sábado, 6 de julho de 2013

O QUADRO DO CAPETA




O QUADRO DO CAPETA
(*) Por Marco A. M. Mendes

Sozinho naquela cidadezinha do interior, Zé Paulino resolveu comprar uma tela, tintas, preencher o tempo com uma pintura. Não tinha dons artísticos não, mas sentia-se muito solitário, queria um pouco de companhia. Então resolveu pintar uma família, ainda que fossem apenas figuras por ele próprio idealizadas, pintadas numa tela. Juntou os trocados, foi até a papelaria mais próxima, retirou o dinheiro embolado do bolso e comprou uma tela, bisnagas de tinta e uns pinceis. Empregou ali todas suas economias.
Chegando em casa improvisou um cavalete, alçou a tela sobre ele e espremeu as tintas num prato velho. Sacou um dos pinceis como se fosse um espadachim e mãos a obra. Iniciou a pintura conforme lhe aprouvesse, começando a pintura por uma bela menina. Um tanto pálida é verdade, sem o domínio das cores, exagerou no amarelo. Chamou-a de filha.
Vendo que a pintura ficou um tanto pálida, tentou corrigir com novas pinceladas. Sem  destreza do pincel derramou um pouco de tinta preta sobre a tela, respingando sobre a menina. Ficaram parecendo tatuagens. Zé Paulino ficou louco da vida, pois detestava tatuágens. A pintura não havia saído como queria. Contudo, estava determinado a pintar uma família e continuou sua obra. Para tentar corrigir o erro, na tentativa de disfarçar a primeira figura, idealizou pintar outra figura ao lado. Talvez as pessoas não prestassem atenção à primeira figura. Lançando o pincel sobre a tela fez a figura de um menino, que chamou de filho. Essa nova figura não saiu como pretendia por parecia um tanto desfigurado. O menino não agradou o pintor, por isso deu-lhe uma surra de pincel.
Zé Paulino logo partiu para pintar uma terceira figura, a qual chamou de mulher. Afinal, já tinha dois filhos e eles não poderiam ficar sem uma mãe. Como havia de se esperar de um pintor improvisado, não afeto à arte da pintura, carregou demais no vermelho. Fez o rosto da mulher parecer uma pimenta. Como um espadachim enfurecido sacou outro pincel do bolso e lançou as cerdas contra a tela. Travou um medonho duelo com a mulher. Desse duelo respingou tinta por toda a sala, sujando sua roupa e até os móveis que estavam por perto. Até o cachorro que dormia sossegado ali perto saiu colorido. Procurava amoldá-la, reformá-la, para que ficasse tal qual era seu desejo. Mas, sua falta de habilidade com o pincel delineava uma figura surreal. Os respingos muticoloridos e traços indesejados mancharam e riscaram toda a tela. Curiosamente os respingos improvisados modelaram uma figura pequena e sorridente no canto esquerdo, que ao final Zé Paulino chamou de filhote. Batizou o quadro com o nome de “Família” e o pendurou nos fundos da casa, pois se envergonhava de tudo o que havia feito e queria esconder o quadro.
Deprimido com sua obra, embriagou-se. Num momento de fúria, na tentativa de destruir sua criação, ameaçou a tela com fogo, que ficou toda chamuscada. Passada a bebedeira resolveu vendê-la. Foi até a feira da praça central e ali a ofereceu por qualquer preço.
Nesse mesmo dia, passava pela praça um senhor pomposo, fraque e cartola. Zé Paulino não sabia, mas era o demônio disfarçado. Olhando aquela tela e o estado deplorável de Zé Paulino, ofereceu-lhe uma vaca em troca do quadro. Zé Paulino aceitou na hora, pois seria uma maneira de resgatar um pouco do dinheiro investido no material utilizado.
A vaca era velha, não dava leite, logo adoeceu e morreu. Zé Paulino caiu na desgraça. Mulambento, percorria as ruas da cidade pedindo esmolas. Certo dia, revirando o cesto de lixo, encontrou um jornal que lhe chamou a atenção. Ficou surpreso quando viu a notícia de que seu quadro foi reconhecido arte contemporâneo de ponta. Tal qual Monalisa, as pessoas do quadro tinham um sorriso sinistro, um misto de choro e sofrimento, ora parecendo rir da sorte do pintor, ora parecendo chorar a desgraça do abandono. O ardiloso diabo sabia o valor do quadro desde o momento em lançou os olhos. Pagou uma bagatela pela “Família” e agora tinha uma fortuna em suas mãos, enquanto Zé Paulino morria à mingua.
Desesperado Zé Paulino ajuizou uma ação contra o demônio na tentativa de desfazer a venda. O Juiz da causa era rigoroso e não gostou nenhum pouco do fato de Zé Paulino ter matratado e abandonado a “Família”. Zé Paulino percebeu a enrascada em que se meteu e aceitou um acordo. Obrigou-se a comparecer todos os dias no museu do capeta para espanar o pó da “Família”, em troca de um lugar para dormir e um prato de cominda.
O ardiloso demônio além de ficar com a “Família”, ainda se apoderou da alma de Zé Paulino, aprisionando-o num contrato que vigoraria por toda a eternidade. Esse é o destino de quem maltrata e abandona sua familia e, ainda por cima, deixa-se levar pelo ardil do capeta.
__._,_.___

