sábado, 5 de maio de 2012

Noite de Cão em Arapuá.

Noite de Cão em Arapuá.
                                                                        Jairo Vianna Ramos                   
                                                                                                    
  Ele se chama Janelinho. Ninguém sabe o motivo do apelido. Mas é assim e pronto. Nem ele se lembra quando começou a ser chamado assim.
Janelinho, ex-bancário, economizou certa feita — e por muito tempo, o suficiente para adquirir um carro. Satisfaria um sonho e não deixava de ser um investimento, ao menos assim se dizia. Fez o negócio e passou a ser o legítimo proprietário de um fusquinha 68, zero.
Queria rodar nas alamedas floridas da cidade, mas pensou: "Gasolina custa dinheiro". Depositou a jóia na garagem e desde então usou o carro apenas uma vez por semana, dia da reunião no "Clube dos Gorilas".
Nos outros dias, e o dia todo, Janelinho anda pelas ruas, não como sonhara, mas a pé, cedo ou tarde. Aposentado há tempo, mais faz é andar. Não fossem suas econômicas caminhadas não se saberia desta história, pois a conservação do fusquinha pelo seguro personagem lhe proporcionou a oportunidade de presenciar o intrigante fato dado em Arapuá.
Era noite de lua cheia. Janelinho vinha de um churrasco (gratuito) na casa de um amigo. Sentiu-se cansado e resolveu ir para casa. Cortou caminho por ruas secundárias e desertas. Em uma delas avistou a bela mulher.
Decidiu parar e observar. Pôs a mão sob o queixo, como de costume, quase abraçando a mandíbula. Ficou a certa distância da casa onde ela estava na varanda. Queria chegar mais perto e se esgueirou pelos muros dos terrenos vizinhos, até um ponto de observação mais apropriado. Era o local mais próximo que poderia atingir discretamente. Uma árvore de grosso tronco dava a ele, magro e pequeno, a proteção necessária.
A mulher era alta e esbelta. Tinha cabelos negros, lisos e longos. Vestia uma camisola de fino tecido. A pele, de tão alva, cintilava na noite. Parecia materialização humana da própria lua cheia.
Janelinho não conseguia desviar o olhar.
Na rua sem vivente a lhe fazer par, o silencio imperava.
Ele continuava a segurar o queixo, agora menos pelo hábito. Os olhos, esquecidos de piscar, acompanhavam cada movimento da mulher lua. A noite avançava e Janelinho perdia a noção do tempo. Sem mensagem ou preparo, o odor tomava conta do ar. Não era cheiro de fio queimado, plástico ou verniz, mas de cachorro molhado. Ele começou a ouvir os uivos, de lá e de cá. Apertou-se à árvore e, pela primeira vez, naquele tempo todo, desviou os olhos da mulher. Primeiro olhou um lado, depois o outro, e dos dois, olhos faiscantes se aproximavam. Tinha certeza, mesmo sem saber: eram os lobisomens. Como todos de Arapuá, ele não acreditava, mas não duvidava também. Pensou no fusquinha. Poderia entrar nele e sair em velocidade, não fosse tão controlado. Escapar a pé, nem pensar...
Janelinho, cercado, petrificou-se.
Todos sabem, mas não admitem: as cidades do interior têm, cada uma delas, um lobisomem. Nas grandes, eles não são percebidos, se existirem. Há coisas piores, mais perigosas e bem visíveis para o povo temer.
Segundo informações não muito confiáveis, em Arapuá havia apenas um. Falam de um médico cardiologista, nos dias comuns. Porém, notícias mais duvidosas ainda, dão conta de um segundo, forasteiro, vindo da vizinha cidade de Fantanésia e militante da nobre profissão de advogado, na vida cotidiana. Com isso, aquela cidade está sem lobisomem, para desespero dos estudiosos do assunto, pois estão preocupados com a quebra do "equilíbrio sobrenatural".
Há, ainda, o desprestígio de ser a única cidade da região sem seu homem-lobo. Abre-se exceção a Vargemzinha, cujo lobisomem foi confundido com um extraterrestre, preso pelo exército e nunca mais dele se soube.
A Janelinho, feito pedra, sem opção de fuga, restou o direito à observação da inusitada situação.
Nem o cheiro e nem os olhos brilhantes como faróis assustaram a mulher. Ao contrário, ela se acomodou em uma cadeira na varanda.
Janelinho, impetuoso de tanta curiosidade, esqueceu-se do medo e quase saiu do esconderijo para observar melhor a cena prometida. Finalmente os dois monstros se encontraram diante da casa e da mulher. Não houve contenda de mordidas e patadas, mas um festival de uivos. Pareciam cantar em serenata. Um mais alto que o outro e com entonações divergentes. A mulher colocava as mãos sobre o peito como se administrasse amor e dúvida. Finalmente abriu os braços e assim deixou clara a indecisão. Acenou despedida para os meio-lobos e entrou.
Janelinho forçou a vista na tentativa de distinguir, nos quase-bichos, o médico e o causídico. Seria a confirmação e teria assunto para o resto da vida. Foi incapaz. Maldisse os olhos cansados.
Cada lobisomem voltou para o seu lado sem nada dizer ou uivar. Aos poucos o cheiro de cão molhado esvaiu-se e um assustado Janelinho voltou para casa, com os passos mais apressados que o costume. O suor corria-lhe a face na noite fria. Não queria olhar para trás. Jurou abandonar a sovinice. Prometeu andar de carro, caso se salvasse. Mas acabou por ouvir um trote de unhas riscando o asfalto. A luz enviesada do poste desenhou no chão o esboço canino. Janelinho destemperou-se e se pôs a correr. O frio na espinha impulsionava-lhe as pernas que nem sentia. Virou uma e duas esquinas. Faltava atravessar a avenida e chegaria ao remanso do lar. Faltou-lhe o chão e caiu zonzo. Assim ficou escurecido na noite, sem saber dos acontecimentos.
Ao acordar, viu sobre o rosto a carranca do cão e a enorme língua úmida. De um salto entrou em casa e correu para a cama e ali ficou sem saber se dormia, se era sonho ou realidade.
Na manhã seguinte, estava pronto para cumprir o prometido. Abriu o portão para tirar o carro da garagem. Mas olhou a rua e viu os tantos buracos, pois em Arapuá há muitos. Um grupo de vira-latas ainda se fartava com o lixo virado da vizinhança. Janelinho se lembrou do tombo e da cara do cão. Pensou no preço do combustível. Deduziu ter caído no buraco e se assustado com o cachorro. Gostou da dedução. Fechou o portão da garagem e guardou no bolso o dinheiro da gasolina. Andou pelas ruas como sempre. Passou a voltar para casa mais cedo, pelo sim e pelo não, pois nunca se sabe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário