sexta-feira, 29 de abril de 2011

Dia do trabalho ou Dia do Trabalhador?

Dia do trabalho ou Dia do Trabalhador?

                                                                       Murilo Oliveira

No dia internacional do trabalho, celebram-se as lutas operárias em defesa da redução da jornada de trabalho. Lembrar do primeiro de maio, serve para que não se esqueça o ocorrido em 1º de maio de 1886 em Chicago nos Estados Unidos. Nestas manifestações, precisamente durante o confronto com a polícia local, ocorreram mortes quando uma bomba explodiu. Por considerar os organizadores das passeatas os responsáveis pelas mortes, os dirigentes sindicais foram condenados pela Justiça à morte na forca. É esse o grosso resumo dos fatos que explicam historicamente o primeiro de maio, justificando o epíteto de “os mártires de maio”.
A despeito desta história de luta, morte e injustiça de trabalhadores, o primeiro de maio é designado como “dia do trabalho”. Este título oficialesco representa uma sutil prevalência da ação (trabalho), logicamente em detrimento do sujeito que realiza esta ação (trabalhador). No discurso oficial, celebra-se o trabalho humano na sua acepção genérica e não a luta dos trabalhadores que pagaram com sangue a obtenção da jornada de oito horas. Suprime-se o trabalhador (e sua dor), restando o trabalho, na perspectiva positivista mais neutra possível.
Esta questão de nomenclatura não pode ser tida como um problema pequeno. Isto porque algumas mudanças de nomes, como esta, trazem um conteúdo ideológico de esvaziamento do sentido histórico do termo. Falar hoje em dia do trabalho pouco remete a luta pela redução da jornada de trabalho e as demais lutas dos trabalhadores. Comemorar o primeiro de maio tende a significar somente a exaltação de toda a pessoa que trabalha, que pode ser tanto um empregador que administra sua empresa, um trabalhador autônomo, ou um empregado. Assim, consegue-se, com uma pequena mudança de nome, desfocar as lutas dos trabalhadores, consagradas em parte no Direito do Trabalho.
O próprio Direito do Trabalho, aliás, é no Brasil associado historicamente ao primeiro de maio. Em primeiro de maio de 1940, foi criado o salário-mínimo. Na mesma data em 1941, a Justiça do Trabalho foi criada, inclusive o Tribunal do Trabalho da Bahia (5ª Região) que hoje celebra 70 anos. Em primeiro de maio de 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT foi aprovada por Getúlio Vargas. Percebe-se, então, que o trabalhismo adotado no Brasil sempre cultuou o primeiro de maio como uma data marcante, especialmente para conferir a Vargas os títulos de “pai dos pobres” e, um menos conhecido, de “mãe dos ricos”, numa sagaz mitificação vargista a partir destes "pequenos nomes".
Celebra-se, enfim, neste dia uma série de conquistas do Direito do Trabalho, muitas atendendo parcialmente aos reclames dos trabalhadores. Rememora-se que estas lutas tiveram um preço histórico grande para serem reconhecidas pelo Estado como direitos trabalhistas, tal como foi a morte de mais cento e trinta mulheres grevistas queimadas numa fábrica de Nova York em 1857, data posteriormente reconhecida como dia internacional da mulher. Mais apropriado, então, é referir-se ao dia de hoje como “dia internacional do trabalhador”, em memória dos mártires de Chicago e em respeito à história das lutas dos trabalhadores e trabalhadoras.


Murilo Oliveira é Juiz do Trabalho da 5ª Região e Professor da UFBA.  

quinta-feira, 28 de abril de 2011

SACRIFÍCIO DE PÁSCOA

SACRIFÍCIO DE PÁSCOA

                                      Alexandre Roque

O sacrifício do rico na semana santa
é comer camarão e bacalhau
tomar vinho branco chileno
vinho do porto
ir à Igreja
e à noite brindar à vida com um merlot

O sacrifício do pobre na semana santa

é lembrar que não pode comer carne o ano todo
muito menos o peixe que custa os olhos da cara
é engolir o feijão cotidiano e a farinha
o cuscuz e o arroz de terceira
a cachaça
e ir à Igreja
e sonhar com dias melhores

Por isso pensei

que talvez o melhor sacrifício
seja não fazer sacrifício nenhum
que não o sacrifício de amar
o amor-justiça com quem não tem justiça
o amor-libertação com quem não tem liberdade

Libertação. Lembrei que a páscoa é libertação

e que talvez Deus não esteja muito preocupado
com o animal que vamos comer em nossa mesa
mas com as mesas sem animais e sem plantas
sem proteínas, sem proteção, sem nada

Talvez ele se preocupe mais

com nosso coração vazio
com a dor latente e a barriga vazia
e contemple, triste, nossa omissão

(Sacrílego, eu pensei:
semana santa é toda semana
sacrifício é amar)

quarta-feira, 27 de abril de 2011

A PARALISAÇÃO DO JUDICIÁRIO FEDERAL

Texto escrito por Gabriel Wedy, Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE):
A PARALISAÇÃO DO JUDICIÁRIO FEDERAL