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Memória


Memória

Rodolfo Pamplona Filho
somente
retive em minha mente
o momento
de uma noite de sentimento
incomensurável,
como todo prazer insuperável ,
incrível,
como toda experiência inesquecível,
história
que ficará sempre na memória.

Puerto Varas-Chile, 02 de julho de 2012.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Caminho sumido



Caminho sumido

As mulheres idosas se reuniam na igreja para rosário, quitutes e fofocas. Encontros semanais. Se uma faltasse, logo se pensava em doença ou coisa pior. Um telefonema – um alívio, um desejo de melhoras, pranto, a depender da notícia ou circunstância. Anos de amizade. Encontro religioso religiosamente uma vez por semana. Eram trinta. O padre as temia e delas precisava, eram quem povoava e traziam povoação à paróquia. Um senão que falassem e a tranquilidade do pároco descia mundo abaixo.
            Uma parenta de Semíramis, crocheteira de primeira linha, como agradecimento pelo recebimento de muda de planta, entregou-lhe um caminho de mesa por ela tecido. Era uma encomenda para ser entregue a Arminda, colega da reza do rosário. Semíramis entregou a encomenda, antes mesmo do início das orações. A mimoseada abriu parcialmente o embrulho, deleitou-se ao ver o belo trabalho, tateou para conferir a textura e decidiu guardá-lo na bolsa sem mostrar a ninguém. Todavia, uma das companheiras viu, alardeou e a curiosidade imperou entre as mulheres. Divino fruto, o caminho passou pelas mãos deslumbradas com a excelência do trabalho. Entre interjeições de júbilo, alguém impôs a ordem e se fez silêncio. Era preciso iniciar as orações. Caminho esquecido.
Foram debulhadas as contas dos três terços. Encerrada a rezaria, passou-se à comilança.  Umas tinham levado bolos, outras salgadinhos, café e refrigerantes. Começaram as fofocas, logo interrompidas pela presença do padre, que ali chegara para contar ovelhas, fazer uma boquinha e sair para os seus santos e ignorados compromissos naquele fim de manhã de verão. Os mexericos volveram e, entre uma e outra mordiscada, vidas foram devassadas e piadas foram contadas, algumas bem picantes. Súbito a reunião se esvaziou, pois as que ainda tinham maridos se lembraram do almoço. As viúvas nem conseguiam pensar nesse repasto, estavam fartas. Foram aos quefazeres ou às respectivas preguiças.
            Semíramis atendeu ao telefone. Uma chorosa Arminda mal conseguia pronunciar palavra. Custosamente, entre soluços, disse:
            — O caminho de mesa... Sumiu!
            — Não está em sua bolsa?
            Não estava. Arminda virou e revirou os pertences, como se um embrulho daquele volume pudesse submergir.
            Confirmada a ausência do caminho, as duas idosas traçaram um projeto de localização, condizente com as suas dificuldades de locomoção. Usariam o telefone. Ao cabo de alguns minutos, formalizaram duas listas. Cada qual com uma delas. Ligariam para as colegas e perguntariam se, por acaso, não teriam levado, sem querer, o caminho sumido.
            No início, os telefonemas eram prontamente atendidos, mas logo os telefones ficaram ocupados e elas tinham de repetir com insistência as discagens para que se completassem as chamadas. Dava-se um efeito cascata. As primeiras que receberam as ligações telefonaram para as outras e entre elas afinou-se grande conversação. Somente à boca da noite, a tarefa havia sido concluída e elas se comunicaram para o resumo da missão. Debalde o esforço. Ninguém sabia do paradeiro do caminho de mesa.
            Se houvesse uma escuta investigativa, quem a fizesse chegaria próximo da insanidade, porque muitas foram acusadas, condenadas ou absolvidas, por essa ou aquela. A que condenava uma era condenada por outra. O assunto seguiu noite adentro e pela semana a seguir. Mudava-se de ideia com a mesma rapidez que se respira. A amizade fraterna posta à prova mortal. Uma delas, Concebida, disse ao ouvido de Mariluce ser Arminda velha caquética e desmemoriada. Por tal motivo, enfiara o pano em algum lugar, "Deus sabe onde..." e agora vinha culpar os outros pelo próprio desleixo. Cada condenação era repassada às outras, menos para a condenada, é claro.  Filomena, a pacificadora, discordou de todas as hipóteses ouvidas, como sempre fazia, e àquelas que lhe pediram opinião disse não ter nenhuma. Mas não faltou quem achasse suspeita a sua atitude de neutralidade. Seu silêncio foi interpretado como confissão de culpa ou conivência.
