O EVANGELHO SEGUNDO KING 
Boaventura de Sousa Santos 
por Márcio-André de Sousa 
 Boaventura de Sousa Santos é um cara estranho. Além de ser o único sujeito no mundo que conjuga o verbo ir na segunda pessoa do plural, escreveu um dos livros de poesia mais estranhos que eu já tive a oportunidade de ler. Escrita INKZ, antimanifesto para uma arte incapaz, lançado pela editora Aeroplano, é estranho em seu sentido primordial – se refere àquilo que é excêntrico, àquele que é de fora. Se Escrita INKZ fosse estranho meramente por ser desconcertante ou extremamente inovador, características que o livro possui, não faria jus à estranheza de seu autor. Mas ele é, em sua estranheza verdadeira, uma possibilidade real de se pensar o outro, esse excêntrico, esse estranho tão próximo que escapa de nós. 
É preciso salientar que Escrita INKZ é um livro bilíngüe. Como 
todo livro bilíngüe, é dividido ao meio, deixando cada uma de suas duas faces de 
papel reservada a uma língua diferente. Mas essa divisão simétrica, deveras 
dual, única possibilidade de articulação num livro que permita ser aberto por 
uma das extremidades, separa, não duas línguas humanas, mas uma língua humana e 
uma língua canina – criação de uma terceira página possível dentro das 
limitações da tecnologia de um livro. Em poucas palavras, é um livro editado em 
português e em cão. De um lado, as imagens narradas, sem que haja 
necessariamente um narrador, desdobram uma série de personagens arquetípicos 
(observados, é bom dizer, nunca observadores) articulados em suas 
seis mónadas – palavra utilizada por Boaventura para se referir às 
imagens concomitantes que figuram no homem. A saber: figura, cidade, 
andamento, momento, mulher nua e orador-ninguém. Essas imagens também 
poderiam dar conta, numa interpretação bem particular, de tensões 
comoindivíduo x todo, mudança x permanência, animus x anima; 
sem maiores explanações. 
Do outro lado, o lado normalmente reservado à língua traduzida, 
a mónada-cão, chamada King. Dessa vez, além de nomeado, o personagem é 
um observador crítico e interferente. A sua especificidade é ser a voz 
autônoma e livre das outras mónadas. Ser nomeado lhe dá o poder de dizer 
algo verdadeiro sobre os observados. E é justamente por isso, por ser “livre”, 
por ser uma janela, como diz o autor, que a mónada-cão, apesar de ser 
dependente de todas as outras, é a única que se expressa na primeira pessoa. 
No prefácio, ou melhor, no desfácio do livro, King, como 
todo cão, é impedido de entrar em um bar. Esse fato é o que revela sua condição 
fundamental: a de excluído. É essa condição que vai constituir sua verdadeira 
força de atração. King é aquele que por ser não-humano, não-civilizado, não-eu, 
tem o poder de traduzir essa língua que, por estarmos nela inseridos, não somos 
capazes de compreender. Para cada fala da voz que nomeia as atitudes em nossas 
próprias escalas de compreensão, King nos dá uma tradução canina, por isso 
humana e compreensível. Ladrar é orgânico, Falar é sobressalente. King 
não aluga o cérebro a pensamentos, mas aponta aqueles que o fazem. Um anjo 
exterminador às avessas, mundano e impotente. 
Se 
Uma figura morre 
Atropelada pelo trânsito interior 
Uma figura faz todos os dias ginástica 
Para caber em si 
Uma figura entra no hospital 
Com uma urgência fora de prazo 
Uma figura sofre escoriações 
Numa disputa com as mãos (p. 60) 
King avalia: 
Noutro dia foi atropelada pelo senso comum 
Quase a matou 
Para acordar é preciso ter a dimensão dos outros 
Para dormir é preciso ter dimensão própria (...) 
