato, não quero nem saber.

O Medo me assalta em todo lugar
Parece que vou ser encontrado
por quem eu não quero encarar
ao vivo ou mesmo no teclado.

Só quem sabe como é a dor
de encarar seu perseguidor
entende o completo desespero

de ter raiva do computador
ou de sentir, da vida, pavor,
por nunca mais se sentir inteiro.


São Paulo, 07 de junho de 2013.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Autonomia

Autonomia

-  Wislawa Szymborska

 


 Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:

deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.


(Tradução coletiva - inimigo rumor)

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Bateria Inesgotável


Bateria Inesgotável

Rodolfo Pamplona Filho
Não adianta reclamar,
ele não vai aquietar...
é da sua essência
nunca pedir clemência...

Seja cantando, correndo,
pulando ou gritando,
nosso pequeno astro
deixará sempre seu rastro,

mesmo quando resolva parar,
para um pit-stop compreensível
apenas para redirecionar
tanta energia disponível...

Ele é e eternamente será
o ponto alto de qualquer festa,
cuja alegria nunca cessará
e é tudo que nos resta

da lembrança da infância perdida
e da inocência outrora interminável,
em que todo sentido da vida
era ter uma bateria inesgotável...

Santiago-Chile, 02 de julho de 2012.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Escravos do futuro




Escravos do futuro.

Há algum tempo, pensei em escrever breves linhas sobre este tema.
Inúmeras vezes testemunho pessoas agrilhoadas, presas ao futuro, ao que está por vir, negligenciando, gravemente o seu presente.
É o aluno que nunca está feliz, sempre adiando a sua felicidade para quando passar em um concurso; é o colega de trabalho que vive a se queixar do seu oficio, sempre aguardando a promoção, o aumento do salário, ou o gozo das férias; é o amigo que só se imagina feliz quando encontrar uma nova companheira, enfim.
Eu mesmo, por vezes, prostro-me melancólico, preocupado com o futuro das minhas filhas, dos meus pais, enfim, temeroso em face do amanhã.
Ora, é claro que nós sempre teremos planos para o futuro e, com isso, naturais preocupações!
Isso é humano e compreensível.
O perigo está quando nós nos aprisionamos nesta dimensão.
As pessoas que vivem eternamente alimentando os medos existentes no umbral do futuro perdem o seu presente.
Deixam de ser felizes hoje.
Esquecem que o presente, um dia, já foi o futuro.
E, com isso, vivem eternamente tristes.
Condenadas ao passado.
Por isso, amigos do coração, precisamos ter fé em Deus, ter fé na vida, e abrir a rosa da nossa sensibilidade para os pequenos detalhes do nosso dia de hoje.
Para as coisas boas que a vida nos dá.
E são tantas.
Por exemplo.
Ninguém, ou quase ninguém, dá atenção ao nascer do sol.
Você já acordou cedinho e reverenciou o astro rei?
Quando o fizer, certamente perceberá que algo grandioso ocorre ao nascer de cada dia.
É como se o universo, em cada manhã, nos desse a oportunidade de sermos felizes.
Com a certeza de que, por mais que enfrentemos tempestades e sombras, no dia seguinte, o sol brilhará novamente, imponente, afastando do éter cósmico todas as trevas.
Um abraço e um maravilhoso dia!

Pablito
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segunda-feira, 17 de junho de 2013

Soneto do C(Qu)arentão


Soneto do C(Qu)arentão

Rodolfo Pamplona Filho
Quarentão e Carentão
é minha melhor definição,
clamando por atenção
de toda a população,

louco por um carinho
ou por um beijinho
de quem só quero bem
e que tem meu amor também...

Será que eu preciso
mais quarenta anos viver
para conseguir atender

minha necessidade de riso,
abraço, dengo e afeto
de todos que estão, de mim, perto?