            Os trinta telefones não descansaram durante a semana e, ao final dela, centenas de "certezas incertas" estavam postas. Houve quem jurasse uma coisa e logo mudasse de opinião. As mais criativas encontraram diversas soluções, frutos de mera especulação.
            Chegou o dia do encontro com os três terços do rosário e nada menos do que tantas soluções quantas eram as orações proferidas foram catalogadas por Filomena, que além de pacificar tinha a mania de anotar tudo que se lhe dissesse. Nesse dia, elas chegaram à igreja na hora marcada. Fato incomum, porque sempre vinham mais cedo, para um dedo de prosa ou arrumar apoio para alguma fofoca capaz de abalar e animar a festa, como elas gostavam de dizer, em sacrossanto deleite. Dessa vez, com ar impregnado de desconfiança e de culpa, as orações foram recitadas entre olhares suspeitosos. Em cada cabeça, uma sentença ou muitas, com ressalva de Filomena, que, embora tivesse vontade de condenar alguém, manteve-se neutra e crente na honestidade humana.  Dissintonia. Reza e pecado. Acusações falsas pensadas e repensadas. Preces mecânicas. Olhares de soslaio. Alguém se entregaria? Furto. Uma embusteira entre elas. Mazelas nas mentes.
            Findas as orações, as trinta senhoras se aproximaram da mesa. Seria o momento de lazer transformado em fel. Uma inimizade íntima coletiva e descabida se constituiu. Muitas grudadas às bolsas. Teve quem nem colocasse o cordão com crucifixo ou santinho. O padre chegou para contar ovelhas e fazer uma boquinha. O silêncio. A voz de Filomena se fez ouvir, tímida, no silêncio cortado apenas pelo som de pratos e copos.
            — Padre. Por acaso o senhor não viu um caminho de mesa de crochê na semana passada? Acho que foi esquecido.
            O padre respondeu sem tirar os olhos do prato e com a boca semicheia:
            — Vi não. Perguntaram para Marilyn? E para seu Rubem?
            Dentro das cabeças pecantes, a faxineira e o sacristão tornaram-se os principais suspeitos. Murmúrio de velório. Umas diziam às outras:
            — Como não pensamos neles?
            — Minha nossa, me perdoe, eu desconfiei de você, minha querida...
            Confissões mútuas. Choros e abraços. A incrível sensação de quem se desvencilha de segredo ou pensamento daninho. As trinta senhoras se uniram instantaneamente contra os dois possíveis malfeitores. E, após a saída do padre para seus outros interesses, uma vez farto das guloseimas, naquele dia com pitada de amargura, elas se uniram para estabelecer um plano capaz de deixar tudo às claras e recuperar os caminhos: o de mesa e o da fraternidade.  Formaram dois ternos, que teriam a missão de interrogar Marilyn Monroe Pereira e Rubem Braga Cardoso. Elas sabiam os horários deles na paróquia. O resultado dos interrogatórios seria divulgado no próximo encontro para o rosário.
            Elas chegaram mais cedo que de costume e, antes mesmo das orações, apresentados os relatórios das investigadoras, souberam que Marilyn e Rubem eram inocentes. A cizânia secreta. A desconfiança voltou a povoar as mentes. Rezaram com amargura. Silêncio no momento das iguarias. Olhares de través. O padre chegou para contar ovelhas e fazer boquinha. Uma voz quase inaudível:
            — E se foi ele...
            Algumas semanas depois, Arminda resolveu pôr ordem nos guardados do marido, um bagunceiro de marca. Entre jornais velhos, revistas e livros, ela encontrou o embrulho. Reconheceu-o imediatamente. O caminho. O marido na sala vendo jogo.
            — Gideão, como esse embrulho foi parar nas suas coisas?
            — Eu achei no chão, perto do portão da rua. Guardei pensando que o dono poderia vir procurar — ele disse, com o olhar fixo no jogo.
            Arminda ficou alguns instantes pensando em achar um caminho para ajeitar a situação com as amigas. Percebeu o quanto ela e o marido não conversavam mais. Pôs-se a chorar...


