quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Pré-história




Murilo Mendes



Mamãe vestida de rendas

Tocava piano no caos.

Uma noite abriu as asas

Cansada de tanto som,

Equilibrou-se no azul,

De tonta não mais olhou

Para mim, para ninguém!

Cai no álbum de retratos.

 


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Sozinho na Multidão




Rodolfo Pamplona Filho


A pior solidão é

ficar sozinho na multidão,

esperando em pé

um pouco de atenção

de quem compartilha a fé

ou a promessa do coração.


Não sei se é trágico

ou simplesmente irônico,

mas é quase mágico,

diria icônico,

quando sua presença é reclamada,

mas, na verdade, ignorada...


Um dia, eu gritarei

e ouça quem quiser.

Direi tudo que sei

sobre a tristeza que vier:

não há dor maior ou lama

que ser ignorado por quem se ama.


Salvador, 06 de outubro de 2010.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Canção do Exílio

 



Murilo Mendes


Minha terra tem macieiras da Califórnia

onde cantam gaturamos de Veneza.

Os poetas da minha terra

são pretos que vivem em torres de ametista,

os sargentos do exército são monistas, cubistas,

os filósofos são polacos vendendo a prestações.

A gente não pode dormir

com os oradores e os pernilongos.

Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.

Eu morro sufocado

em terra estrangeira.

Nossas flores são mais bonitas

nossas frutas mais gostosas

mas custam cem mil réis a dúzia.

 

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade

e ouvir um sabiá com certidão de idade!



In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Nudez



Rodolfo Pamplona Filho


Sabe o que descobri?

Você é o único que

consegue me enxergar...

O amor verdadeiro remove as

membranas que fecham os olhos

e apenas você...

consegue me ver nua...

e que nada mais pode me quebrar...


E me viu nua...

sem tirar uma peça sequer de roupa...

E me viu nua...

sem expor parte alguma de meu corpo...

E me viu nua...

no dia em que olhou em meus olhos...

e viu além de qualquer casca...

E me viu nua...

no dia em que conheceu minha alma

e soube exatamente quem eu era...

e permiti tão íntima ligação

por não carecer de resistência...

por não precisar mais me esconder...

por acreditar em nós...


E eu descubro em você

o que pensei

somente existir em sonhos...

mas sonhos somente são possíveis

se estamos vivos...

sonhos somente existem

se há vida e desejo...

sonhos somente se realizam

na nudez da alma...


São Paulo, 07 de outubro de 2010.

domingo, 26 de novembro de 2023

4o. Motivo da rosa

 



Cecília Meireles



Não te aflijas com a pétala que voa:

também é ser, deixar de ser assim.


Rosas verá, só de cinzas franzida,

mortas, intactas pelo teu jardim.


Eu deixo aroma até nos meus espinhos

ao longe, o vento vai falando de mim.


E por perder-me é que vão me lembrando,

por desfolhar-me é que não tenho fim.

sábado, 25 de novembro de 2023

Medo dos Homens Justos

 




Rodolfo Pamplona Filho


O melhor mármore não faz

a mais bela estátua,

se for lapidado

por um escultor medíocre.


As melhores intenções

não se tornam boas obras,

se feitas sem provas,

mas só com convicções.


Quem ponderará

contra a truculência palpável

dos que se acham justos?


Quem nos salvará

do fascismo inevitável

dos homens bons?



12 de outubro de 2016, no voo para São Paulo.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

 



Cecília Meireles



No desequilíbrio dos mares,

as proas giram sozinhas...

Numa das naves que afundaram

é que certamente tu vinhas.


Eu te esperei todos os séculos

sem desespero e sem desgosto,

e morri de infinitas mortes

guardando sempre o mesmo rosto


Quando as ondas te carregaram

meu olhos, entre águas e areias,

cegaram como os das estátuas,

a tudo quanto existe alheias.


Minhas mãos pararam sobre o ar

e endureceram junto ao vento,

e perderam a cor que tinham

e a lembrança do movimento.


E o sorriso que eu te levava

desprendeu-se e caiu de mim:

e só talvez ele ainda viva

dentro destas águas sem fim.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Bênçãos e Maldições

 


 Rodolfo Pamplona Filho


Nem tudo permanece...

Na verdade, tudo muda

nem sempre para melhor!

Assim, o que é criado para libertar 

pode ser usado para escravizar.