Os magistrados federais brasileiros em assembléia geral extraordinária decidiram com 83% dos votos paralisar as suas atividades, por um dia, na data de 27 de abril de 2011. É evidente que a prestação de justiça neste dia não será interrompida para os casos urgentes, é uma responsabilidade que a magistratura federal brasileira tem para com a sociedade. A paralisação da justiça federal não se confunde com greve, pois a última, ao contrário da primeira, se dá por tempo indeterminado e sem previsão de retomada das atividades. A paralisação se dará por mais segurança para os juízes exercerem o seu trabalho, igualdade de direitos com o Ministério Público Federal e pelo cumprimento da constituição que determina a revisão anual do teto remuneratório do funcionalismo público. O que motivou a decisão dos juízes federais brasileiros não foi o aumento nos seus salários, mas o cumprimento do texto Constitucional que afirma com todas as letras que o Judiciário é independente e um dos Poderes do Estado.
Os magistrados federais brasileiros detêm a competência para processar e julgar crimes, entre outros, de tráfico internacional de drogas e cometidos por organizações criminosas. Em face da postura firme e corajosa dos juízes federais brasileiros  a maior parte dos líderes do crime organizado e do tráfico internacional no país foram presos nos últimos anos. O custo desta atuação independente é a crescente ameaça e atentados contra a vida de juízes e suas famílias o que, inclusive, tem sido divulgado constantemente na imprensa. A polícia federal hoje não possui efetivo para dar segurança necessária e suficiente aos juízes federais que atuam na área criminal no nosso país.
É por isso que lutamos no Congresso pela  aprovação do PL 3/2010  que cria o órgão colegiado de juízes, semelhante ao formado na Itália na Operação Mãos Limpas de combate à máfia, para processar e julgar as organizações criminosas brasileiras. Também está previsto no projeto a criação da polícia judiciária composta por agentes de segurança da justiça federal para que possam fazer a segurança dos juízes, servidores e da população que freqüenta os prédios da justiça. Nos últimos meses foram dezenas de ameaças a magistrados federais que estão com medo e temendo pela própria vida e de suas famílias.
Quanto à igualdade de direitos entre juízes e representantes do Ministério Público determinada pela Constituição, é um mandamento constitucional que precisa ser respeitado e está sendo descumprido na prática. Diante do descumprimento desta disposição constitucional o CNJ, em decisão corajosa e exemplar, reconheceu essa igualdade de direitos por larga maioria. Todavia, um ano após a referida decisão, esta  ainda não foi implementada para os magistrados federais e já está sendo efetivada para setores da magistratura do trabalho e estadual. Não existe sistema constitucional no Mundo onde o Poder Judiciário, que decide os processos, possua menos direitos e prerrogativas do que outras carreiras jurídicas como ocorre no Brasil.
O terceiro ponto, a revisão do teto constitucional, também defendemos com clareza e abertamente. Lutamos para que fosse criado o teto constitucional moralizador com a emenda constitucional 45, pois no ano de 2005 existiam salários absurdos e imorais no serviço público que chegavam a R$ 80.000,00 [oitenta mil reais]. O teto constitucional apoiado pela AJUFE, desde o seu nascimento, deve ser atualizado anualmente de acordo com o índice oficial de inflação eleito pelo governo. Nos últimos 6 anos isso ocorreu apenas uma vez no patamar de 8%, enquanto o IPCA e INPC chegaram a mais de 30%. É bom que se diga também que o salário líquido do magistrado federal é de R$ 12.000,00. Nenhuma outra gratificação, adicional, 14º ou 15º salário é agregado a este subsídio único.
Temos confiança na Presidente Dilma, por ser uma técnica com extrema sensibilidade política, como tem demonstrado, para resolver este grave impasse instaurado. Não queremos aqui repetir exemplos grevistas que ocorreram na Espanha, França e Portugal nos últimos anos, mas exigimos segurança e garantias para que tenhamos um Poder Judiciário federal forte e independente para bem atender ao povo brasileiro.

Gabriel Wedy – Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE).

terça-feira, 26 de abril de 2011

Páscoa e Salvação

Páscoa e Salvação


Tempo de páscoa. Tempo de renovação.
Quem mais nos amou. Quem mais se deu.
Foi Jesus. O Nazareno. Que nos trouxe a salvação.
Não fez nada sozinho. Somente fez obedecer a Deus.

Devemos de corpo e mente
Agradecer esta passagem.
Tê-la na mente bem presente.
Receber de coração a mensagem.


Devemos amar nossos irmãos.
Sem qualquer restrição.
Como Ele nos amou. Sem sermões.

A nossa Fé deverá ser nossa contrição.
O nosso arrependimento, nossa salvação.
Assim, teremos, Páscoa e renovação.

(PAULO BASÍLIO)

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Carta de Fukushima

Para refletir!!!... Que sirva de exemplo para todos nós!!!



A carta a seguir foi escrita por Ha Minh Thanh, um imigrante vietnamita que é policial em Fukushima no Japão. Era endereçada a seu irmão, mas acabou chegando a um jornal em Shangai que a traduziu e publicou.
Querido irmão,                                                       

Como estão você e sua família? Estes últimos dias tem sido um verdadeiro caos. Quando fecho meus olhos, vejo cadáveres e quando os abro, também vejo cadáveres.                        

Cada um de nós está trabalhando umas 20 horas por dia e mesmo assim, gostaria que houvesse 48 horas no dia para poder continuar a ajudar e resgatar as pessoas.

Estamos sem água e eletricidade e as porções de comida estão quase a zero. Mal conseguimos mudar os refugiados e logo há ordens para mudá-los para outros lugares.
Atualmente estou em Fukushima – a uns 25 quilômetros da usina nuclear. Tenho tanto a contar que se fosse contar tudo, essa carta se tornaria um verdadeiro romance sobre relações humanas e comportamentos durante tempos de crise.
As pessoas aqui permanecem calmas – seu senso de dignidade e seu comportamento são muito bons – assim, as coisas não são tão ruins como poderiam. Entretanto, mais uma semana, não posso garantir que as coisas não cheguem a um ponto onde não poderemos dar proteção e manter a ordem de forma apropriada.
Afinal de contas, eles são humanos e quando a fome e a sede se sobrepõem à dignidade, eles farão o que tiver que ser feito para conseguir comida e água. O governo está tentando fornecer suprimentos pelo ar enviando comida e medicamentos, mas é como jogar um pouco de sal no oceano.
Irmão querido, houve um incidente realmente tocante que envolveu um garotinho japonês que ensinou a um adulto, como eu, uma lição de como se comportar como um verdadeiro ser humano.
Ontem à noite fui enviado para uma escola infantil para ajudar uma organização de caridade a distribuir comida aos refugiados. Era uma fila muito longa e notei, no final dela, um garotinho de uns 9 anos que usava uma camiseta e um short.
Estava ficando muito frio e fiquei preocupado se, ao chegar sua vez, poderia não haver mais comida. Fui falar com ele. Ele contou que estava na escola quando o terremoto ocorreu. Seu pai, que trabalhava perto, estava se dirigindo para a escola para apanhá-lo e ele, que estava no terraço do terceiro andar, viu quando a onda tsunami levou o carro com seu pai dentro.          

Perguntei sobre sua mãe. Ele disse que sua casa era bem perto da praia e que sua mãe e sua irmãzinha provavelmente não sobreviveram. Notei que ele virou a cabeça para limpar uma lágrima quando perguntei sobre sua família.
O garoto estava tremendo. Tirei minha jaqueta de policial e coloquei sobre ele. Foi ai que a minha bolsa de bentô (comida) caiu. Peguei-a e dei-a para ele dizendo: “Quando chegar a sua vez a comida pode ter acabado. Assim, aqui está a minha porção. Eu já comi. Por que você não come”?
Ele pegou a minha comida e  fez uma reverência. Pensei que ele iria comer imediatamente, mas ele não o fez. Pegou a comida, foi até o início da fila e colocou-a onde todas as outras comidas estavam esperando para serem distribuídas.
Fiquei chocado. Perguntei-lhe por que ele não havia comido ao invés de colocar a comida na pilha de comida para distribuição. Ele respondeu: “Porque vejo pessoas com mais fome que eu. Se eu colocar a comida lá, eles irão distribuí-la mais igualmente”.
Quando ouvi aquilo, me virei para que as pessoas não me vissem chorar.
Uma sociedade que pode produzir uma pessoa de 9 anos que compreende o conceito de sacrifício para o bem maior deve ser uma grande sociedade, um grande povo.