Escrito por Jairo Vianna Ramos

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Cemitério


Cemitério

Rodolfo Pamplona Filho
Qual é o sentido
de se buscar
um lugar mais agradável
para não ser feliz?
De que adianta mudar
se o lugar aonde se vai
é tão ruim quanto
aquele de onde se veio?
Um cemitério
pode ser melhor
do que outro?
Faz diferença
para os mortos
quem despeja terra
sobre seus corpos?
E se o sepulcro
for sempre caiado
ou ficar abandonado
faz alguma diferença
para quem é ali depositado?
A resposta não é evidente,
mesmo verdadeira e transparente:
não se busca um lugar
de descanso e louvor,
mas, sim, para proporcionar
uma lembrança a quem ficou
a imaginar e a sofrer
por tudo que passou
e por quem não voltará a ver,
pois, para quem partiu,
realmente pouco importa,
onde, como e quem se despediu
de sua inútil carne morta...

Santiago-Chile, 27 de junho de 2012.

terça-feira, 2 de julho de 2013

TUDO QUE VICIA COMEÇA COM "C"


TUDO QUE VICIA COMEÇA COM "C"

Luiz Fernando Veríssimo 


Por alguma razão que ainda desconheço, minha mente foi tomada por uma ideia um tanto sinistra: vícios.

Refleti sobre todos os vícios que corrompem a humanidade. Pensei, pensei e,de repente, um insight: tudo que vicia começa com a letra C!

De drogas leves a pesadas, bebidas, comidas ou diversões, percebi que todo vício curiosamente iniciava com cê.

Inicialmente, lembrei do cigarro que causa mais dependência que muita droga pesada. Cigarro vicia e começa com a letra c. Depois, lembrei das drogas pesadas: cocaína, crack e maconha. Vale lembrar que maconha é apenas o apelido da cannabis sativa que também começa com cê.

Entre as bebidas super populares há a cachaça, a cerveja e o café. Os gaúchos até abrem mão do vício matinal do café mas não deixam de tomar seu chimarrão que também – adivinha – começa com a letra c.

Refletindo sobre este padrão, cheguei à resposta da questão que por anos atormentou minha vida: por que a Coca-Cola vicia e a Pepsi não? Tendo fórmulas e sabores praticamente idênticos, deveria haver alguma explicação para este fenômeno. Naquele dia, meu insight finalmente revelara a resposta. É que a Coca tem dois cês no nome enquanto a Pepsi não tem nenhum.

Impressionante, hein?

E o  computador e o  chocolate?   Estes dispensam comentários.  Os vícios alimentares conhecemos aos montes, principalmente daqueles alimentos carregados com sal e açúcar. Sal é cloreto de sódio. E o açúcar que vicia é aquele extraído da cana.

Algumas músicas também causam dependência. Recentemente, testemunhei a popularização de uma droga musical chamada “créeeeeeu”. Ficou todo o mundo viciadinho, principalmente quando o ritmo atingia a velocidade… cinco.

Nesta altura, você pode estar pensando: sexo vicia e não começa com a letra C. Pois você está redondamente enganado. Sexo não tem esta qualidade porque denota simplesmente a conformação orgânica que permite distinguir o homem da mulher. O que vicia é o “ato sexual”, e este é denominado coito.

Pois é. Coincidências ou não, tudo que vicia começa com cê. Mas atenção: nem tudo que começa com cê vicia. Se fosse assim, estaríamos salvos pois a humanidade seria viciada em Cultura.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Gosto de Ti


Gosto de Ti

Rodolfo Pamplona Filho
Gosto quando falas
e quando calas
Gosto quando interpretas
minhas palavras
Gosto quando inovas
e renovas minhas idéias
Gosto até quando discutes
relacionamento e pensamento,
conferindo relevância
até ao que eu não dava importância,
dando-me trabalho para explicar,
fundamentar e argumentar,
mas com o imenso prazer
de sempre te convencer
o que já é do teu saber:
sem ti, não sei mais viver...

