quinta-feira, 7 de abril de 2011

Recado ao senhor 903


Recado ao senhor 903

Vizinho –
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me
mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua
própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou
desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o
senhor teria ainda ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso
noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é
impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o
meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003,
me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao
alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos;
apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído  e funcionamos fora dos horários civis; nós dois
apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar,
depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à
minha casa (perdão, ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa
repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua,
onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser
tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de
seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à
porta do outro e dissesse:  “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou.” E o
outro respondesse: “Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar
e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem  entre os amigos e amigas do vizinho
entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom
da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

Rubem Braga
Janeiro de 1953


__._,_.___

9 comentários:

  1. Fantástico isso, não conhecia!

    Muito obrigada por compartilhar ...

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  2. Mais um excelente texto professor
    ____

    Preposição de suma visão ...(!)

    Linda, clara, Luz, Aljava Minha ...(!)

    Mais pura que o Sol ..., ... Mais Bela que o Firmamento ...

    (... E se te quero ..., E, como te Quero ...[!])

    Palavra, que é Apenas Uma(!) Sentido que me Firma o Pensamento ...

    Língua que se expande ...

    Sintagma que se desprende ...

    Caso que desaparece ...

    ... Poesia não mais Liada ...(!)

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  3. Faltou um itálico, também, em "desaparece"

    Abraço

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  4. Perdão! Não faltou itálico não!

    Grande Abraço

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  5. Muito bom o texto, também não o conhecia...
    Cada passo, cada movimento, cada atitude delineada em números, relações que deveriam ser humanas consideradas apenas como norte, excelente critica!

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  6. Querida Leila
    É engracado que, por mais que o tempo passe, sempre ha a possibilidade de se descobrir um texto novo de um autor antigo...
    Eu tambem adorei a critica e, por isso, resolvi postar aqui...
    Beijocas saudosas,
    RPF

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