Bem, envie minhas saudações à sua família. Tenho que ir, meu plantão já começou.

sábado, 23 de abril de 2011

Amor em Disney

Amor em Disney

Rodolfo Pamplona Filho
Eu não quero mais
a tranquilidade do carrossel
e, sim, a adrenalina
da montanha russa...

Eu quero experimentar
novos e diferentes sabores
e, não mais, o mesmo
feijão com arroz que sempre comi...

Eu quero tomar um caldo
e correr o risco do resfriado,
em vez de me recolher seco
em algum canto protegido...

Eu quero me jogar
do alto da torre,
e não ficar esperando
o horário do almoço...

Eu quero a surpresa e o suspense
do encontro na madrugada
e não a eterna rotina
da atividade programada...

Eu quero isso tudo...
e muito mais...
tanto na viagem,
quanto na vida,
que não merece ser vivida
com medo do que virá,
mas, sim, com o desejo intenso
de aproveitar tudo que ela nos deixar...

Orlando, 28 de fevereiro de 2011

sexta-feira, 22 de abril de 2011

NUVENS, de Jorge Luis Borges

NUVENS


Não há uma só coisa que não seja
nuvem. Assim são essas catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo alisa. A Odisséia, veja,
muda como o mar; há algo distinto
a cada vez que a abrimos. Seu velho
rosto já é outro, visto no espelho,
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A volumosa
nuvem que se desmancha no poente
é a nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte em outra rosa.
Você é nuvem, mar, esquecimento.
E é o que perdeu a cada momento.


Jorge Luis Borges

quinta-feira, 21 de abril de 2011

DESEJOS E PROPÓSITOS



Desejos passam.
Propósitos ficam.
Desejos movem o corpo.
Propósitos encorajam o alma.

Desejos nos impelem por um momento.
Propósitos nos conduzem por uma vida.
Desejos produzem transpiração.
Propósitos produzem inspiração.

Desejos nos balançam.
Propósitos nos equilibram.
Desejos nos desviam o passo, por vezes.
Propósitos nos retém no caminho, sempre.

Desejos estão escancarados.
Propósitos estão protegidos.
Desejos são flores.
Propósitos são raiz.

Ney Maranhão

terça-feira, 19 de abril de 2011

Aniversário de Casamento

Aniversário de Casamento

Rodolfo Pamplona Filho

O que é um ano
para quem quer viver juntos
todos os momentos do dia?

O que é uma data
para quem compartilha
o pão, a cama e a vida?

O que é o tempo
para quem não o viu passar,
entretido com a beleza de seu par?

É apenas um traço no calendário...
É mais um espaço no armário...
É uma nova festa de aniversário
para comemorar
a certeza de hoje amar
mais do que ontem de manhã
e muito menos do que amanhã...

Feliz Aniversário de Casamento!
Salvador, 19 de janeiro de 2011.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Fernando Pessoa, de uma forma diferente...


"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos".

Este é o poema de Fernando Pessoa que Cleo Pires tatuou temporariamente na coxa direita.

O cronista Luis Fernando Verissimo afirmou que a atriz "pode estar muito bem inaugurando um novo espaço para a literatura", como escreveu no texto Tatu, que saiu no blog do jornalista Ricardo Noblat.
Achei isto sensacional e que merecia ser compartilhado...

domingo, 17 de abril de 2011

CADÁVER

CADÁVER
Jacyra Ferraz Laranjeira

O corpo cadavérico em uma mesa de metal.
Um louco, nem morto nem vivo.
Uma tentativa de suicídio.
Um homem de jaleco branco
corta-lhe a barriga na vertical.
Partindo do umbigo, arranca a pele,
sem dó, na horizontal.
Pele? Foi a casca da serpente
saindo,
o casulo da lagarta
caindo.
uma águia, uma borboleta
foram surgindo.
e a coisa morta viva
esvaindo.
Da dor insuportável, brota um choro.
Existe ali alguém de alma sensível,
que começa a temer atos e cenas
ou surtos ou impulsos....
Vai tentar viver momentos de tranqüilidade
na simplicidade.
Quem sabe encontra um pouco de paz!
Ou um pensamento diferente dos demais,
algum momento de felicidade,
que ela sabe que se desfaz, refaz, desfaz...

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O metrônomo

O metrônomo
 José Antonio Correa Francisco
O ideal seria começar como nas histórias infantis: Era uma vez espaço e tempo (Mônica Sette Lopes)