Santiago-Chile, 03 de julho de 2012.

domingo, 16 de junho de 2013

Meu Sonho de Vida

Meu Sonho de Vida

Anderson Rico

Será que a vida seria tão bela
E gostaríamos tanto dela
Se ela sempre fosse um sonho
Primavera sem outono?
A vida é feita de altos e baixos
Se me levanto é porque caio
Mas cair faz parte
Faz da vida uma arte
O importante mesmo é que se eu cair eu sempre me levante
E não esmoreça nem por um instante
Pois se tem uma coisa que eu quero nessa vida
É essa tal de magistratura trabalhista.

05/08/2012

sábado, 15 de junho de 2013

Sentimento Inominado


Sentimento Inominado

Rodolfo Pamplona Filho
Vivo constantemente
um sentimento inominado
ao tentar entender
se falo para o lado
certo do cérebro amado

Há muito constatei
que o lado esquerdo,
que serve para a lógica,
matemática e coerência,
é visivelmente retardado

Já, literalmente, por outro lado,
o direito, que é reservado
para a sensibilidade,
interpretação e poesia,
é, sem dúvida, super-dotado

E assim vou vivendo,
na inconstância do momento,
sem saber se o que digo
é o inicio da solução
ou a causa da confusão.

Se o lado esquerdo
controla a linguagem
e a razão, como viver
para, um dia, saber
onde guardo minha emoção?

Se o lado direito
é bom em reconhecer rostos,
o que seria de quem
perde o adolescente poder
de julgar pela aparência?

Se o lado esquerdo
detecta o presente
e racionaliza o lugar no universo,
o lado direito é onisciente
e onipresente em qualquer verso.

Por isso, o esforço em entender
se mistura com o prazer
de simplesmente conviver,
a cada dia, com cada lado
do chamado sentimento inominado.

Salvador, 09 de junho de 2012.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO KING

 




O EVANGELHO SEGUNDO KING
Boaventura de Sousa Santos
por Márcio-André de Sousa

deve haver um deus
que não nos governe

canine wisdom

Boaventura de Sousa Santos é um cara estranho. Além de ser o único sujeito no mundo que conjuga o verbo ir na segunda pessoa do plural, escreveu um dos livros de poesia mais estranhos que eu já tive a oportunidade de ler. Escrita INKZ, antimanifesto para uma arte incapaz, lançado   pela editora Aeroplano, é estranho em seu sentido primordial – se refere àquilo que é excêntrico, àquele que é de fora. Se Escrita INKZ fosse estranho meramente por ser desconcertante ou extremamente inovador, características que o livro possui, não faria jus à estranheza de seu autor. Mas ele é, em sua estranheza verdadeira, uma possibilidade real de se pensar o outro, esse excêntrico, esse estranho tão próximo que escapa de nós.
É preciso salientar que Escrita INKZ é um livro bilíngüe. Como todo livro bilíngüe, é dividido ao meio, deixando cada uma de suas duas faces de papel reservada a uma língua diferente. Mas essa divisão simétrica, deveras dual, única possibilidade de articulação num livro que permita ser aberto por uma das extremidades, separa, não duas línguas humanas, mas uma língua humana e uma língua canina – criação de uma terceira página possível dentro das limitações da tecnologia de um livro. Em poucas palavras, é um livro editado em português e em cão. De um lado, as imagens narradas, sem que haja necessariamente um narrador, desdobram uma série de personagens arquetípicos (observados, é bom dizer, nunca observadores) articulados em suas seis mónadas – palavra utilizada por Boaventura para se referir às imagens concomitantes que figuram no homem. A saber: figura, cidade, andamento, momento, mulher nua e orador-ninguém. Essas imagens também poderiam dar conta, numa interpretação bem particular, de tensões comoindivíduo x todo, mudança x permanênciaanimus x anima; sem maiores explanações.
Do outro lado, o lado normalmente reservado à língua traduzida, a mónada-cão, chamada King. Dessa vez, além de nomeado, o personagem é um observador crítico e interferente. A sua especificidade é ser a voz autônoma e livre das outras mónadas. Ser nomeado lhe dá o poder de dizer algo verdadeiro sobre os observados. E é justamente por isso, por ser “livre”, por ser uma janela, como diz o autor, que a mónada-cão, apesar de ser dependente de todas as outras, é a única que se expressa na primeira pessoa.
No prefácio, ou melhor, no desfácio do livro, King, como todo cão, é impedido de entrar em um bar. Esse fato é o que revela sua condição fundamental: a de excluído. É essa condição que vai constituir sua verdadeira força de atração. King é aquele que por ser não-humano, não-civilizado, não-eu, tem o poder de traduzir essa língua que, por estarmos nela inseridos, não somos capazes de compreender. Para cada fala da voz que nomeia as atitudes em nossas próprias escalas de compreensão, King nos dá uma tradução canina, por isso humana e compreensível. Ladrar é orgânico, Falar é sobressalente. King não aluga o cérebro a pensamentos, mas aponta aqueles que o fazem. Um anjo exterminador às avessas, mundano e impotente.
Se
Uma figura morre
Atropelada pelo trânsito interior
Uma figura faz todos os dias ginástica
Para caber em si
Uma figura entra no hospital
Com uma urgência fora de prazo
Uma figura sofre escoriações
Numa disputa com as mãos

