sábado, 2 de novembro de 2013

Madrepérola


Madrepérola

Ela mirava o homem, aparentando extrema atenção. Quem visse se admiraria. Normalmente as pessoas não fazem assim. Deixam o conversador dizer palavras, frases, histórias, dramas, prosopopeias, sem sequer demonstrarem ouvir. Viram-se de lado, mexem nos dedos, coçam os olhos e narizes. Se indagadas de repente sobre o assunto falado, são incapazes de se lembrar do fio da conversação. Lia olhava Rodrigo como se visse um santo se materializar.  Fazia tempo que não saía com alguém do sexo oposto. Com homens, apenas trocava palavras necessárias. Na verdade, haviam se passado dois ou três anos da sua decisão de evitá-los, porque com um deles passara pelos piores momentos da vida. Não morrera por pouco. Trazia no corpo e na alma as marcas das sevícias, vindas daquele que pensara digno do seu amor, porquanto acreditava nesse sentimento. Levara-o para casa e para a cama. Dera-lhe conforto e carinho. Gradativamente, ele mudara, até se transformar em um monstro estranho e cruel. Era no que pensava naquele momento, inobstante demonstrar interesse e acompanhar com gestos as palavras do falante, mas só aparentemente. Sabia no geral do que ele tratava, mas teria de confessar ter perdido o fio do assunto, se perguntada fosse. De si para si, também deliberava se ele merecia confiança, pois, com o outro, no início era assim, tudo bom e sereno.
Lia, desfeita na descrença, viu Tiago sair da sua casa sob a mira do revólver do primo Albano. Não fossem os vigorosos pontapés do primo policial, talvez tentasse mais uma vez dizer promessas de remissão. Ela ficou firme, embora perdoadora inveterada. Não cederia mais. Estava resoluta. Tiago sumiu na esquina e dele nunca mais teve notícia. Como lhe havia dito Albano, um espancador de mulheres sempre é um covarde. Pelo sim, pelo não, o primo lhe deu a arma. Uma pequena pistola cromada, com cabo em madrepérola, que cabia perfeitamente em uma bolsa feminina. Ensinou-lhe o manejo e a conservação necessária. Conseguiu-lhe porte. E, daí em diante, Lia não ficou mais sem a arma e a levava na bolsa aonde fosse.
Rodrigo conhecera Lia no metrô. Chamou-lhe a atenção a bela mulher com a mão dentro da bolsa, como se escondesse algum dedo faltante ou esmalte estilhaçado. Ao ver seu olhar percebido, sorriu para ela. A mão da moça afundou mais. Intrigado, ele tentou conversar. Ela nada disse e desceu na estação seguinte. Ficou-lhe a imagem da mulher da mão escondida. Vez em quando, pensava nela.
Alguns meses após o episódio no metrô, a firma em que trabalhava Rodrigo foi contratada para organizar um evento, coincidentemente, na empresa em que Lia trabalhava. No dia do acontecimento, ele, como sempre, circulou discretamente entre os convivas a fim de examinar a boa prestação do serviço. Admirou-se ao avistar, em um canto, a moça do metrô que ficara em seu pensamento, ali também com a mão direita escondida na bolsa. Ela estava de pé, perto da janela, encostada a uma parede de quina e alheia ao alvoroço. Ele se aproximou e se apresentou. Disse se lembrar dela do metrô e que a mão dentro da bolsa o havia intrigado. Perguntou, em tom brincalhão, o que haverá ali de tão especial. Como resposta, recebeu um olhar aflito. Rodrigo mudou rapidamente de assunto, temeroso de ser ela portadora de algum aleijão e de que pudesse estar sendo grosseiro.
Lia se assustou com o assédio de Rodrigo. Quase tirou a arma da bolsa, mas pensou no emprego, na necessidade e na estupidez de uma reação de tal monta num ambiente daquele. Em local ermo, não hesitaria. Como o moço não fosse embora e continuasse a dizer coisas, acabou por se acostumar com a companhia e, certo tempo depois, viu nos olhos de Rodrigo algo diferente dos olhares dos outros homens, capaz de lhe dar confiança. Isso porque, embora procurasse se vestir com recato, não havia como dissimular o belo corpo e evitar a atração dos homens. E, se isso sempre a incomodara, ultimamente lhe dava medo. A cada demonstração de volúpia de um colega de trabalho ou transeunte qualquer, ela crispava a mão na madrepérola. Em certa ocasião, apontara a pistola em direção à testa de um rapaz que lhe pedira uma informação qualquer, ou outra coisa que não entendera. O jovem escafedera-se com rapidez de um corisco.  Ao contrário dos outros, Rodrigo, salvo uma ou outra olhadela em direção à sua mão da carícia secreta, fitava-a sempre no rosto e não no encontro das coxas, nos peitos e nas ancas. Dava-lhe assim a impressão tranquila de confiabilidade. E ele gostava de falar muito, como podia ver naquele instante. Decerto seria um bom amigo e parceiro.
             Ao receber o convite para um encontro no dia seguinte, hesitou um pouco, mas aceitou.
             Carente de atenção, amor e sexo, ao chegar a casa, noite afora pensou em Rodrigo. Excitou-se ao imaginar um novo relacionamento, desta vez com um homem bom, bonito, alegre, conversador e com bela voz, para ela predicados importantes. Uma sensação de liberdade a invadiu e ela sentiu uma incrível vontade de conversar com ele. Decidiu que lhe contaria as suas agruras e assim se limparia das marcas do passado horrível. Poderia então sonhar com um futuro brando e feliz. Chegou a treinar no espelho algumas palavras. Riu alto e dançou no quarto, antes torturante, agora repleto da luz do amanhã sonhado. E, sensual, deitou-se à cama e se esfregou nos lençóis e travesseiros, até tremerem-lhe órgãos e membros no ar rarefeito nos soluços soçobrados.