O sol não havia dado a luz de sua graça. A névoa era densa. Fosca e prateada. Impossível enxergar algo além do capô do carro. Nunca dirigi tão devagar e com cuidado. Ninguém na rua. Nenhum carro. Nenhuma pessoa. Ninguém. Ao menos eu nada conseguia enxergar além do capô.
Estacionei o carro e desci. O ambiente era assustador. A névoa úmida, densa, fosca e prateada agora era cortada pelo meu umbigo. Sim. Não era possível esconder tamanha deformidade física: a barriga crescera mais do que qualquer parte do corpo. Nenhuma luz, nenhuma pessoa. Não havia vento. Somente a névoa densa e úmida. Ao me aproximar da porta, lentamente, percebi que estava sem a trava e entrei. A névoa foi definitivamente deixada para trás, embora ousasse invadir os espaços internos do prédio, sem sucesso. Liguei o celular. Finalmente algo útil pode ser extraído do aparelho produzido para vigiar os nossos passos. Dever-se-ia chamar GPS (gentio permanentemente seguido). Consegui chegar até a porta da Vara. Também estava destravada. Também entrei. Acendi o interruptor de luz e me dirigi ao gabinete.
Seria o primeiro dia de trabalho naquele local. Uma pilha de processos na minha mesa. Fiquei apavorado. Não suporto nada sobre a mesa. Principalmente pilhas de processos. Somente eu posso ocupar a mesa. Somente eu! Quando a diretora chegasse, exortar-lhe-ia, severamente, para que aquilo não ocorresse jamais, jamais...
Fui até a copa. Enchi uma caneca com água e aqueci no aparelho de microondas. Busquei algum chá nos armários, mas nada havia. Olhei para a caneca, bebi um leve gole d’água e não gostei do que senti. Descartei a água quente e a caneca. Peguei um copo. Abri a geladeira mais nada havia e sequer ligada estava. Não havia água no filtro. Enchi novamente a caneca com água e novamente abri o aparelho de microondas. Aqueci um pouco mais do que a primeira vez. Levei a caneca para o gabinete.
Pus a caneca ao lado do teclado do computador e tentei erguer a pilha de processos. Antes, porém, resolvi ler o nome das partes, a petição inicial, documentos, enfim, se algo já ocorrera. Processualmente falando. Fiquei surpreso ao perceber que eu não conseguia ler as letras na capa dos autos. Como num conto fantástico, quando eu me aproximava dos autos as letras dançavam como estrelas cadentes, corriam como pássaros, voavam como bailarinas. Peguei a caneca e dei um gole sensível. Senti um calor tremendo. Água quente na boca vermelha: sensação inodora e desagradável.
Corri ao banheiro. Não havia luz e algum vazamento no encanamento produzia um barulho sombrio. Misto de gritos e sussurros de quem, numa madrugada fria, procura abrigo para se proteger de uma tempestade. Não sabia o motivo de me encontrar ali. Voltei ao gabinete. Sentei à frente da pilha de processos. O baile das letras continuou. Mesmo assim abri os autos...
Fiquei boquiaberto ao ver pentagramas repletos de notas e pausas. Semínimas, semibreves, semifusas e suas correlatas pausas. Acordes e acordes, solfejos, arpejos. Bemóis e sustenidos. Langsam era o andamento da petição inicial. Larghetto, o da contestação. Na audiência inaugural foi inscrito Presto con fuoco: conciliação recusada. Fechei o processo, catatônico. Voltei à copa e esquentei um pouco mais de água. Voltei ao gabinete. Não conseguia mirar a pilha de processos. Liguei o computador e uma enorme clave de sol surgiu na tela. Brilhante e dourada. Ao fundo, um suave solfejo de fagote. Não reconheci a música, embora atraente e cativante.
A pouco e pouco escutei barulhos nos corredores. Os servidores chegavam. Os cumprimentos se multiplicavam. A campainha instalada no balcão avisava um novo atendimento a ser feito. O som da campainha era diferente, lembrando um maestro que, antes da execução da peça musical, marca levemente o compasso. Trouxeram o metrônomo. Um servidor, de baixa estatura e grave largura, com roupas brilhantes e coloridas, carregava uma almofada vermelha. Sobre ela, o metrônomo. Silente e polido. Madeira de lei e o pêndulo formado por uma haste de aço e o peso de cobre. Todos os servidores na Vara se levantavam com a passagem do metrônomo que foi colocado, religiosamente, na sala de audiência. Da porta do gabinete, observava tudo, atentamente.
Tomei mais um gole da água da caneca. Estava alimentado e pronto para o início da sessão. Ouvi rumores no corredor ainda mais altos e me dirige à sala de audiência. Feito o pregão. Peguei o processo e as letras continuavam, teimosamente, a bailar. Seria um dia difícil, imaginei. Partes e advogados entraram na sala. De meu lado esquerdo, o secretário de audiência. Do lado direito, o metrônomo. Assim que todos se sentaram, o servidor de roupas coloridas acionou o metrônomo. Tec, tec... Tec, tec. Lentamente, muito lentamente o ritmo da audiência foi determinado pelo metrônomo. Tec, tec. Todos se portavam normalmente. Eu estava impaciente, pois me sentia profundamente incomodado com a marcação do tempo. Lento, tec, tec, mas preciso. Repetitivo. Tec, tec. Peguei o processo, mais uma vez, e, para meu espanto, os nomes continuavam a dançar, na capa, acompanhando com precisão o ritmo do metrônomo. Tec, tec...Tec, tec. Mesmo sem conseguir entender nada, iniciei os trabalhos.
Enquanto o metrônomo marca o tempo, o servidor abriu um documento na tela do computador, formado por tabela repleta de informações musicais. Tons, semitons, claves, fermatas, compassos, ritornelos. Pensei, rapidamente, na possibilidade de não estar preparado para aquela sessão, mas logo encarei o meu papel de julgador, pensando nos princípios, na analogia e nos ótimos costumes. Gostava de música, mas não detinha tanto conhecimento para decidir a questão. Enchi-me de orgulho e determinei ao servidor que escolhesse o segundo quadro da tabela. Pronto. Instrução iniciada.
Antes de qualquer recurso retórico, antes de qualquer palavra amiga, antes de qualquer cumprimento às partes e aos presentes na sala de audiência, o servidor das roupas coloridas e brilhantes acelerou o andamento do metrônomo. A pulsação imposta pelo aparelho já era maior do que o meu batimento cardíaco. As partes se agitavam. No corredor, um vozerio tamanho. Chamei o meirinho e determinei que pedisse para que se fizesse silêncio. Ao abrir a porta da sala de audiência, o vozerio foi trocado por sons de afinação de instrumentos. Ao fechar a porta, o silêncio reinou. Dirigi a palavra à reclamante para que falasse. Era uma mulher linda e séria. O problema deveria ser gravíssimo. Ao abrir a boca, eu escutei uma linda ária, perfeita. Nunca ouvira nada tão belo e suave. Esperei a pausa e retirei-lhe a palavra. O seu patrono olhou para mim, com ar de reprovação. Neste momento, o servidor de baixa estatura e grave largura acelerou um pouco mais o metrônomo. Os presentes se agitaram ainda mais. O vozerio lá fora retornou. Mais uma vez determinei o silêncio que foi precedido de pequenos arpejos dos instrumentos do lado de fora. Passei a palavra ao reclamado que, com voz de barítono, cantava outra bela canção. Um lied tão sensível que a reclamante pousou as mãos sobre a mesa, fechou os olhos e sorriu levemente. Esperei a pausa e retirei-lhe a palavra. Houve protestos de todos, inclusive dos servidores. O metrônomo disparou e eu retornei ao gabinete, abri a porta do banheiro e comecei a gritar: Bravo, bravíssimo, bravíssimo!!!!
Minha mulher trouxe um copo d’água. Gelado. Meu filho, que dormia no quarto, estava sentado junto à parede e se contorcia de tanto rir. Tomei a água. Olhei no relógio. 2h40. Ainda eu teria o domingo para descansar antes do retorno às atividades. Fui até a sala e fechei o livro que ganhara naquele dia.
Preciso sonhar mais...

Manaus, 8.1.2011

Um dia após o retorno do recesso.

__._,_.___

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Pressão

Pressão

Rodolfo Pamplona Filho
A cabeça dói...
O ar diminui...
O tempo parece ser curto demais
para fazer qualquer coisa...

As tarefas se acumulam...
As pendências vão a cem...
Será que, no universo, alguém
sente o que sinto também?

Parece que vou explodir...
Meu desejo sincero é sumir
e ir para algum lugar
onde possa voltar
a viver e respirar...