(p. 60)
King avalia:
Noutro dia foi atropelada pelo senso comum
Quase a matou
Para acordar é preciso ter a dimensão dos outros
Para dormir é preciso ter dimensão própria

(...)
Vejo apertos de mão
Que são combates
Há mãos que não recuperam
Nunca mais

(p. 61)
A tradução kingueana, coisa na boca de qualquer vira-latas, age como um transmutador do sentido poético para o que eu chamaria de sentido metapoético. Essa terminologia um tanto fajuta é uma maneira paliativa de evitar uma leitura simplista calcada nos conceitos clássicos desubjetividade e objetividade. O papel do King não termina no de mero observador desses transeuntes. King é mónada, e por isso, parte constituinte das outras mónadas, logo, não é independente, como acontece nos elementos da classificação kantiana de sujeito e objeto. King é criador e criatura, observador, mas também, fruto. O que diz não melhora ou piora o dito da primeira página, mas o reenvia criptografado, mordido, babado e cavoucado, aos seus donos verdadeiros. Essa nova versão possui agora uma estética mais mundana. As imagens do livro, humanas ou caninas, que poderiam ser vulgarmente qualificadas como surreais por algum crítico reducionista, mas que, sabe-se, e é preciso um espírito poético para sabê-lo, revelam a face real das coisas:
Uma figura abre a porta
E surpreende-se com um buraco enorme
Deve ter sido aberto de noite
A rua mal se vê ao longe:
É possível sair de casa sem entrar na rua?

(p. 48)
Versos como este nada mais são que verdadeiras constatações do real, obscurecido pelo simulacro do cotidiano. King rosna sobre o papel e regurgita:
As ruas sempre foram feitas de buracos
Os intervalos entre eles é que são recentes

(p. 49)
A figura pode agora, graças aos retoques plásticos da saliva de King, tentar soluções de buracos ou intervalos.
Através desse jogo de criador e criatura, troca e transmutação, o leitor perde a própria dimensão de sua “subjetividade”, esquece o eu e se entrega a esse outro-eu. O leitor já não é leitor, é King, é figura, é cidade e todas as outras mónadas a ver-se no microscópio de sua própria fragilidade. Passamos a nos questionar se há um autor. Se foi Boaventura quem criou King ou King quem criou Boaventura. Separadamente, cada um deles segreda a criação do outro. Em que mundo confiar então? O “verdadeiro” ou o “poético”? Se pensarmos em Octávio Paz, não há diferença. Talvez agora fique claro o sentido pleno da terceira página possível citada anteriormente. Essa terceira página não se detém em nenhuma fronteira. Como na complementaridade quântica, ambas as páginas, direita e esquerda, apesar de serem “excludentes”, representam aspectos igualmente essenciais da coisa referida, e só através desse contraste é que se pode dizer algo realmente verdadeiro desta coisa. A terceira pagina é então o próprio real. Mais: é o real mais real que o real. É o real evidenciado através das diferenças.
A escolha de um cão para figurar como o tradutor da in-diferença não é aleatória. O livro é essencialmente anti-estético, anti-sublime. Para ser verdadeiro, King não pode ser nem consoante nem dissonante. Ele não se enquadra numa classificação achatada. É preciso que ele seja paralelo, tenha a convivência do homem, mas não seja homem, pois
Só os cães
Sabem
Universalizar para dentro