Santiago-Chile, 01 de julho de 2012.

domingo, 30 de junho de 2013

A pior audiência da minha vida


A pior audiência da minha vida
por Paulo Rangel Des. TJRJ
A minha carreira de Promotor de Justiça foi pautada sempre pelo princípio da importância (inventei agora esse princípio), isto é, priorizava aquilo que realmente era significante diante da quantidade de fatos graves que ocorriam na Comarca em que trabalhava. Até porque eu era o único promotor da cidade e só havia um único juiz. Se nós fôssemos nos preocupar com furto de galinha do vizinho; briga no botequim de bêbado sem lesão grave e noivo que largou a noiva na porta da igreja nós não iríamos dar conta de tudo de mais importante que havia para fazer e como havia (crimes violentos, graves, como estupros, homicídios, roubos, etc).

Era simples. Não há outro meio de você conseguir fazer justiça se você não priorizar aquilo que, efetivamente, interessa à sociedade. Talvez esteja aí um dos males do Judiciário quando se trata de “emperramento da máquina judiciária”. Pois bem. O Procurador Geral de Justiça (Chefe do Ministério Público) da época me ligou e pediu para eu colaborar com uma colega da comarca vizinha que estava enrolada com os processos e audiências dela.

Lá fui eu prestar solidariedade à colega. Cheguei, me identifiquei a ela (não a conhecia) e combinamos que eu ficaria com os processos criminais e ela faria as audiências e os processos cíveis. Foi quando ela pediu para, naquele dia, eu fazer as audiências, aproveitando que já estava ali. Tudo bem. Fui à sala de audiências e me sentei no lugar reservado aos membros do Ministério Público: ao lado direito do juiz.

E eis que veio a primeira audiência do dia: um crime de ato obsceno cuja lei diz:
Ato obsceno
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

O detalhe era: qual foi o ato obsceno que o cidadão praticou para estar ali, sentado no banco dos réus? Para que o Estado movimentasse toda a sua estrutura burocrática para fazer valer a lei? Para que todo aquele dinheiro gasto com ar condicionado, luz, papel, salário do juiz, do promotor, do defensor, dos policiais que estão de plantão, dos oficiais de justiça e demais funcionários justificasse aquela audiência? Ele, literalmente, cometeu uma ventosidade intestinal em local público, ou em palavras mais populares, soltou um pum, dentro de uma agência bancária e o guarda de segurança que estava lá para tomar conta do patrimônio da empresa, incomodado, deu voz de prisão em flagrante ao cliente peidão porque entendeu que ele fez aquilo como forma de deboche da figura do segurança, de sua autoridade, ou seja, lá estava eu, assoberbado de trabalho na minha comarca, trabalhando com o princípio inventado agora da importância, tendo que fazer audiência por causa de um peidão e de um guarda que não tinha o que fazer. E mais grave ainda: de uma promotora e um juiz que acharam que isso fosse algo relevante que pudesse autorizar o Poder Judiciário a gastar rios de dinheiro com um processo para que aquele peidão, quando muito mal educado, pudesse ser punido nas “penas da lei”.

Ponderei com o juiz que aquilo não seria um problema do Direito Penal, mas sim, quando muito, de saúde, de educação, de urbanidade, enfim… Ponderei, ponderei, mas bom senso não se compra na esquina, nem na padaria, não é mesmo? Não se aprende na faculdade. Ou você tem, ou não tem. E nem o juiz, nem a promotora tinham ao permitir que um pum se transformasse num litígio a ser resolvido pelo Poder Judiciário.
Imagina se todo pum do mundo se transformasse num processo? O cheiro dos fóruns seria insuportável.
O problema é que a audiência foi feita e eu tive que ficar ali ouvindo tudo aquilo que, óbvio, passou a ser engraçado. Já que ali estava, eu iria me divertir. Aprendi a me divertir com as coisas que não tem mais jeito. Aquela era uma delas. Afinal o que não tem remédio, remediado está.
O réu era um homem simples, humilde, mas do tipo forte, do campo, mas com idade avançada, aproximadamente, uns 70 anos.
Eis a audiência:

Juiz – Consta aqui da denúncia oferecida pelo Ministério Público que o senhor no dia x, do mês e ano tal, a tantas horas, no bairro h, dentro da agência bancária Y, o senhor, com vontade livre e consciente de ultrajar o pudor público, praticou ventosidade intestinal, depois de olhar para o guarda de forma debochada, causando odor insuportável a todas as pessoas daquela agência bancária, fato, que, por si só, impediu que pessoas pudessem ficar na fila, passando o senhor a ser o primeiro da fila.
Esses fatos são verdadeiros?

