sábado, 4 de novembro de 2023

Acaso

 



Álvaro de Campos

 

No acaso da rua o acaso da rapariga loira. 

Mas não, não é aquela. 

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro. 


Perco-me subitamente da visão imediata, 

Estou outra vez na outra cidade, na outra rua, 

E a outra rapariga passa. 


Que grande vantagem o recordar intransigentemente! 

Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga, 

E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta. 


Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso! 

Ao menos escrevem-se versos. 

Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar, 

Se calhar, ou até sem calhar, 

Maravilha das celebridades! 


Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos... 

Mas isto era a respeito de uma rapariga, 

De uma rapariga loira, 

Mas qual delas? 

Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade, 

Numa outra espécie de rua; 

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade 

Numa outra espécie de rua; 

Por que todas as recordações são a mesma recordação, 

Tudo que foi é a mesma morte, 

Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã? 


Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional. 

Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas? 

Pode ser... A rapariga loira? 

É a mesma afinal... 

Tudo é o mesmo afinal ... 


Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.


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