(p. 151)
A Literatura sempre teve o poder de oferecer imagens fundadoras ao homem, imagens reais que possibilitam a solidificação da própria realidade. Imagens compactas que, como num caleidoscópio, se desdobrem em milhares de questões fundantes. Aquiles, Orlando, Don Quixote, Macunaíma, os deuses de Hölderlin, o mar em Saint-John Perse, são imagens fundadoras-questionantes de seu tempo, de sua terra e do mundo subseqüente. Parece que isso foi esquecido pelos poetas de hoje. A ninguém interessa mais propor imagens fundamentais, e o próprio Boaventura evidencia isso ao falar, no desfácio, do vazio de sua geração. Seu cão filósofo assume-se então como a mais forte das imagens a propor questões para o homem moderno. Mas apesar dessa imagem-cão chamar-se King, ela não representa a carta do rei, não tem poder para, caminhando em todas as direções, ser o centro do tabuleiro, nem participa de uma grande tragédia shakespeareana. King não é, e nem poderia ser, por exemplo, um poodle. King é o cão que ninguém quer, escorraçado, vagando a esmo pelas ruas, enxotado dos restaurantes e lambendo suas feridas. King é a imagem daquilo que não desejamos ver: o lado feio e sujo do mundo. Nossa geração prefere os lugares limpos, os shoppings, as ruas bem iluminadas, as pessoas alinhadas, a limpeza visual do cinema norte-americano e a assepsia acústica da música pop. King prefere a sujeira dos filmes de Godart, a imperfeição do jazz dos guetos, as ruas tortas, as casas abandonadas, os transeuntes desgovernados caminhando desconexos e sem sentido. King é o cão picaresco, chapliniano, amante das mulheres e fugitivo da policia. King é a evidência mais forte da hipocrisia e da solidão humana:
Uma figura geométrica
Para só ter liberdades
Previsíveis 

(p. 26)
Vive no meio do tempo
E o tempo no meio dela
Mas não se conhecem

(p. 31)
Num mundo ainda tão centralizado e plano, King é aquele que fareja as margens à beira do mundo. Percebemos agora que a grande questão a ser evidenciada, pelo livro como um todo, é o que há por trás das aparências da maravilhosa ordem moderna e quais os mecanismos de enquadramento sobre os indivíduos. A falsidade das vivências ofertadas pelo simulacro do sistema de produção e do consumo, oprimindo e escondendo o real real revelado pela terceira página. A cidade está a ser produzida/ Em algum lugar/ Tudo que se passa é analogia/ De alguma outra coisa.Como transfigurar essa realidade, King é quem se encarrega de tentar responder. Não como um pensador, mas como um mártir, que vai dar seu corpo canino à experiência do excluído. King é a resposta à questão da figura na sala de banho: onde estou quando não estou aqui? Somente sendo o outro é que podemos ter a dimensão de nós mesmos:
Se os humanos ladrassem
Seriam mais humanos

(p. 133)
Na margem
Quem fala é falado

(p. 131)
Ainda que o suposto autor de Escrita INKZ afirme que King vive com ele, sabemos que Boaventura é ocupado o suficiente para saber por onde o seu cão anda. Quando se dá conta de encontrá-lo, ele já vagueou por todos os becos de todas as cidades do mundo. King, ademais, é um cão cosmopolita.
Sou um flâneur
Gosto de medir o movimento da cidade
Pelo pulso das formigas