Réu – Não entendi essa parte da ventosidade…. o que mesmo?

Juiz – Ventosidade intestinal.

Réu – Ah sim, ventosidade intestinal. Então, essa parte é que eu queria que o senhor me explicasse direitinho.

Juiz – Quem tem que me explicar aqui é o senhor que é réu. Não eu. Eu cobro explicações. E então.. São verdadeiros ou não os fatos?

O juiz se sentiu ameaçado em sua autoridade. Como se o réu estivesse desafiando o juiz e mandando ele se explicar. Não percebeu que, em verdade, o réu não estava entendendo nada do que ele estava dizendo.

Réu – O guarda estava lá, eu estava na agência, me lembro que ninguém mais ficou na fila, mas eu não roubei ventosidade de ninguém não senhor. Eu sou um homem honesto e trabalhador, doutor juiz “meretrício”.
Na altura da audiência eu já estava rindo por dentro porque era claro e óbvio que o homem por ser um homem simples ele não sabia o que era ventosidade intestinal e o juiz por pertencer a outra camada da sociedade não entendia algo óbvio: para o povo o que ele chamava de ventosidade intestinal aquele homem simples do povo chama de PEIDO. E mais: o juiz se ofendeu de ser chamado de meretrício. E continuou a audiência.
Juiz – Em primeiro lugar, eu não sou meretrício, mas sim meritíssimo. Em segundo, ninguém está dizendo que o senhor roubou no banco, mas que soltou uma ventosidade intestinal. O senhor está me entendendo?
Réu ¬– Ahh, agora sim. Entendi sim. Pensei que o senhor estivesse me chamando de ladrão. Nunca roubei nada de ninguém. Sou trabalhador.
E puxou do bolso uma carteira de trabalho velha e amassada para fazer prova de trabalho.
Juiz – E então, são verdadeiros ou não esses fatos.
Réu – Quais fatos?
O juiz nervoso como que perdendo a paciência e alterando a voz repetiu.
Juiz – Esses que eu acabei de narrar para o senhor. O senhor não está me ouvindo?
Réu – To ouvindo sim, mas o senhor pode repetir, por favor. Eu não prestei bem atenção.
O juiz, visivelmente irritado, repetiu a leitura da denúncia e insistiu na tal da ventosidade intestinal, mas o réu não alcançava o que ele queria dizer. Resolvi ajudar, embora não devesse, pois não fui eu quem ofereci aquela denúncia estapafúrdia e descabida. Típica de quem não tinha o que fazer.
EU – Excelência, pela ordem. Permite uma observação?
O juiz educado, do tipo que soltou pipa no ventilador de casa e jogou bola de gude no tapete persa do seu apartamento, permitiu, prontamente, minha manifestação.
Juiz – Pois não, doutor promotor. Pode falar. À vontade.
Eu – É só para dizer para o réu que ventosidade intestinal é um peido. Ele não esta entendendo o significado da palavra técnica daquilo que todos nós fazemos: soltar um pum. É disso que a promotora que fez essa denúncia está acusando o senhor.
O juiz ficou constrangido com minhas palavras diretas e objetivas, mas deu aquele riso de canto de boca e reiterou o que eu disse e perguntou, de novo, ao réu se tudo aquilo era verdade e eis que veio a confissão.
Réu – Ahhh, agora sim que eu entendi o que o senhor “meretrício” quer dizer.
O juiz o interrompeu e corrigiu na hora.
Juiz – Meretrício não, meritíssimo.
Pensei comigo: o cara não sabe o que é um peido vai saber o que é um adjetivo (meritíssimo)? Não dá. É muita falta de sensibilidade, mas vamos fazer a audiência. Vamos ver onde isso vai parar. E continuou o juiz.
Juiz – Muito bem. Agora que o doutor Promotor já explicou para o senhor de que o senhor é acusado o que o senhor tem para me dizer sobre esses fatos? São verdadeiros ou não?
Juiz adora esse negócio de verdade real. Ele quer porque quer saber da verdade, sei lá do que.
Réu – Ué, só porque eu soltei um pum o senhor quer me condenar? Vai dizer que o meretrício nunca peidou? Que o Promotor nunca soltou um pum? Que a dona moça aí do seu lado nunca peidou? (ele se referia a secretária do juiz que naquela altura já estava peidando de tanto rir como todos os presentes à audiência).
O juiz, constrangido, pediu a ele que o respeitasse e as pessoas que ali estavam, mas ele insistiu em confessar seu crime.
Réu – Quando eu tentei entrar no banco o segurança pediu para eu abrir minha bolsa quando a porta giratória travou, eu abri. A porta continuou travada e ele pediu para eu levantar a minha blusa, eu levantei. A porta continuou travada. Ele pediu para eu tirar os sapatos eu tirei, mas a porta continuou travada. Aí ele pediu para eu tirar o cinto da calça, eu tirei, mas a porta não abriu. Por último, ele pediu para eu tirar todos os metais que tinha no bolso e a porta continuou não abrindo. O gerente veio e disse que ele podia abrir a porta, mas que ele me revistasse. Eu não sou bandido. Protestei e eles disseram que eu só entraria na agência se fosse revistado e aí eu fingi que deixaria só para poder entrar. Quando ele veio botar a mão em cima de mim me revistando, passando a mão pelo meu corpo, eu fiquei nervoso e, sem querer, soltei um pum na cara dele e ele ficou possesso de raiva e me prendeu. Por isso que estou aqui, mas não fiz de propósito e sim de nervoso. Passei mal com todo aquele constrangimento das pessoas ficarem me olhando como seu eu fosse um bandido e eu não sou. Sou um trabalhador. Peidão sim, mas trabalhador e honesto.