Mas este desejo é em vão,
pois, na sombra das horas,
novos compromissos virão,
mais demandas surgirão
e o universo continuará
em uma paranóica conspiração
de nunca diminuir a pressão...
... até ...
... até não resistir...
... até explodir...
Salvador, 07 de janeiro de 2011.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Ao vento

Ao vento
Marcelo Luís de Souza Ferreira
Se nós dançarmos
só mais essa canção
e se os pés esperarem
o momento certo do passo
Se só deixarmos fluir
pé ante pé
quem sabe o tempo regrida
e a música não acabe jamais.
      - Então, perguntaria o teu nome
        sentindo o leve toque da tua mão
        e a respiração ofegante
        no momento em que meu braço tentaria te envolver
        e te trazer para o meu tempo.
Ou, se chegar ao final,
        no último acorde daríamos conta
        de que lentamente envelhecemos
        enquanto o mundo
        pasmo
        nos via dançar.

 

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Meu amor será eternamente seu

Meu amor será eternamente seu

Rodolfo Pamplona Filho
Mesmo quando meu coração chorar
e partir em mil pedaços,
meu amor será seu.

Mesmo com mãos vazias,
esperando um toque dos seus lábios,
meu amor será seu.

Mesmo com os olhos longe
em um mar repleto de esperanças,
meu amor será seu.

Mesmo sem porquês...
Mesmo sem respostas...
meu amor será seu.

Mesmo que eu vá embora
para longe do que se conhece,
meu amor será eternamente seu.
Salvador, 05 de janeiro de 2011.

domingo, 10 de abril de 2011

Sofrendo por amor

Sofrendo por amor

Rodolfo Pamplona Filho
Essa noite, chorei até cansar,
entreguei-me ao desesperar,
no pensar que poderia estar
em teus braços a te amar...

Meu corpo logo fadigou
de tanta angústia e sofrimento
com a frustração do que sonhou
na viagem do meu pensamento

e, silenciosamente, adormeceu,
com a roupa que estava,
com a imagem do rosto teu,
com a dor que dilacerava...

E no meio da noite, despertei
e, em você, de logo, pensei
e meu olhar, antes tenso
foi tomado por brilho intenso

de ter certeza de seu amor
e saber que minha dor
é infinitamente menor
que o nosso calor

e o que eu desejo, na esperança?
Ser paciente, confidente, coerente
pois, nesse amor, a perseverança
moverá minha vida daqui para a frente...
Salvador, 04 de novembro de 2010.

sábado, 9 de abril de 2011

O LAÇO E O ABRAÇO (Mário Quintana)

O LAÇO E O ABRAÇO
Maria Beatriz Marinho dos Anjos
Meu Deus! Como é engraçado!
Eu nunca tinha reparado como é curioso um laço... uma fita dando
voltas. Enrosca-se, mas não se embola, vira, revira, circula e
pronto: está dado o laço. É assim que é o abraço: coração com
coração, tudo isso cercado de braço. É assim que é o laço: um
abraço no presente, no cabelo, no vestido, em qualquer coisa onde o
faço.
E quando puxo uma ponta, o que é que acontece? Vai escorregando...
devagarzinho, desmancha, desfaz o abraço.
Solta o presente, o cabelo, fica solto no vestido.
E, na fita, que curioso, não faltou nem um pedaço.
Ah! Então, é assim o amor, a amizade.
Tudo que é sentimento. Como um pedaço de fita. Enrosca, segura um
pouquinho, mas pode se desfazer a qualquer hora, deixando livre as
duas bandas do laço. Por isso é que se diz: laço afetivo, laço de
amizade.
E quando alguém briga, então se diz: romperam-se os laços. E saem
as duas partes, igual meus pedaços de fita, sem perder nenhum
pedaço. Então o amor e a amizade são isso...
Não prendem, não escravizam, não apertam, não sufocam.
Porque quando vira nó, já deixou de ser um laço!

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Superando a Rejeição

Superando a Rejeição

Rodolfo Pamplona Filho

Não é fácil sobreviver,
não é fácil suportar
uma vida inteira para viver
e ninguém para contar

como ombro amigo na tristeza,
repouso certo no cansaço da idade,
fim da turbulência na natureza,
porto seguro na tempestade...

Só há um diário momento
na rotina de sofrimento,
em que a vida me dá um alento
amenizando meu tormento:

é quando leio frases com nova cor...
talvez, palavras com um tal calor
do verdadeiro e sincero amor,
que o destino não me rejeitou...
Salvador, 03 de janeiro de 2011.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Recado ao senhor 903


Recado ao senhor 903

Vizinho –
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me
mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua
própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou
desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o
senhor teria ainda ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso
noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é
impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o
meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003,
me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao
alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos;
apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído  e funcionamos fora dos horários civis; nós dois
apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar,
depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à
minha casa (perdão, ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa
repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua,
onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser
tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de
seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à
porta do outro e dissesse:  “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou.” E o
outro respondesse: “Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar
e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem  entre os amigos e amigas do vizinho
entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom
da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

Rubem Braga
Janeiro de 1953


__._,_.___

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Rejeitado

Rejeitado

Rodolfo Pamplona Filho

Sinto-me rejeitado quando
esquecem meus sentimentos,
devolvem meus presentes,
castram meus pensamentos...

Sinto-me rejeitado quando
desconheço meus pais,
não reconheço meus irmãos,
estranho a falta de paz...

Sinto-me rejeitado quando
meus poemas não são entendidos,
minhas canções não são cantadas,
e pedidos de socorro não são ouvidos...

Sinto-me rejeitado quando
não importam as palavras que diga,
não interessam as idéias que professe,
não se aceita minha forma de vida...

Sinto-me rejeitado quando
não vale a pena insistir,
pois todo esforço é inútil
e é melhor desistir...

Sinto-me rejeitado quando
a melhor companhia é a solidão,
o silêncio é preferível ao diálogo
e a indiferença supera o que era paixão.