Vejo apertos de mão 
Que são combates Há mãos que não recuperam Nunca mais (p. 61) 
A tradução kingueana, coisa na boca de qualquer vira-latas, age 
como um transmutador do sentido poético para o que eu chamaria de sentido 
metapoético. Essa terminologia um tanto fajuta é uma maneira paliativa de evitar 
uma leitura simplista calcada nos conceitos clássicos 
desubjetividade e objetividade. O papel do King não termina no 
de mero observador desses transeuntes. King é mónada, e por isso, parte 
constituinte das outras mónadas, logo, não é independente, como 
acontece nos elementos da classificação kantiana de sujeito e objeto. King é 
criador e criatura, observador, mas também, fruto. O que diz não melhora ou 
piora o dito da primeira página, mas o reenvia criptografado, mordido, babado e 
cavoucado, aos seus donos verdadeiros. Essa nova versão possui agora uma 
estética mais mundana. As imagens do livro, humanas ou caninas, que poderiam ser 
vulgarmente qualificadas como surreais por algum crítico reducionista, 
mas que, sabe-se, e é preciso um espírito poético para sabê-lo, revelam a face 
real das coisas: 
Uma figura abre a porta 
E surpreende-se com um buraco enorme Deve ter sido aberto de noite A rua mal se vê ao longe: É possível sair de casa sem entrar na rua? (p. 48) 
Versos como este nada mais são que verdadeiras constatações do 
real, obscurecido pelo simulacro do cotidiano. King rosna sobre o papel e 
regurgita: 
As ruas sempre foram feitas de buracos 
Os intervalos entre eles é que são recentes (p. 49) 
A figura pode agora, graças aos retoques plásticos da saliva de 
King, tentar soluções de buracos ou intervalos. 
Através desse jogo de criador e criatura, troca e transmutação, o 
leitor perde a própria dimensão de sua “subjetividade”, esquece o eu e se 
entrega a esse outro-eu. O leitor já não é leitor, é King, é figura, é cidade e 
todas as outras mónadas a ver-se no microscópio de sua própria 
fragilidade. Passamos a nos questionar se há um autor. Se foi Boaventura quem 
criou King ou King quem criou Boaventura. Separadamente, cada um deles segreda a 
criação do outro. Em que mundo confiar então? O “verdadeiro” ou o “poético”? Se 
pensarmos em Octávio Paz, não há diferença. Talvez agora fique claro o sentido 
pleno da terceira página possível citada anteriormente. Essa terceira página não 
se detém em nenhuma fronteira. Como na complementaridade quântica, ambas as 
páginas, direita e esquerda, apesar de serem “excludentes”, representam aspectos 
igualmente essenciais da coisa referida, e só através desse contraste é que se 
pode dizer algo realmente verdadeiro desta coisa. A terceira pagina é então o 
próprio real. Mais: é o real mais real que o real. É o real evidenciado através 
das diferenças. 
A escolha de um cão para figurar como o tradutor da in-diferença 
não é aleatória. O livro é essencialmente anti-estético, anti-sublime. Para ser 
verdadeiro, King não pode ser nem consoante nem dissonante. Ele não se enquadra 
numa classificação achatada. É preciso que ele seja paralelo, tenha a 
convivência do homem, mas não seja homem, pois 
Só os cães 
Sabem Universalizar para dentro (p. 151) 
A Literatura sempre teve o poder de oferecer imagens fundadoras ao 
homem, imagens reais que possibilitam a solidificação da própria realidade. 
Imagens compactas que, como num caleidoscópio, se desdobrem em milhares de 
questões fundantes. Aquiles, Orlando, Don Quixote, Macunaíma, os deuses de 
Hölderlin, o mar em Saint-John Perse, são imagens fundadoras-questionantes de 
seu tempo, de sua terra e do mundo subseqüente. Parece que isso foi esquecido 
pelos poetas de hoje. A ninguém interessa mais propor imagens fundamentais, e o 
próprio Boaventura evidencia isso ao falar, no desfácio, do vazio de 
sua geração. Seu cão filósofo assume-se então como a mais forte das imagens a 
propor questões para o homem moderno. Mas apesar dessa imagem-cão chamar-se 
King, ela não representa a carta do rei, não tem poder para, caminhando em todas 
as direções, ser o centro do tabuleiro, nem participa de uma grande tragédia 
shakespeareana. King não é, e nem poderia ser, por exemplo, um poodle. King é o 
cão que ninguém quer, escorraçado, vagando a esmo pelas ruas, enxotado dos 
restaurantes e lambendo suas feridas. King é a imagem daquilo que não desejamos 
ver: o lado feio e sujo do mundo. Nossa geração prefere os lugares limpos, os 
shoppings, as ruas bem iluminadas, as pessoas alinhadas, a limpeza visual do 
