Alexandre Roque
Era um templo feito por mãos humanas. Quando entrei, a cerimônia já havia começado. Sentei-me ao lado de um cidadão que acariciava o cristal líquido de um celular e parecia estar alheio ao que acontecia ao seu redor.
No palco, uma banda tocava músicas religiosas que falavam de um Deus de amor, de pecados confessados, humilhação e exaltação, choro e alegria. Alguns músicos cantavam de olhos fechados; outros de olhos abertos, mas com uma expressão contrita. Às vezes, esboçavam um riso de extrema felicidade, levantando as mãos para os céus, para logo em seguida cerrarem o cenho num gesto de profunda dor, acompanhando o tema que era executado.
As melodias eram bem atuais, predominando o pop-rock. As paredes do tempo feito por mãos humanas também eram modernas. Nada que lembrasse as antigas catedrais medievais. Cadeiras de plástico, chão de cerâmica, paredes pintadas de branco, quase não havia decoração. O visual asséptico do ambiente parecia forjado para lembrar que Deus não estava ali.
Não sei se pela terceira ou quarta música, achei ver algo diferente no palco. Havia um velho enorme, de uns cinco metros de altura, sentado numa cadeira. Estava sonolento e bocejava. Um terror invadiu-me e fiquei paralisado por alguns segundos. Pensei em sair correndo, mas olhei em volta e ninguém parecia notar o velho homem. Continuavam cantando, e meu vizinho seguia acariciando o celular com seus dedos. Uma senhora cantava alto a música lenta e emocionante. Estava de olhos fechados, braços elevados e chorava.
Olhei para o palco e a imagem do homem estava mais nítida. Ele agora, com ar grave, contemplava a multidão. Seu rosto era meigo, sereno. Tinha cabelos brancos e barbas longas. Vestia-se com um manto azul e estava descalço. Fitei os seus olhos e comecei a chorar. O homem parecia incomodado com a cantoria e o barulho dos instrumentos. Remexia-se na cadeira, franzia a testa e bocejava. Começava a cochilar e acordava. Remexia-se novamente, tentava encontrar uma posição confortável.
A música cessou e o celebrante começo o seu discurso, justificando a arrecadação de dinheiro que se seguiu. Terminada a execução de mais uma música, seguiu-se a homilia.
Enquanto o pregador falava, ora calmo como um lago, ora nervoso como um tsunami, vi a imagem de uma mulher negra por trás da cadeira onde estava sentado o homem velho. A mulher aparentava vinte e poucos anos e gritava dores de parto. Olhei em volta e ninguém parecia notar a mulher.
O pregador falava de um reino futuro, um reino de mil anos que se seguirá a sete anos de tribulação que a Terra sofrerá num futuro breve. Não será um reino fictício nem celestial, mas um reino terreno, como o Reino Unido ou a Espanha. A coroa pertencerá a Jesus Cristo, aquele mesmo que andou pela Palestina há dois mil anos. Sim, ele logo voltará – dizia o pregador –, não uma, mas duas vezes. A primeira, secretamente, para arrebatar seus seguidores. A segunda, visivelmente, para implantar esse reino de mil anos. Uma espécie de monarquia teocrática, onde o rei Jesus Cristo dará as ordens, diretamente do seu trono em Jerusalém, auxiliado pelos seus apóstolos. Os seus demais seguidores também terão participação ativa nesse reino, como secretários, governadores e diplomatas.
Enquanto a pregação se desenvolvia, deixando a plateia em êxtase, a mulher negra, aos prantos, seguia em trabalho de parto. Suas feições, agora mais nítidas, revelavam sofrimento e tristeza profunda. Seu olhar era doce e triste, muito triste, como eu jamais vira. Pela segunda vez eu chorei. Observei que a pele da mulher era coberta por chagas e sua magreza era extrema. O homem velho de barbas longas, sentado em sua cadeira, no palco do templo feito por mãos humanas, observava a plateia e a mulher negra. Ele aparentava mais desconforto e tentei decifrar sua expressão. Pareceu-me demonstrar indignação com a apatia do público.
No seu derradeiro grito, já quase no final da homilia, enquanto o pregador descrevia em detalhes as maravilhas do reino de mil anos – onde não haverá dor nem pranto, dizia –, a mulher pariu seu filho. A cena encheu-me de terror. O rebento era raquítico, assustadoramente magro e parecia ter apenas olhos. Achei que esses olhos me fitaram, mas não pareciam os olhos dele, mas os mesmos olhos do velho que estava sentado na cadeira. Fechei os olhos.
Ao contemplar de novo a cena, dei conta de que o recém-nascido estava morto, de braços abertos, por trás da cadeira do homem velho, que agora chorava. Também a mulher negra estava morta. Chorei pela terceira vez, copiosamente. Em soluços, olhava ao redor. Todos estavam cantando, eufóricos, enquanto o pregador conduzia a última prece.
Não vi mais nada no palco, a não ser o pregador e a banda de música. Encerrada a celebração, todos foram saindo do tempo feito por mãos humanas. Eu também saí.
Às vezes, lembro da mulher negra e do seu filho, e do velho de barbas brancas. Às vezes, parece que os vejo pelas ruas onde ando.
Alexandre Roque
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