Praia do Forte, 01 de janeiro de 2010.

terça-feira, 5 de abril de 2011

O Amor é uma Falácia


O Amor é uma Falácia

M. Sulman
Eu era frio e lógico. Sutil, calculista, perspicaz, arguto e astuto - era tudo isso. Tinha um cérebro poderoso como um dínamo, preciso como uma balança de farmácia, penetrante como um bisturi. E tinha - imaginem só - dezoito anos.
Não é comum ver alguém tão jovem com um intelecto tão gigantesco. Tomem, por exemplo, o caso do meu companheiro de quarto na universidade, Pettey Bellows. Mesma idade, mesma formação, mas burro como uma porta. Um bom sujeito, compreendam, mas sem nada lá em cima. Do tipo emocional. Instável, impressionável. Pior do que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a mania é a própria negação da razão. Deixar-se levar por qualquer nova moda que apareça, entregar a alguma idiotice só porque os outros a segue, isto, para mim, é o cúmulo da insensatez. Petey, no entanto, não pensava assim.
Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal expressão de sofrimento no rosto que o meu diagnóstico foi imediato: apendicite.
- Não se mexa. Não tome laxante. Vou chamar o médico.
- Couro preto - balbuciou ele.
- Couro preto? - disse eu, interrompendo a minha corrida.
- Quero uma jaqueta de couro preto - disse.
Percebi que o seu problema não era físico, mas mental.
- Por que você quer uma jaqueta de couro preto?
- Eu devia ter adivinhado - gritou ele, socando a cabeça - Devia ter adivinhado que eles voltariam com o Charleston. Como um idiota, gastei todo o meu dinheiro em livros para as aulas e agora não posso comprar uma jaqueta de couro preto.
- Quer dizer - perguntei incrédulo - que estão mesmo usando jaquetas de couro preto outra vez?
- Todas as pessoas importantes da universidade estão. Onde você tem andado?
- Na biblioteca - respondi, citando um lugar não freqüentado pela pessoas importantes da Universidade.
Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto.
- Preciso conseguir uma jaqueta de couro preto - disse, exaltado - Preciso mesmo.
- Por que, Pety? Veja a coisa racionalmente. Jaquetas de couro preto são desconfortáveis. Impedem o movimento dos braços. São pesadas, são feias, são ...
- Você não compreende - interrompeu ele com impaciência - é o que todos estão usando. Você não quer andar na moda?
- Não - respondi, sinceramente.
- Pois eu sim - declarou ele - daria tudo para ter uma jaqueta de couro preto. Tudo.
Aquele instrumento de precisão, meu cérebro, começou a funcionar a todo vapor.
- Tudo? - perguntei, examinando seu rosto com olhos semicerrados.
- Tudo - confirmou ele, em tom dramático.
Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia onde encontrar uma jaqueta de couro preto. Meu pai usara um nos seus tempos de estudante; estava agora dentro de um malão, no sótão da casa. E, também por acaso, Petey tinha algo que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos ele tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua namorada, Polly Spy.
Eu há muito desejava Polly Spy. Apresso-me a esclarecer que o meu desejo não era de natureza emotiva. A moça, não há dúvida, despertava emoções, mas eu não era daqueles que se deixam dominar pelo coração. Desejava Polly para fins engenhosamente calculados e inteiramente cerebrais.
Cursava eu o primeiro ano de direito. Dali a algum tempo, estaria me iniciando na profissão. Sabia muito bem a importância que tinha a esposa na vida e na carreira de um advogado. Os advogados de sucesso, segundo as minhas observações, eram quase sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e inteligentes. Com uma única exceção, Polly preenchia perfeitamente estes requisitos.
Era bonita. Suas proporções ainda não eram clássicas, mas eu tinha certeza de que o tempo se encarregaria de fornecer o que faltava. A estrutura básica estava lá.
Graciosa também era. Por graciosa quero dizer cheia de graças sociais. Tinha porte ereto, a naturalidade no andar e a elegância que deixavam transparecer a melhor das linhagens. Á mesa, suas maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly no barzinho da escola comendo a especialidade da casa - um sanduíche que continha pedaços de carne assada, molho, castanhas e repolho - sem nem sequer umedecer os dedos.
Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para o oposto. Mas eu confiava em que, sob a minha tutela, haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos valia a pena tentar. Afinal de contas, é mais fácil fazer uma moça bonita e burra ficar inteligente do que uma moça feia e inteligente ficar bonita.
- Petey - perguntei - você ama Polly Spy?
- Eu acho que ela é interessante - respondeu - mas não sei se chamaria isso de amor. Por quê?
- Você - continuei - tem alguma espécie de arranjo formal com ela? Quero dizer, vocês saem exclusivamente um com o outro?
- Não. Nos vemos seguidamente. Mas saímos os dois com outros também. Por quê?
- Existe alguém - perguntei - algum outro homem que ela goste de maneira especial?
- Que eu saiba não. Por quê?
Fiz que sim com a cabeça, satisfeito.
- Em outras palavras, a não ser por você, o campo está livre, é isso?
- Acho que sim. Aonde você quer chegar?
- Nada, anda - respondi com inocência, tirando minha mala de dentro do armário.
- Onde é que você vai? - quis saber Petey.
- Passar o fim de semana em casa.
Atirei algumas roupas dentro da mala.
- Escute - disse Petey, apegando-se com força ao meu braço - em casa, será que você não poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me emprestar para comprar uma jaqueta de couro preto?
- Posso até fazer mais do que isso - respondi, piscando o olho misteriosamente. Fechei a mala e saí.
- Olhe - disse a Petey, ao voltar na segunda feira de manhã. Abri a mala e mostrei o enorme objeto cabeludo e fedorento que meu pai usara ao volante de seu Stutz Beacat em 1955.
- Santo Pai - exclamou Petey com reverência. Passou as mãos na jaqueta e depois no rosto.
- Santo Pai - repetiu, umas quinze ou vinte vezes.
- Você gostaria de ficar com ele? - perguntei.
- Sim - gritou ele, apertando a jaqueta contra o peito. Em seguida, seus olhos assumiram um ar precavido. - O que quer em troca?
- A sua namorada - disse eu, não desperdiçando palavras.
- Polly? - sussurrou Petey, horrorizado. - Você quer a Polly?
- Isso mesmo.
Ele jogou a jaqueta pra longe.
- Nunca - declarou resoluto.
Dei de ombros.
- Tudo bem. Se você não quer andar na moda, o problema é seu.
Sentei-me numa cadeira e fingi que lia um livro, mas continuei espiando Petey, com o rabo dos olhos. Era um homem partido em dois. Primeiro olhava para a jaqueta com a expressão de uma criança desamparada diante da vitrine de uma confeitaria. Depois dava-lhe as costas e cerrava os dentes, altivo. Depois voltava a olhar para a jaqueta. Com uma expressão ainda maior de desejo no rosto. Depois virava-se outra vez, mas agora sem tanta resolução. Sua cabeça ia e vinha, o desejo ascendendo, a resolução descendendo. Finalmente, não se virou mais: ficou olhando para a jaqueta com pura lascívia.
- Não é como se eu estivesse apaixonado por Polly - balbuciou. - Ou mesmo namorando sério, ou coisa parecida.
- Isso mesmo - murmurei.
- Afinal, Polly significa o que para mim, ou eu pra ela?
- Nada - respondi.
- Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco. Só isso.
- Experimente a jaqueta - disse eu.
Ele obedeceu. A jaqueta ficou bem larga, passando da cintura. Ele parecia um motoqueiro mal vestido da década de cinqüenta.