cinema norte-americano e a assepsia acústica da música pop. King prefere a 
sujeira dos filmes de Godart, a imperfeição do jazz dos guetos, as ruas tortas, 
as casas abandonadas, os transeuntes desgovernados caminhando desconexos e sem 
sentido. King é o cão picaresco, chapliniano, amante das mulheres e fugitivo da 
policia. King é a evidência mais forte da hipocrisia e da solidão humana: 
Uma figura geométrica 
Para só ter liberdades Previsíveis (p. 26) 
Vive no meio do tempo 
E o tempo no meio dela Mas não se conhecem (p. 31) 
Num mundo ainda tão centralizado e plano, King é aquele que fareja 
as margens à beira do mundo. Percebemos agora que a grande questão a ser 
evidenciada, pelo livro como um todo, é o que há por trás das aparências da 
maravilhosa ordem moderna e quais os mecanismos de enquadramento sobre os 
indivíduos. A falsidade das vivências ofertadas pelo simulacro do sistema de 
produção e do consumo, oprimindo e escondendo o real real revelado pela terceira 
página. A cidade está a ser produzida/ Em algum lugar/ Tudo que se passa é 
analogia/ De alguma outra coisa.Como transfigurar essa realidade, King é 
quem se encarrega de tentar responder. Não como um pensador, mas como um mártir, 
que vai dar seu corpo canino à experiência do excluído. King é a resposta à 
questão da figura na sala de banho: onde estou quando não estou 
aqui? Somente sendo o outro é que podemos ter a dimensão de nós mesmos: 
Se os humanos ladrassem 
Seriam mais humanos (p. 133) 
Na margem 
Quem fala é falado (p. 131) 
Ainda que o suposto autor de Escrita INKZ afirme que King vive com 
ele, sabemos que Boaventura é ocupado o suficiente para saber por onde o seu cão 
anda. Quando se dá conta de encontrá-lo, ele já vagueou por todos os becos de 
todas as cidades do mundo. King, ademais, é um cão cosmopolita. 
Sou um flâneur 
Gosto de medir o movimento da cidade Pelo pulso das formigas (p. 91) 
A ironia, como marca desse nosso mundo moderno, é sua filosofia, 
seu canine wisdom, formulada na escrita do chão, à altura do focinho. 
Escrita INKZ é um livro lúdico, divertido, coisa rara. Talvez por isso, 
polêmico. Trata o mundo com ironia desconcertante a ironizar a própria ironia do 
mundo. 
Boaventura, por profissão sociólogo, tem se saído melhor do que a 
maioria dos poetas de profissão, que, quando raro, só sabem fazer má sociologia. 
Escrita INKZ não é meramente poesia do cotidiano, como tem feito, a torto e a 
direito, esses poetas. O cotidiano é a imagem eleita pelo autor como espaço 
possível para seus personagens-instantes serem “observados” por seu 
personagem-permanente, King. Seu livro é uma cosmogonia do presente incapaz de 
dizer-se a si mesmo, pois o presente, matéria feita a todo instante, escapa, 
pela previsibilidade da mudança, da imprevisibilidade permanente do próprio 
livro. Aliás, como toda obra que permanece, Escrita INKZ será sempre uma 
incógnita para qualquer presente, este ou futuro. Ele só pode ofertar o mundo à 
medida que o questiona e o descompreende. E sua descompreensão o coloca 
em profunda sintonia com as questões mais cruciais de nossa humanidade hoje. O 
poeta, sábia divindade descida a terra no corpo de seu messias-cão, 
aconselha-nos a ser menos humano, menos perfeito. Pronto para salvar o mundo da 
soberba, a partir do evangelho da mediocridade: 
Dormir é o ato mais próximo 
De deus A seguir É foder (p.237) 
Em sua escrita ideogramática, quase um jogo imagist, onde 
imagens se opõem com forte contraste, sem diluição, sem explicação, sem 
amenizações, suas frases concisas são versículos proféticos. E do choque abrupto 
dessas imagens contrastantes, Boaventura vai construindo pouco a pouco o 
evangelho do King. Nele, sua mensagem, sua boa nova, ainda mais nova, e tão 
conveniente para um mundo à espera de novas palavras de ética, é esta: o homem é 
histórico e esse é seu maior dom. Viver e fazer história são o mesmo. Esse é o 
ensinamento que nos deixa King, ao final, crucificado pela solidão de ser outro. 
Consola-o saber que o juízo final será um juízo-cão. Fazer história é 
deixar-se ser falho, caído, longe da perfeição ofertada, à distância, pelo Deus 
dos vencedores, esquecer o sublime que cunhou para alcançar e deixar-se ser um 
pouco cão 
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sexta-feira, 14 de junho de 2013
O EVANGELHO SEGUNDO KING
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