             Rodrigo, que havia percebido os temores de Lia, embora a cobiçasse e por ela fosse atraído, decidiu lhe demonstrar querença mansa. Para não criar embaraços no primeiro encontro, viu por bem conversar muito, demonstrar mais amizade que outra coisa qualquer. Havia na mulher algo diferente e as suas reações não eram normais. Pensou que, enquanto isso não fosse esclarecido, o melhor seria manter certa distância. E assim fazia naquele momento. E, enquanto dizia o que nem sabia, lembrava-se dos sonhos vindos após a visão no metrô. Ela à sua frente, mão na bolsa e olhar atento. Súbito lhe faltou assunto e ele se calou. Ela tentou dizer alguma coisa.  Ele, com medo de não se lembrar do que acabara de dizer, fez sinal de espera com um gesto e sussurrou precisar ir ao banheiro. E fez isso na intenção de que ela se esquecesse do que ele dissera da boca para fora. Quem os visse de longe talvez achasse que tinham brigado, pois ela tirou a mão da bolsa, empunhando um lenço de papel, que passou no rosto, mais precisamente na testa.
             Fazia calor. Rodrigo lavou o rosto e voltou à mesa, a tempo de ver, de relance, a mão direita de Lia, logo voltada para o interior da bolsa. Inobstante a rapidez, não constatou qualquer anomalia. Levantou os seus olhos em direção aos dela e viu ternura. Os lábios carnudos e sensuais se entreabriram. Rodrigo pensou no beijo.  Lia queria dizer alguma coisa, entretanto. Chegou a balbuciar alguma sílaba. Rodrigo, por sua vez, mostrando-se insaciável falante, começou outro solilóquio. Lia se sentiu oprimida. Crispou os dedos no cabo de madrepérola. Roçou a trava e acariciou o gatilho. Fez sinal com a mão esquerda para que ele parasse de falar. A seguir, levantou o dedo, como se pedisse aparte ou respondesse chamada na escola, ainda menina. Ele com o olhar perdido, fixo em um ponto imaginário, como se se esforçasse na lembrança de um papel decorado. Lia sentiu tremores. Lembrou-se de Tiago, amarrando-a em uma cadeira para obrigá-la a ouvir as aventuras dele com outras mulheres, contadas nos mínimos detalhes. Talvez muitas fossem inventadas, mas ela sofria. A mão direita, sem comando de consciência, soltou-se da bolsa. Lia nem queria acreditar que estivesse segurando um batom apontado para ele. A mão perfeita visível. Nem aleijão, nem esmalte ruim. Desconcertada, Lia pintou os lábios, apesar de faltar precisão. Mãos trêmulas. Acreditou que pudesse dizer alguma coisa após sua estranha atitude. Fingiu rir. Ganhou fôlego e entreabriu os lábios. Chegou a dizer o nome dele, como introdução de alguma frase. Ele, sem se deter, perdeu-se em palavrório. Ela bebeu um gole do refrigerante e sua mão voltou à bolsa. Sentiu falta da pistola e concluiu que revirara a bolsa ao pegar o batom, ou que pegara o batom por ter revirado o conteúdo da bolsa. Mas por que pegaria a arma? Rodrigo não lhe fizera mal, nem a ameaçara. Talvez o confundisse com Tiago, tanto que se imaginara amarrada à cadeira. Novamente, viu em Rodrigo o homem bom, porém ele não permitia que ela lhe dissesse coisa alguma e logo se transformava em Tiago e voltava a ser Rodrigo, num vai e vem louco. A mão na bolsa acompanhava com apertões na madrepérola as mutações. Lia sentiu fome. Pegou o pequeno cardápio encapado de plástico. Rodrigo continuava a dizer coisas que ela já não ouvia, nem se dava ao trabalho de fingir ouvir. Era como se ele não existisse mais e a sua voz fosse mero som incidental, como as músicas dos bares, perdidas na balbúrdia. Não conseguiu manusear o cardápio com a mão esquerda, porque a destra, por hábito ou medo, continuava posta no cabo da arma. Tentou pedir ajuda ao garçom, mas emudecera a sua garganta ardida do esforço de segurar a opressão. Queria dizer alguma coisa, ser ouvida, atendida, nem que fosse num pedido de prato. O aperto enfurecido na arma. O homem falante, ora amado, ora odiado, sofria mutações e era Rodrigo e era Tiago. Bom e mau. Bom ou mau? Já não sabia. Sentia a madrepérola na mão e tateou para soltar a trava.  O gatilho logo se ofereceu obsceno ao toque do indicador.
    Repentinamente, ele se calou e esticou as mãos na direção dela. Ela se lembrou das simulações de estrangulamento pelas quais passara. Empunhou a pistola dentro da bolsa. Rodrigo queria ajudá-la na escolha do pedido. A mão na bolsa, na arma. Ela sentiu uma fisgada dentro do peito. Rodrigo se levantou... Aproximou-se...  Ela também se pôs de pé. A mão crispada na arma. Ele sorriu. Ela tirou a mão da bolsa lentamente. Ele se acercou dela. Abraçaram-se. Quem olhasse com atenção perceberia os filetes descerem dos olhos de Lia. A mão abandonou a bolsa, desarmada, acariciou os cabelos dele e logo veio o beijo.

(Jairo Vianna Ramos)

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