- Serve perfeitamente - disse, contente.
Levantei-me da cadeira e perguntei, estendendo a mão.
- Negócio feito?
Ele engoliu a seco.
- Feito - disse, e apertou a minha mão.
Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte.
O Primeiro programa teria o caráter de pesquisa preparatória. Eu desejava saber o trabalho que me esperava para elevar a sua mente ao nível desejado. Levei-a para jantar.
- Puxa, que jantar interessante! - disse ela, quando saímos do restaurante. Fomos ao cinema.
- Puxa, que filme interessante! - disse ela, quando saímos do cinema.
Levei-a para casa.
- Puxa, que noite interessante - disse ela, ao nos despedirmos.
Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu subestimara gravemente as proporções da minha tarefa. A ignorância daquela moça era aterradora. E não seria o bastante apenas instruí-la. Era preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento se me afigurava gigantesco, e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Petey. Mas aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos e na maneira como entrava numa sala ou segurava uma faca, um garfo, e decidi tentar novamente.
Procedi, como sempre, sistematicamente. Dei-lhe um curso de Lógica. Acontece que, como estudante de direito, eu freqüentava na ocasião aulas de Lógica, e portanto tinha tudo na ponta da língua.
- Polly - disse eu, quando fui buscá-la para o nosso segundo encontro. - Esta noite vamos até o parque conversar.
- Ah, que interessante! - respondeu ela.
Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria difícil encontrar alguém tão bem disposta para tudo.
Fomos até o parque, o local de encontros da universidade, nos sentamos debaixo de uma árvore, e ela me olhou cheia de expectativa.
- Sobre o que vamos conversar? - perguntou.
- Sobre Lógica.
Ela pensou durante alguns segundos e depois sentenciou:
- Interessante!
- A Lógica - comecei, limpando a garganta - é a ciência do pensamento. Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias mais comuns da Lógica. É o que vamos abordar hoje.
- Interessante! - exclamou ela, batendo palmas de alegria.
Fiz uma careta, mas segui em frente, com coragem.
- Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto Simpliciter.
- Vamos - animou-se ela, piscando os olhos com animação.
- Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa generalização não qualificada. Por exemplo: o exercício é bom, portanto todos devem se exercitar.
- Eu estou de acordo - disse Polly, fervorosamente. - Quer dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é, desenvolve o corpo e tudo.
- Polly - disse eu, com ternura - o argumento é uma falácia. Dizer que o exercício é bom é uma generalização não qualificada. Por exemplo: para quem sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm ordem de seus médicos para não exercitarem. É preciso qualificar a generalização. Deve-se dizer: o exercício é geralmente bom, ou é bom para a maioria das pessoas. Do contrário está-se cometendo um Dicto Simpliciter. Você compreende?
- Não - confessou ela. - Mas isso é interessante. Quero mais. Quero mais!
- Será melhor se você parar de puxar a manga da minha camisa - disse eu e, quando ela parou, continuei:
- Em seguida, abordaremos uma falácia chamada generalização apressada. Ouça com atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar francês, Petey Bellows não sabe falar francês. Devo portanto concluir que ninguém na universidade sabe falar francês.
- É mesmo? - espantou-se Polly. - Ninguém?
Contive a minha impaciência.
- É uma falácia, Polly. A generalização é feita apressadamente. Não há exemplos suficientes para justificar a conclusão.
- Você conhece outras falácias? - perguntou ela, animada. - Isto é até melhor do que dançar.
- Esforcei-me por conter a onda de desespero que ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela moça, absolutamente nada. Mas não sou outra coisa senão persistente. Continuei.
- A seguir, vem o Post Hoc. Ouça: Não levemos Bill conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto, começa a chover.
- Eu conheço uma pessoa exatamente assim - exclamou Polly. - Uma moça da minha cidade, Eula Becker. Nunca falha. Toda vez que ela vai junto a um piquenique...
- Polly - interrompi, com energia - é uma falácia. Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo em Post Hoc, se puser a culpa na Eula Becker.
- Nunca mais farei isso - prometeu ela, constrangida. - Você está bravo comigo?
- Não Polly - suspirei. - Não estou bravo.
- Então conte outra falácia.
- Muito bem. Vamos experimentar as premissas contraditórias.
- Vamos - exclamou ela alegremente.
Franzi a testa, mas continuei.
- Aí vai um exemplo de premissas contraditórias. Se Deus pode fazer tudo, pode fazer uma pedra tão pesada que ele mesmo não conseguirá levantar?
- É claro - respondeu ela imediatamente.
- Mas se ele pode fazer tudo, pode levantar a pedra.
- É mesmo - disse ela, pensativa. - Bem, então eu acho que ele não pode fazer a pedra.
- Mas ele pode fazer tudo - lembrei-lhe.
Ela coçou a cabeça linda e vazia.
- Estou confusa - admitiu.
- É claro que está. Quando as premissas de um argumento se contradizem, não pode haver argumento. Se existe uma força irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?
- Conte outra dessas histórias interessantes - disse Polly, entusiasmada.
Consultei o relógio.
- Acho melhor parar por aqui. Levarei você em casa, e lá pensará no que aprendeu hoje. Teremos outra sessão amanhã.
Deixei-a no dormitório das moças, onde ela me assegurou que a noitada fora realmente interessante, e voltei desanimadamente para o meu quarto. Petey roncava sobre sua cama, com a jaqueta de couro encolhida a seus pés. Por alguns segundos, pensei em acordá-lo e dizer que ele podia ter Polly de volta. Era evidente que o meu projeto estava condenado ao fracasso. Ela tinha, simplesmente, uma cabeça à prova de Lógica.
Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que não perder outra? Quem sabe se em alguma parte daquela cratera de vulcão adormecido que era a mente de Polly, algumas brasas ainda estivessem vivas. Talvez, de alguma maneira, eu ainda conseguisse abaná-las até que flamejasse. As perspectivas não eram das mais animadoras, mas decidi tentar outra vez.
Sentado sob uma árvore, na noite seguinte, disse:
- Nossa primeira falácia desta noite se chama ad misericordiam.
Ela estremeceu de emoção.
- Ouça com atenção - comecei - Um homem vai pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais as suas qualificações, o homem responde que tem uma mulher e dois filhos em casa, que a mulher e aleijada, as crianças não tem o que comer, não tem o que vestir nem o que calçar, a casa não tem camas, não há carvão no porão e o inverno se aproxima.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de Polly.
- Isso é horrível, horrível! - soluçou.
- É horrível - concordei - mas não é um argumento. O homem não respondeu à pergunta do patrão sobre as suas qualificações. Ao invés disso, tentou despertar a sua compaixão. Cometeu a falácia de ad misericordiam. Compreendeu?
Dei-lhe um lenço e fiz o possível para não gritar enquanto ela enxugava os olhos.