Quando se esquece 

o sentido de cada ato,

todo importante ritual

apenas massifica 

o que devia ser individual...

Quando não se particulariza,

todos se tornam 

rostos sem nome 

e sem história,

invisibilizando 

em vez de simplesmente ver,

compactua-se

com a coadjuvância,

em vez de tornar protagonista...

Com isso, impessoaliza-se,

reiifica-se, coisifica-se,

mas nunca se envolve.

Sem saber, 

ver ou tocar,

o toque

não há como

não se degenerar...

pois até Bençãos 

podem se transformar

em Maldições


Salvador, 13 de maio de 2018.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Murmúrio

 



Cecília Meireles



Traze-me um pouco das sombras serenas

que as nuvens transportam por cima do dia!

Um pouco de sombra, apenas,

- vê que nem te peço alegria.



Traze-me um pouco da alvura dos luares

que a noite sustenta no teu coração!

A alvura, apenas, dos ares:

- vê que nem te peço ilusão.



Traze-me um pouco da tua lembrança,

aroma perdido, saudade da flor!

- Vê que nem te digo - esperança!

- Vê que nem sequer sonho - amor!

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Afinidade

 


 

Rodolfo Pamplona Filho


Afinidade é uma palavra que define

o sentimento de proximidade

entre quem nem sequer se conhece direito,

mas tem a sensação de que, no peito,

já acolheu quem recebeu,

abraçou quem se perdeu

e revelou seu verdadeiro eu.


 


Salvador, 22 de outubro de 2023, papeando com Chico Gomes

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Sou Negro

 



Solano Trindade



Sou negro

meus avós foram queimados

pelo sol da África

minh`alma recebeu o batismo dos tambores

atabaques, gongôs e agogôs


Contaram-me que meus avós

vieram de Loanda

como mercadoria de baixo preço

plantaram cana pro senhor de engenho novo

e fundaram o primeiro Maracatu

Depois meu avô brigou como um danado

nas terras de Zumbi

Era valente como quê

Na capoeira ou na faca

escreveu não leu

o pau comeu

Não foi um pai João

humilde e manso


Mesmo vovó

não foi de brincadeira

Na guerra dos Malês

ela se destacou

Na minh`alma ficou

o samba

o batuque

o bamboleio

e o desejo de libertação

domingo, 19 de novembro de 2023

Boas-Vindas




 Boas-Vindas


 de Rodolfo Pamplona Filho


 


Mi casa, Su Casa

Minha casa é sua casa

Este é um espaço

para sair do quadrado!

Deixe do lado de fora

tudo que é pesado

Levante a cabeça

Abra um sorriso

Esqueça o juízo

e seja feliz!


 Sente-se à mesa

Sirva-se de uma taça

Repita a sobremesa

Mostre a sua raça

Divida o prato com alguém


Pense adiante (e além!)

Brinde a vida com alegria

Não deixe para outro dia

Aqui é o lugar da felicidade

para ser quem se é de verdade

O momento é agora

e o caminho é para frente!

 


Salvador, hoje e sempre!

sábado, 18 de novembro de 2023

Retrato


 



Cecília Meireles


Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.



Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.



Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

— Em que espelho ficou perdida

a minha face?

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Julgando…




Rodolfo Pamplona Filho 


Quem julga quem julga

não sabe julgar

a solidão de quem reflete

sobre o que compromete

o fato do passado,

o reflexo no presente

e a potencialidade para o futuro.


Se não houver razão, morreria de inanição,

Se não houver poesia, enlouqueceria

Se não houver tensão, não haveria tesão

Se não houver paz, seria caro demais…


Conhecer a vida

Compreender as razões

Determinar destinos

é tarefa que exige responsabilidade,

mas decidir de verdade

importa na consciência

de nunca saber a essência

do que ocorreu na realidade.


 


Salvador, 22 de outubro de 2023, papeando com Chico Gomes.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Balada das dez bailarinas do cassino

 



Cecília Meireles



 


Dez bailarinas deslizam

por um chão de espelho.

Têm corpos egípcios com placas douradas,

pálpebras azuis e dedos vermelhos.

Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,

e dobram amarelos joelhos.



Andam as dez bailarinas

sem voz, em redor das mesas.

Há mãos sobre facas, dentes sobre flores

e com os charutos toldam as luzes acesas.

Entre a música e a dança escorre

uma sedosa escada de vileza.



