Jairo Vianna Ramos
As patas dos cavalos pareciam arrancar fumaça do chão. Um gigantesco guerreiro cavalgava com destreza seguido por outros cavaleiros fortemente armados. Os pastores corriam com as ovelhas a procura de abrigo.
Aonde iriam os soldados com tanta pressa e raiva? A quem atacariam? Era evidente o eclodir da guerra. Os pastores não eram os inimigos, pois já se punham salvos.
Eu olhava com insistência a grande campina, mas não via traço do possível adversário do exército do colosso. Mais ao norte, havia um castelo abandonado, ou ao menos assim parecia. Suas torres estavam derretidas, em parte. Era estranho o descuido em que se encontrava a edificação tão importante. Em volta havia um bosque cujas árvores não tinham folhas e por algum tempo pensei que ali estariam os antagonistas, mas logo desisti da ideia, haja vista a ausência de sombras necessárias ao esconderijo. Os pobres troncos sozinhos eram incapazes de esconder um homem sequer.
O imenso guerreiro levava a horda ao noroeste. O ruído dos tropéis ensurdecedores quase dilacerava os meus tímpanos.
O gigante guerreiro trazia na cabeça um insólito capacete encimado com uma ponta de espada. Imaginei se cabeceasse algum desafeto. Pensei se a lâmina atravessasse o meu corpo e me contraí. Suei e senti a dor na suposição da violenta batalha por vir.
Forcei a vista ao noroeste. A campina continuava vazia pelos lados de lá. Nada de inimigos. Apenas o grande guerreiro e seus seguidores galopavam em linha reta naquele rumo.
O casal de pássaros chegou ao ninho para alimentar os filhotes. Ainda bem — pensei. Sempre ficava preocupado que acontecesse algo com os pais. Quem tomaria conta dos pequenos? Eu os alimentaria, talvez. Mas um dia, eles precisariam aprender a voar. Não saberia ensinar-lhes isso. Mas agora me afligia o fato de o ninho ficar tão próximo à campina onde, eu sabia, travar-se-ia a brutal contenda. Era meu dever cuidar dos pássaros. Tornei-me guardião voluntário dos filhotes e não podia deixá-los em momento tão grave.
Os adultos piavam sem cessar, arrepiavam as penas do alto das cabeças e em volta dos pescoços. Talvez previssem o perigo.
Um repentino calor insuportável promovia uma lufada de ar quente que trazia o incrível cheiro de sangue ainda não derramado, como se antecipasse o futuro. Abri os braços na insana pretensão de assustar os bravios guerreiros.
Olhei novamente a noroeste e, agora sim, vi o outro exército que despontava no horizonte. E enquanto o esquadrão do gigante vestia armaduras e malhas cinzentas, o outro trajava roupas coloridas e alegres, algo estranho para soldados cuja missão, ao menos na teoria, seria assombrar, enfrentar e destruir os oponentes.
Lamento dizer que me esqueci dos pássaros e descumpri, assim, por um momento, o que era obrigado. Porém, como desviar a vista daquela inusitada legião de cores? Ela não vinha embalada pelos militares tambores. Tocavam-se, não sei quem, onde e como, belas e alegres valsas. Embora ainda distantes, dava para se ver que os cavalos mais pareciam belas criaturas dos carrosséis enfeitados dos parques. E a variedade harmoniosa dos matizes pintava na pradaria um jardim em movimento. Canteiro líquido que escorria pela terra. Presente do sol da tarde enviado do fim do mundo. Aurora boreal.
À frente do belo exército estava o pequeno guerreiro. Mas naquela distância não lhe distingui as feições. De viés olhei o ninho. Os pássaros adultos estavam imóveis. Os filhotes nem ousavam erguer as cabeças à procura do repasto. Enfurnaram-se, por ordem do instinto. A natureza repudiava a fereza.
Olhei de novo a planície, não mirei os lados do gigante porque meus olhos preferiam o exército da cor e da alegria e, para meu espanto, percebi, agora nitidamente: o pequeno guerreiro era eu! E mais perplexo pude ver que se vestia como eu, embora em combate medieval. Calças nos joelhos e uma camiseta azul com escritos em vermelho, em língua estrangeira, cujo significado eu não sabia, como ele também, talvez.
O vento bateu mais forte nos meus cabelos e já eram perceptíveis os hálitos dos inimigos. Os seus fedores invadiram-me. Vi as rugas de raiva nos seus rostos. Estavam muito próximos. O choque era iminente e inevitável. Levantei a espada uma vez. A música cessou. Fez-se o silêncio. Repeti o gesto e gritei, com a voz seca de arranhar garganta:
— Atacar!
Escureceu à minha volta. Um turbilhão de corpos e armas. O sangue espirrou como chuva às avessas. Gritos cortaram o ar e o som de aço no aço era incessante. O cavalo resfolegou sob o meu corpo e rodopiou para encontrar piso entre os corpos dilacerados. Na escuridão da batalha, eu vi o capacete incomum do gigante. Tentei me aproximar dele e ele, mais ainda, ansiava o combate e veio em minha direção abrindo alas pela pugna. Onde passava deixava o rastro de arrasamento. Embora ciente da desproporção, não havia outra forma de terminar a contenda senão a queda do líder. Cabia-me enfrentá-lo. Franzi a testa para ajudar a visão ofuscada pelo sol. Fez-se um claro na planície, como se parasse a batalha e no meio do espaço criado, sem qualquer ordem ou combinação, estávamos: eu e o enorme oponente.
O gigante nem cumprimentou. Com um só gesto atirou a lança contra meu peito. Dor aguda. O sangue corou a grama da campina, misturou-lhe a púrpura, como se houvesse ainda onde se colorir.
Não entendia como eu, deitado ao chão e de braços abertos, no ofício de proteger a árvore onde estava o ninho, pudesse cair moribundo lá na campina, pois a dor predefinia o fim.
Mas o eu de lá não era o mesmo de cá.
O gigante, ciente da vitória, volveu para o lado da árvore e balançou a enorme cabeça, incrédulo. Viu outro pequeno guerreiro igual àquele que jazia à sua frente.
A determinação destruidora foi mais forte que a dúvida e o enorme homem veio em minha direção. Senti a boca secar e pensei nos pobres passarinhos no ninho.
Os segundos cresceram como horas. Eu gritei coisas que não me lembro. Vi o guerreiro e seu cavalo em franco galope se aproximava. Ele abaixou a cabeça e deixou em evidência a espada do capacete. Fechei os olhos, pensei nos meus pais, na minha casa, nos passarinhos e chorei.
Senti um toque no ombro e ouvi, ao longe, a voz de homem.
— O que é isso, menino? Está sentindo alguma coisa? Você está bem?
Não respondi logo. Apontei para o alto e balbuciei:
— O gigante está perto. Matou muita gente e agora quer me pegar! Deixou um rastro de sangue!
O homem olhou o céu e sorriu.
— Calma! São apenas nuvens, elas às vezes tomam formas estranhas e assustadoras, depende da imaginação. E está vermelho porque o sol se põe. Vá para casa, descanse e esqueça.
Olhei a árvore e saí dali satisfeito, vivo e livre, como os passarinhos. Antes de dormir, resolveria sobre continuar ou não na missão de guardião dos pássaros da pracinha. Talvez fosse ainda muito novo para isso.