sábado, 8 de junho de 2013

UMA GOTA DE CHUVA NA CARA


UMA GOTA DE CHUVA NA CARA


"Se não fosse gago era-me fácil conversar com ela. Mora três quarteirões adiante do meu, apanhamos o mesmo autocarro todos os dias, eu na quarta paragem e ela na quinta, olhamos imenso um para o outro durante os vinte minutos


(meia hora quando há mais trânsito)


do percurso entre o nosso bairro e o ministério. ela trabalha dois andares acima de mim, subimos no mesmo elevador sempre a olharmo-nos, às vezes parece que me sorri.


(tenho quase a certeza que me sorri)


vemo-nos de longe no refeitório cada qual com o seu tabuleiro, ia jurar que me fez sinal para me sentar na mesa dela, não me sento por não me ter a certeza que me faz sinal


(acho que tenho a certeza que me faz sinal)


voltamos a olhar-nos no elevador, ela volta a sorrir quando saio, volta a olhar para mim no autocarro de regresso a casa e não sou capaz de falar com ela por causa da gaguez. Ou melhor não é só a gaguez: é que como as palavras não me saem, como quero exprimir-me e não consigo, fico roxo com os olhos de fora


(pus-me diante do espelho e é verdade)


de boca aberta, cheia de dentes, a tropeçar numa consoante interminável, a encher o ar, à minha volta de um temporal de perdigotos aflitos, e não quero que ela repare como me torno ridículo, como me torno feio, como me torno, fisicamente, numa carrança de chafariz, a cuspir água aos soluços num mugido confuso. Com os meus colegas do emprego é simples: faço que sim ou que não com a cabeça, resumo as respostas a um gesto vago, tranformo um discurso num erguer de sobrancelhas, reduzo as minhas opiniões sobre a vida a um encolher de ombros


(mesmo se não fosse gago continuaria a reduzir as minhas opiniões sobre a vida a um encolher de ombros)


ao passo que com ela seria obrigado a dizer coisas por extenso, a conversar, a segredar-lhe ao ouvido


(se eu me atrevesse a segredar-lhe ao ouvido aposto que tirava logo o lenço da carteira para enxugar as bochechas e fugia assustada)


a segredar-lhe ao pescoço, a enredá-la numa teia de frases


(as mulheres, julgo eu, adoram ser enredadas numa teia de frases)


enquanto lhe pegava na mão, descia as pálpebras, esticava oa lábios na expressão infinitamente estúpida dos namorados prestes ao beijo, e agora ponham-se no lugar dela e imaginem um gago desorbitado a aproximar-se de vocês escarlate de esforço, a abrir e a fechar a boca prisioneiro de uma única sílaba, a empurrar com o corpo todo um


- Amo-te


que não sai, que não consegue sair, que não sairá nunca, um


-Amo-te


que me fica preso na língua num rolhão de saliva, eu a subir e a descer os braços, a desapertar a gravata, a desabotoar o botão do colarinho, o


- Amo-te


nada, ou pior que nada, substituído por um berro de gruta, ela a fastar-me com os braços estendidos, a levantar-se, a desaparecer porta fora espavorida, e eu sozinho na pastelaria debruçando-me ainda ofegante para o chá de limão e o pastel de nata da minha derrota definita. Não posso cair na asneira de conversar com ela, é óbvio que tenho de me conformar com os olhares do autocarro, com o sorriso no elevador, com o convite mudo no refeitório até ao dia em que ela aparecer de mão dada com um sujeito qualquer, se calhar mais velho do que eu mas capaz de lhe cochichar na orelha sem esforço


(há pessoas que cochicham sem esforço)


o que eu adorava explicar-lhe e não consigo até ao dia em que deixar de me olhar, de sorrir, de convidar-me a sentar à sua frente durante o almoço


(sopa, um prato à escolha entre dois, doce ou fruta, uma carcaça e uma garrafa pequena de vinho, tudo por quatrocentos e quarenta escudos não é caro)


e eu a vê-la na outra ponta do autocarro a poisar a testa no ombro de um sujeito qualquer, sem reparar em mim, sem reparar sequer em mim como se eu nunca tivesse existido e compreender que por ter deixado de existir não existi nunca, e nessa noite ao olhar-me ao espelho não verei ninguém ou verei quando muito um par de olhos


(os meus)


que me censuram, um par de olhos com aquilo que ia jurar ser uma lágrima a tremer nas pestanas e a descer devagarinho pela bochecha fora, ou talvez não seja uma lágrima é apenas


(porque será inverno)


uma gota de chuva, sabem como é, a correr na vidraça."



António Lobo Antunes, in "Algumas Crónicas"

Nenhum comentário:

Postar um comentário