As dez bailarinas avançam

como gafanhotos perdidos.

Avançam, recuam, na sala compacta,

empurrando olhares e arranhando o ruído.

Tão nuas se sentem que já vão cobertas

de imaginários, chorosos vestidos.



A dez bailarinas escondem

nos cílios verdes as pupilas.

Em seus quadris fosforescentes,

passa uma faixa de morte tranqüila.

Como quem leva para a terra um filho morto,

levam seu próprio corpo, que baila e cintila.



Os homens gordos olham com um tédio enorme

as dez bailarinas tão frias.

Pobres serpentes sem luxúria,

que são crianças, durante o dia.

Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,

embalsamados de melancolia.



Vão perpassando como dez múmias,

as bailarinas fatigadas.

Ramo de nardos inclinando flores

azuis, brancas, verdes, douradas.

Dez mães chorariam, se vissem

as bailarinas de mãos dadas.

 


(in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.)


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Primeiro Contato





Rodolfo Pamplona Filho


A primeira vez

O primeiro olhar

A primeira palavra

A primeira conversa

O primeiro encantamento

O primeiro dia

do resto de nossas vidas...




Gramado, 18 de outubro de 2012, descobrindo uma nova amizade.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados

 



Álvaro de Campos


 

Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados 

O esplendor do sentido nenhum da vida... 

Toquem num arraial a marcha fúnebre minha! 

Quero cessar sem conseqüências... 

Quero ir para a morte como para uma festa ao crepúsculo.


segunda-feira, 13 de novembro de 2023

domingo, 12 de novembro de 2023

Depus a Máscara

 



Álvaro de Campos

 


 

 

    Depus a máscara e vi-me ao espelho. — 

    Era a criança de há quantos anos. 

    Não tinha mudado nada... 

    É essa a vantagem de saber tirar a máscara. 

    É-se sempre a criança, 

    O passado que foi 

    A criança. 

    Depus a máscara, e tornei a pô-la. 

    Assim é melhor, 

    Assim sem a máscara. 

    E volto à personalidade como a um términus de linha.

sábado, 11 de novembro de 2023

Sonhos Mudam



 

Rodolfo Pamplona Filho


Sonhos Mudam

de verdade

Sonhos Mudam

com a idade

Sonhos Mudam

na realidade

Sonhos Mudam

para a eternidade 



Rhodes, 26 de setembro de 2012.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Demogorgon

 



Álvaro de Campos

 


 

  Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda. 

  Uma tristeza cheia de pavor esfria-me. 

  Pressinto um acontecimento do lado de lá das frontarias e dos movimentos. 

  Não, não, isso não! 

  Tudo menos saber o que é o Mistério! 

  Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas, 

  Não vos ergais nunca! 

  O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se! 


  Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber nada! 

  A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo, 

  Deve trazer uma loucura maior que os espaços 

  Entre as almas e entre as estrelas. 


  Não, não, a verdade não!  Deixai-me estas casas e esta gente; 

  Assim mesmo, sem mais nada, estas casas e esta gente... 

  Que bafo horrível e frio me toca em olhos fechados? 

  Não os quero abrir de viver! ó Verdade, esquece-te de mim!

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Sobre Sensações de Frustração

 


 

Rodolfo Pamplona Filho


É preciso valorizar

a tentativa,

pois o resultado

nem sempre depende de nós.


É preciso valorizar

a iniciativa,

pois nem todos conseguem

superar a letargia.


É preciso valorizar

o esforço,

pois o suor derramado

nunca voltará ao corpo.


É preciso valorizar

a boa vontade,

pois nem que tudo que se consegue

foi feito de coração.


É preciso valorizar

o cuidado,

pois simplesmente realizar uma tarefa

não é sinônimo de dedicação.


É preciso valorizar

o desprendimento,

pois ninguém é obrigado

a dar um pedaço de si.


Boston, 01 de julho de 2016.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Cruz na porta da tabacaria!

 



Álvaro de Campos


Cruz na porta da tabacaria!

Quem morreu? O próprio Alves? Dou

Ao diabo o bem-estar que trazia.

Desde ontem a cidade mudou.


Quem era? Ora, era quem eu via.

Todos os dias o via. Estou

Agora sem essa monotonia.

Desde ontem a cidade mudou.


Ele era o dono da tabacaria.

Um ponto de referência de quem sou

Eu passava ali de noite e de dia.