- A seguir - disse, controlando o tom da voz - discutiremos a falsa analogia. Eis um exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar seus livros durante os exames. Afinal, os cirurgiões levam as radiografias para se guiarem durante uma operação, os advogados consultam seus papéis durante um julgamento, os construtores têm plantas que os orientam na construção de uma casa. Por quê, então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
- Pois olhe - disse ela entusiasmada - está e a idéia mais interessante que eu já ouvi há muito tempo.
- Polly - disse eu com impaciência - o argumento é falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os construtores não estão fazendo teste para ver o que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são completamente diferentes e não se pode fazer analogia entre elas.
- Continuo achando a idéia interessante - disse Polly.
- Santo Cristo! - murmurei, com impaciência.
- A seguir, tentaremos a hipótese contrária ao fato.
- Essa parece ser boa - foi a reação de Polly.
- Preste atenção: se Madame Curie não deixasse, por acaso, uma chapa fotográfica numa gaveta junto com uma pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da existência do rádio.
- É mesmo, é mesmo - concordou Polly, sacudindo a cabeça. - Você viu o filme? Eu fiquei louca pelo filme. Aquele Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me faz vibrar.
- Se conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos - disse eu, friamente - gostaria de lembrar que o que eu disse é uma falácia. Madame Curie teria descoberto o rádio de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita coisa podia acontecer. Não se pode partir de uma hipótese que não é verdadeira e tirar dela qualquer conclusão defensável.
- Eles deviam colocar o Walter Pidgeon em mais filmes - disse Polly - Eu quase não vejo ele no cinema.
Mais uma tentativa, decidi. Mas só mais uma. Há um limite para o que podemos suportar.
- A próxima falácia é chamada de envenenar o poço.
- Que engraçadinho! - deliciou-se Polly.
- Dois homens vão começar um debate. O primeiro se levante e diz: ‘o meu oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível acreditar numa só apalavra do que ele disser’. Agora, Polly, pense bem, o que está errado?
Vi-a enrugar a sua testa cremosa, concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência - o primeiro que vira - surgiu nos seus olhos.
- Não é justo! - disse ela com indignação - Não é justo. O primeiro envenenou o poço antes que os outros pudesse beber dele. Atou as mãos do adversário antes da luta começar... Polly, estou orgulhoso de você.
- Ora - murmurou ela, ruborizando de prazer.
- Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só requer concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos repassar tudo o que aprendemos até agora.
- Vamos lá - disse ela, com um abano distraído da mão.
Animado pela descoberta de que Polly não era uma cretina total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo o que dissera até ali. Sem parar citei exemplos, apontei falhas, martelei sem dar trégua. Era como cavar um túnel. A princípio, trabalho duro e escuridão. Não tinha idéia de quando veria a luz ou mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro, até que fui recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta foi se alargando até que o sol jorrou para dentro do túnel, clareando tudo.
Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera a pena. Eu transformara Polly em uma lógica, e a ensinara a pensar. Minha tarefa chegara a bom termo. Fizera dela uma mulher digna de mim. Está apta a ser minha esposa, uma anfitriã perfeita para as minhas muitas mansões. Uma mãe adequada para os meus filhos privilegiados.
Não se deve deduzir que eu não sentia amor por ela. Muito pelo contrário. Assim como Pigmaleão amara a mulher perfeita que moldara para si, eu amava a minha. Decidi comunicar-lhe os meus sentimentos no nosso encontro seguinte. Chegara a hora de mudar as nossas relações, de acadêmicas para românticas.
- Polly, disse eu, na próxima vez que nos sentamos sob a árvore - hoje não falaremos de falácias.
- Puxa! - disse ela, desapontada.
- Minha querida - prossegui, favorecendo-a com um sorriso - hoje é a sexta noite que estamos juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvidas de que formamos um bom par.
- Generalização apressada - exclamou ela, alegremente.
- Perdão - disse eu.
- Generalização apressada - repetiu ela. - Como é que você pode dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada, contente. Aquela criança adorável aprendera bem as suas lições.
- Minha querida - disse eu, dando um tapinha tolerante na sua mão - cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para saber se ele é bom ou não.
- Falsa Analogia - disse Polly prontamente - eu não sou um bolo, sou uma pessoa.
Dei outra risada, já não tão contente. A criança adorável talvez tivesse aprendido a sua lição bem demais. Resolvi mudar de tática. Obviamente, o indicado era uma declaração de amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto o meu potente cérebro selecionava as palavras adequadas. Depois reiniciei.
- Polly, eu te amo. Você é tudo no mundo pra mim, é a lua e a estrelas e as constelações no firmamento. For favor, minha querida, diga que será minha namorada, senão a minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios.
Pronto, pensei; está liquidado o assunto.
- Ad misericordiam - disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu não era Pigmaleão; era Frankenstein, e o meu monstro me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente contra o pânico que ameaçava invadir-me. Era preciso manter a calma a qualquer preço.
- Bem, Polly - disse, forçando um sorriso - não há dúvida que você aprendeu bem as falácias.
- Aprendi mesmo - respondeu ela, inclinando a cabeça com vigor.
- E quem foi que ensinou a você, Polly?
- Foi você.
- Isso mesmo. E portanto você me deve alguma coisa, não é mesmo, minha querida? Se não fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia.
- Hipótese Contrária ao Fato - disse ela sem pestanejar.
Enxuguei o suor do rosto.
- Polly - insisti, com voz rouca - você não deve levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito bem que o que aprendemos na escola nada tem a ver com a vida.
- Dicto Simpliciter - brincou ela, sacudindo o dedo na minha direção.
Foi o bastante. Levantei-me num salto, berrando como um touro.
- Você vai ou não vai me namorar?
- Não vou - respondeu ela.
- Por que não? - exigi.
- Porque hoje à tarde eu prometi a Petey Bellows que eu seria a namorada dele.
Quase caí para trás, fulminado por aquela infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois de apertar a minha mão!
- Aquele rato! - gritei, chutando a grama. - Você não pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor. Um rato.
- Envenenar o poço - disse Polly - E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.
Com uma admirável demonstração de força de vontade, modulei a minha voz.
- Muito bem - disse - você é uma lógica. Vamos olhar as coisas logicamente. Como pode preferir Petey Bellows? Olhe para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um homem com futuro assegurado. E veja Petey: um maluco, um boa vida, um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não no dia seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para namorar Petey Bellows?
- Posso sim - declarou Polly - Ele tem uma jaqueta de couro preto.

( in Sulman, M. (1973): As calcinhas cor-de-rosas do Capitão, Porto Alegre: Ed. Globo)

O Amor é uma Falácia