O réu prestou o depoimento constrangido e emocionado e o juiz encerrou o interrogatório. Olhei para o defensor público e percebi que o réu foi muito bem orientado. Tipo: “assume o que fez e joga o peido no ventilador. Conta toda a verdade”. O juiz quis passar a oitiva das testemunhas de acusação e eu alertei que estava satisfeito com a prova produzida até então. Em outras palavras: eu não iria ficar ali sentado ouvindo testemunhas falando sobre um cara peidão e um segurança maluco que não tinha o que fazer junto com um gerente despreparado que gosta de constranger os clientes e um juiz que gosta de ouvir sobre o peido alheio. Eu tinha mais o que fazer. Aliás, eu estava até com vontade de soltar um pum, mas precisava ir ao banheiro porque meu pum as vezes pesa e aí já viu, né?

No fundo eu já estava me solidarizando com o pum do réu, tamanho foi o abuso do segurança e do gerente e pior: por colocarem no banco dos réus um homem simples porque praticou uma ventosidade intestinal.

É o cúmulo da falta do que fazer e da burocracia forense, além da distorção do Direito Penal sendo usado como instrumento de coação moral. Nunca imaginei fazer uma audiência por causa de uma, como disse a denúncia, ventosidade intestinal. Até pum neste País está sendo tratado como crime com tanto bandido, corrupto, ladrão andando pelas ruas o judiciário parou para julgar um pum.

Resultado: pedi a absolvição do réu alegando que o fato não era crime, sob pena de termos que ser todos, processados, criminalmente, neste País, inclusive, o juiz que recebeu a denúncia e a promotora que a fez. O juiz, constrangido, absolveu o réu, mas ainda quis fazer discurso chamando a atenção dele, dizendo que não fazia aquilo em público, ou seja, ele é o único sear humano que está nas ruas e quando quer peidar vai em casa rápido, peida e volta para audiência, por exemplo.
É um cara politicamente correto. É o tipo do peidão covarde, ou seja, o que tem medo de peidar. Só peida no banheiro e se não tem banheiro ele se contorce, engole o peido, cruza as perninhas e continua a fazer o que estava fazendo como se nada tivesse acontecido. Afinal, juiz é juiz.
Moral da história: perdemos 3 horas do dia com um processo por causa de um peido. Se contar isso na Inglaterra, com certeza, a Rainha jamais irá acreditar porque ela também, mesmo sendo Rainha… Você sabe.

Rio de Janeiro, 10 de maio de 2012.

Paulo Rangel (Desembargador do Tribunal de Justica do Rio de Janeiro).