Desde ontem a cidade mudou.


Meu coração tem pouca alegria,

E isto diz que é morte aquilo onde estou.

Horror fechado da tabacaria!

Desde ontem a cidade mudou.


Mas ao menos a ele alguém o via,

Ele era fixo, eu, o que vou,

Se morrer, não falto, e ninguém diria.

Desde ontem a cidade mudou.


(14-10-1930)

 

terça-feira, 7 de novembro de 2023

É Preciso Viver Mais Leve



 

Rodolfo Pamplona Filho


Todo mundo não quer enganar, sim,

Nem todo táxi cobrará mais caro!

Há comidas que não têm gosto ruim

E, na verdade, é a maioria do prato.


E as crianças não ficarão doentes,

pelo menos não necessariamente,

se não comerem toda a comida,

ainda que não imediatamente!


Um sorriso não é uma coisa bem

tão difícil assim de esboçar,

mesmo quando não se tem

tanta prática assim a contar...


Caminhar não é idéia a desprezar,

ainda mais se desperta o apetite,

O planeta é imperfeito para morar,

mas não é assim tão triste...


Sei que parece impossível tentar,

mas consiga um dia sem reclamar

do tempo, da vida, das dores,

que só se sente porque há amores...


Pense que para não enjoar,

basta, por exemplo, variar,

pois não fazer o mesmo sempre

é o inicio de um caminho diferente.


Sei que não é assim para você...

são os outros que vêem equivocado,

mas faça um esforço para perceber

não é lógico todos estarem errados


quando simplesmente têm esperança

que você ache o prazer na dança

de curtir o prazer desta vida breve

pois é preciso viver mais leve...



Buenos Aires, 21 de junho de 2011


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Adiamento

 



Álvaro de Campos

 


 

   Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... 

   Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, 

   E assim será possível; mas hoje não... 

   Não, hoje nada; hoje não posso. 

   A persistência confusa da minha subjetividade objetiva, 

   O sono da minha vida real, intercalado, 

   O cansaço antecipado e infinito, 

   Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico... 

   Esta espécie de alma... 

   Só depois de amanhã... 

   Hoje quero preparar-me, 

   Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte... 

   Ele é que é decisivo. 

   Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... 

   Amanhã é o dia dos planos. 

   Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; 

   Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... 

   Tenho vontade de chorar, 

   Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... 

 

   Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. 

   Só depois de amanhã... 

   Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana. 

   Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... 

   Depois de amanhã serei outro, 

   A minha vida triunfar-se-á, 

   Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático 

   Serão convocadas por um edital... 

   Mas por um edital de amanhã... 

   Hoje quero dormir, redigirei amanhã... 

   Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância? 

   Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, 

   Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo... 

   Antes, não... 

   Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. 

   Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. 

   Só depois de amanhã... 

   Tenho sono como o frio de um cão vadio. 

   Tenho muito sono. 

   Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... 

   Sim, talvez só depois de amanhã... 

 

   O porvir... 

   Sim, o porvir...

domingo, 5 de novembro de 2023

Cheiro

 




Rodolfo Pamplona Filho



Seu cheiro em minha roupa

é a prova mais louca

de um amor real

mas, para muitos, imoral...


Guardo seu cheiro na memória

na esperança que o inesperado

possa mudar a nossa história

e nos dar a esperada vitória


....de um amor pleno,

que, sempre a contento,

cresce e se fortalece....


...de um sentimento sincero,

que, um dia, espero,

possa ser tão público quanto seu perfume.


Praia do Forte, 23 de janeiro de 2011.


sábado, 4 de novembro de 2023

Acaso

 



Álvaro de Campos

 

No acaso da rua o acaso da rapariga loira. 

Mas não, não é aquela. 

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro. 


Perco-me subitamente da visão imediata, 

Estou outra vez na outra cidade, na outra rua, 

E a outra rapariga passa. 


Que grande vantagem o recordar intransigentemente! 

Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga, 

E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta. 


Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso! 

Ao menos escrevem-se versos. 

Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar, 

Se calhar, ou até sem calhar, 

Maravilha das celebridades! 


Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos... 

Mas isto era a respeito de uma rapariga, 

De uma rapariga loira, 

Mas qual delas? 

Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade, 

Numa outra espécie de rua; 

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade 

Numa outra espécie de rua; 

Por que todas as recordações são a mesma recordação, 

Tudo que foi é a mesma morte, 

Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã? 


Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional. 

Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas? 

Pode ser... A rapariga loira? 

É a mesma afinal... 

Tudo é o mesmo afinal ... 


Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.


sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Escuridão

 





Há quem

tenha medo

da escuridão!

Eu, não!

A escuridão não me assusta,

pois você é meu farol

em toda bruma

que me encontro...

pois eu te amo...



nenhuma escuridao

vai minar

o meu amor por você,

pois, mesmo nela,

eu enxergo sua alma...

nem a escuridao que,

por vezes, maltrata

e assola nossos pensamentos

vai vencer o que sinto...

pois eu te amo muito...



Nenhuma escuridão

é forte o bastante

para sufocar

o grito da alma...

o clamor do amor...

a intensidade da canção

que vem do coração....

pois eu te amo para sempre....




Salvador, 08 de janeiro de 2011.


quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Acordar

 




Álvaro de Campos

 


 

 Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras, 

 Acordar da Rua do Ouro, 

 Acordar do Rocio, às portas dos cafés, 

 Acordar 

 E no meio de tudo a gare, que nunca dorme, 

 Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono. 

 

 Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar, 

 Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.  

 À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se  

 Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,  

 E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo. 

 

 Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne, 

 Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha, 

 Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom, 

 São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada, 

 Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes, 

 Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste, 

 Seja 

 

 A mulher que chora baixinho 

 Entre o ruído da multidão em vivas... 

 O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito, 

 Cheio de individualidade para quem repara... 

 O arcanjo isolado, escultura numa catedral, 

 Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã, 

 Tudo isto tende para o mesmo centro, 

 Busca encontrar-se e fundir-se 

 Na minha alma. 

 

 Eu adoro todas as coisas 

 E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. 

 Tenho pela vida um interesse ávido 

 Que busca compreendê-la sentindo-a muito. 

 Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, 

 Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, 

 Para aumentar com isso a minha personalidade. 

 

 Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio 

 E a minha ambição era trazer o universo ao colo 

 Como uma criança a quem a ama beija. 

 Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras, 

 Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo 

 Do que as que vi ou verei. 

 Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações. 

 A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos. 

 Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca. 

 

 Dá-me lírios, lírios 

 E rosas também. 

 Dá-me rosas, rosas, 

 E lírios também, 

 Crisântemos, dálias, 

 Violetas, e os girassóis 

 Acima de todas as flores... 

 

 Deita-me as mancheias, 

 Por cima da alma, 

 Dá-me rosas, rosas, 

 E lírios também... 

 

 Meu coração chora 

 Na sombra dos parques, 

 Não tem quem o console 

 Verdadeiramente, 

 Exceto a própria sombra dos parques 

 Entrando-me na alma, 

 Através do pranto. 

 Dá-me rosas, rosas, 

 E llrios também... 

 

 Minha dor é velha 

 Como um frasco de essência cheio de pó. 

 Minha dor é inútil 

 Como uma gaiola numa terra onde não há aves, 

 E minha dor é silenciosa e triste 

 Como a parte da praia onde o mar não chega. 

 Chego às janelas 

 Dos palác ios arruinados 

 E cismo de dentro para fora 

 Para me consolar do presente. 

 Dá-me rosas, rosas, 

 E lírios também... 

 

 Mas por mais rosas e lírios que me dês, 

 Eu nunca acharei que a vida é bastante. 

 Faltar-me-á sempre qualquer coisa, 

 Sobrar-me-á sempre de que desejar, 

 Como um palco deserto. 

 

 Por isso, não te importes com o que eu penso, 

 E muito embora o que eu te peça 

 Te pareça que não quer dizer nada, 

 Minha pobre criança tísica, 

 Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios, 

 Dá-me rosas, rosas, 

 E lírios também..

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Soneto da Sintonia Infalível



Rodolfo Pamplona Filho


Ainda que divididos pelo Atlântico

e por fusos horários incompatíveis,

o que um sente de um lado,

o outro automaticamente responde.


Se um levanta assustado,

encontrará o outro conectado,

como se a energia gerada

fosse automaticamente repassada.


É realmente impressionante,

como tudo surge em um instante,

permitindo a imediata compreensão


pois o que, para muitos, é acaso,

para mim, é o mais evidente traço

de uma sintonia infalível de paixão.


Pamplona/Espanha, 03 de outubro de 2012.