segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Adiamento

 



Álvaro de Campos

 


 

   Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... 

   Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, 

   E assim será possível; mas hoje não... 

   Não, hoje nada; hoje não posso. 

   A persistência confusa da minha subjetividade objetiva, 

   O sono da minha vida real, intercalado, 

   O cansaço antecipado e infinito, 

   Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico... 

   Esta espécie de alma... 

   Só depois de amanhã... 

   Hoje quero preparar-me, 

   Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte... 

   Ele é que é decisivo. 

   Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... 

   Amanhã é o dia dos planos. 

   Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; 

   Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... 

   Tenho vontade de chorar, 

   Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... 

 

   Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. 

   Só depois de amanhã... 

   Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana. 

   Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... 

   Depois de amanhã serei outro, 

   A minha vida triunfar-se-á, 

   Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático 

   Serão convocadas por um edital... 

   Mas por um edital de amanhã... 

   Hoje quero dormir, redigirei amanhã... 

   Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância? 

   Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, 

   Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo... 

   Antes, não... 

   Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. 

   Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. 

   Só depois de amanhã... 

   Tenho sono como o frio de um cão vadio. 

   Tenho muito sono. 

   Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... 

   Sim, talvez só depois de amanhã... 

 

   O porvir... 

   Sim, o porvir...

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