sábado, 5 de setembro de 2015

Cartão postal

Murilo Mendes




Domingo no jardim público pensativo.
Consciências corando ao sol nos bancos,
bebês arquivados em carrinhos alemães
esperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.
Passam braços e seios com um jeitão
que se Lenine visse não fazia o Soviete.
Marinheiros americanos bêbedos
fazem pipi na estátua de Barroso,
portugueses de bigode e corrente de relógio
abocanham mulatas.


O sol afunda-se no ocaso
como a cabeça daquela menina sardenta
na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.



sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Ninguém tem culpa...

Rodolfo Pamplona Filho



Como fruto natural

da herança católica ibérica,

teme-se aceitar que o mal

existe também na América,

fugindo-se da conseqüência

de qualquer conduta humana,

negando toda negligência

ou mesmo prática insana...

Assim, tudo é desculpável






e a tolerância encontra apogeu...

Ninguém se vê responsável

pelos atos que cometeu...

É-se vítima do sistema,

do capitalismo, da maldição...

É-se vítima do governo,

da pobreza, da educação...

Desta forma, pedir desculpas

não merece louvação,

pois será apenas assumir a culpa,

como em uma espontânea confissão

mas que, ao contrário do pecado,

não merece qualquer perdão,

e, sim, somente o escárnio

ou uma mais alta indenização...



Wittenberg, 06 de julho de 2015

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Poema de sete faces

Carlos Drummond de Andrade


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.


As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.




O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.


O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos , raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.


Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.


Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo,
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.


Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Yggdrasil

Rodolfo Pamplona Filho




Árvore da Vida
Árvore do Mundo
que liga os nove Reinos:
Asgard, lar daqueles
que consideram deuses,
onde Odin cavalga Sleipnir,
seu garanhão de oito patas,
e tudo vê e tudo comanda...
Vanaheim
Alfheim
e, ligada ao céu
pela Bifrost,
ponte do arco-íris,
está
Midgard, nossa terra,
logo acima de
Jötunheim, terra do gelo
e de seus gigantes...




Descendo para as raízes,
onde nunca descansa
o dragão Nidhogg,
encontraremos
o mundo subterrâneo
e os reinos de
Muspelheim,
Nidavellir,
Svartalfheim, terra dos elfos negros,
e, por fim,
Niffleheim,
terra de Hvergelmir
e de Hel,
cujos portões são guardados
por Garm,
que não tem três cabeças,
pois uma já é o bastante...

Salvador, 05 de março de 2014, lendo Thor...

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Retrato

Cecília Meireles


Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.


Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.


Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Loki

Rodolfo Pamplona Filho






Há quem veja
só desdém
quando se
oferece bondade...
Por que a tocha
detesta o sol,
se não apenas
por brilhar mais?
O trapaceiro
O de muitas formas
O destruidor
Quem é este
que é todos
e é único
simultaneamente?
Aquele que provocará
o Ragnarok
e o cavalgar
das Valquirias,
com seus garanhões de nuvens,
a conduzir Deuses mortos
para Valhalla...

domingo, 30 de agosto de 2015

Descobrimento

Mário de Andrade





Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.