Quando saí da Candelária, ao
meio daqueles milhares de gente, eu não a havia notado. Nem sabia muito bem por
que e o quê se protestava. Eu nunca apanho ônibus, moro no centro, perto do
trabalho, e raramente saio das imediações. Quando o faço, pego um táxi. Mas
havia uma gota d'água inexplicavelmente derramada na minha cabeça. Eu
protestava contra a mentira. Deveria ser crime hediondo mentir, com reserva
para ficcionistas, poetas, letristas e toda essa gente criativa, mentirosos do
bem e do belo. Havia uma flagrante dissonância nos cartazes, faixas e dizeres à
minha volta. Uma dissonância harmônica, contudo. Maldisse a falta de ideia de
escrever um cartaz de "abaixo a mentira", ou mesmo "criminalizem
a mentira". Segui a passeata gritando meu slogan inutilmente, decerto,
porque outras muitas reivindicações eram feitas por grupos de forma mais
contundente.
Entramos na Avenida Rio Branco, a grande reta, palco de muitos carnavais
e protestos. Ali se deu, em 1968, em plena ditadura militar, nos anos de
chumbo, uma passeata de cem mil pessoas. No ar daquele junho distante, o cheiro
da morte de Edson Luiz, o estudante do calabouço. Agora, as balas são de
borracha, pensei um pouco aliviado, ao menos por enquanto são diferentes do
chumbo da época do meu pai. Passávamos pela esquina da Rua da Alfândega quando
a avistei. Uma moça comum, vestida de camiseta com o logotipo da campanha do
combate ao câncer de mama, calça jeans e tênis. Cabelos cortados na altura do
início dos ombros. Ela dizia palavras de ordem e para isso cultivava duas rugas
na testa, que pareciam acompanhar o desenho do nariz. Marcavam-se covinhas em
suas bochechas. Achei-a magra. Mas no todo era bonita, embora longe dos
estereótipos da modelo ou da gostosa. Irradiava uma energia que eu sentia
naquela distância, a de um passo lateral, se muito. Pisávamos o asfalto. Por um
momento, eu me esqueci do motivo da minha participação naquilo tudo, porque só
pensava nela e, logo depois, era como se só ela existisse. Os milhares de
manifestantes se desvaneceram. Passamos pela esquina da Rua do Rosário e depois
a da Rua do Ouvidor, e eu surdo. Pensei que seria um péssimo ouvidor. Toda
atenção à moça das rugas e covinhas. Ao passarmos pela Rua São José, ali perto
da Praça Mario Lago, pensei no grande artista e me convenci de que ele estaria
conosco, se vivo fosse. Mas também pensei no amor e olhei para a moça, e lhe
segurei a mão. Ela me olhou assustada por um instante, mas logo sorriu com
sumiço das rugas e aumento das covinhas. E nossas mãos ficaram coladas por
alguma energia somente explicável na poesia. Chegamos à Cinelândia. Ocorreu um
não se sabe o quê. O movimento agora estático. Qual seria o próximo passo?
Cantavam-se músicas e gritavam-se palavras de ordem. Nossas mãos unidas. Nem
sei quanto tempo ficamos assim, de mãos dadas e olhares perdidos. Súbito o
estrondo. Outro. A fumaça. Apertei a mão da moça com mais vigor. Ela se virou e
nos beijamos. Na bruma, o beijo infindável. Sugávamos a ternura e chorávamos lágrimas
de gás.
Jairo Vianna Ramos
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