(p. 91)
A ironia, como marca desse nosso mundo moderno, é sua filosofia, seu canine wisdom, formulada na escrita do chão, à altura do focinho. Escrita INKZ é um livro lúdico, divertido, coisa rara. Talvez por isso, polêmico. Trata o mundo com ironia desconcertante a ironizar a própria ironia do mundo.
Boaventura, por profissão sociólogo, tem se saído melhor do que a maioria dos poetas de profissão, que, quando raro, só sabem fazer má sociologia. Escrita INKZ não é meramente poesia do cotidiano, como tem feito, a torto e a direito, esses poetas. O cotidiano é a imagem eleita pelo autor como espaço possível para seus personagens-instantes serem “observados” por seu personagem-permanente, King. Seu livro é uma cosmogonia do presente incapaz de dizer-se a si mesmo, pois o presente, matéria feita a todo instante, escapa, pela previsibilidade da mudança, da imprevisibilidade permanente do próprio livro. Aliás, como toda obra que permanece, Escrita INKZ será sempre uma incógnita para qualquer presente, este ou futuro. Ele só pode ofertar o mundo à medida que o questiona e o descompreende. E sua descompreensão o coloca em profunda sintonia com as questões mais cruciais de nossa humanidade hoje. O poeta, sábia divindade descida a terra no corpo de seu messias-cão, aconselha-nos a ser menos humano, menos perfeito. Pronto para salvar o mundo da soberba, a partir do evangelho da mediocridade:
Dormir é o ato mais próximo
De deus
A seguir
É foder

(p.237)
Em sua escrita ideogramática, quase um jogo imagist, onde imagens se opõem com forte contraste, sem diluição, sem explicação, sem amenizações, suas frases concisas são versículos proféticos. E do choque abrupto dessas imagens contrastantes, Boaventura vai construindo pouco a pouco o evangelho do King. Nele, sua mensagem, sua boa nova, ainda mais nova, e tão conveniente para um mundo à espera de novas palavras de ética, é esta: o homem é histórico e esse é seu maior dom. Viver e fazer história são o mesmo. Esse é o ensinamento que nos deixa King, ao final, crucificado pela solidão de ser outro. Consola-o saber que o juízo final será um juízo-cão. Fazer história é deixar-se ser falho, caído, longe da perfeição ofertada, à distância, pelo Deus dos vencedores, esquecer o sublime que cunhou para alcançar e deixar-se ser um pouco cão


quinta-feira, 13 de junho de 2013

Soneto do Último Romance...


Soneto do Último Romance...

Rodolfo Pamplona Filho
Voce é meu último romance...
Você é, na realidade,
o meu primeiro e único lance,
a quem me entrego de verdade...

Quero amar como se não houvesse
qualquer impedimento ou estrutura,
pois minha alma envelhece,
se não me entrego à doce loucura

de apenas em você pensar...
de nunca me arrepender de tentar
aproveitar cada sensação vivida,

após alguém finalmente encontrar
com quem possa compartilhar
a cama, a palavra e a vida.

Salvador, 09 de junho de 2012.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Dia dos Namorados


Dia dos Namorados




Queria escrever sobre o dia de hoje

Falar sobre os namorados

Escrever sobre paixão, fogo e amor

Sem deixar tristes os que estão separados



Quem não tem namorado procura arranjar

Busca levantar a moral

Muitos se deprimem por não conseguir

Mesmo sabendo ser o dia comercial



Quem namorado já possui

Procura organizar algum divertimento

Reserva restaurante, motel ou cineminha

Buscando romantizar o momento



Aos tantos apaixonados:

Que se amem com alegria

Nada de procurar desarmonia

Celebrem os vossos encontros

Aproveitem o dia!