terça-feira, 11 de outubro de 2011

No livro grosso dos preconceitos...

No livro grosso dos preconceitos...

É simplesmente emocionante a decisão de um desembargador do Tribunal de Justiça e São Paulo. Um garoto pobre, que perdeu o pai em um acidente de trânsito pediu ajuda da Justiça Gratuita, mas um juiz negou. A negativa por si só já comove, principalmente pela falta de humanidade. Só que, a decisão de um desembargador é ainda muito mais emocionante.

Decisão do desembargador José Luiz Palma Bisson, do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferida num Recurso de Agravo de Instrumento ajuizado contra despacho de um Magistrado da cidade de Marília (SP), que negou os benefícios da Justiça Gratuita a um menor, filho de um marceneiro que morreu depois de ser atropelado por uma motocicleta. O menor ajuizou uma ação de indenização contra o causador do acidente pedindo pensão de um salário mínimo mais danos morais decorrentes do falecimento do pai.

Por não ter condições financeiras para pagar custas do processo o menor pediu a gratuidade prevista na Lei 1060/50. O Juiz, no entanto, negou-lhe o direito dizendo não ter apresentado prova de pobreza e, também, por estar representado no processo por "advogado particular".

A decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a partir do voto do desembargador Palma Bisson é daquelas que merecem ser comentadas, guardadas e relidas diariamente por todos os que militam no Judiciário.
Transcrevo a íntegra do voto:

“É o relatório. Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.

Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e trabalhador - legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em paubrasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido. É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.

Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.

O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante.
E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.

Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.

Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d'água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.

Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos...
Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.

Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.

É como marceneiro que voto.

JOSÉ LUIZ PALMA BISSON - Relator Sorteado”

8 comentários:

  1. Pois é Dr., esse fato se deu bem pertinho de onde moro. Porém, eu que sou forte para tantas coisas, quase não consegui terminar de ler a decisão sem que as lágrimas molhassem meu rosto. Vou repassar aos colegas. Obrigado pela partilha.

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  2. Foi com lágrimas nos olhos que terminei de ler...
    É bom saber que ainda existem magistrados que não reduziram o direito às normas, que ainda vêem no direito a positivação da dignidade, da igualdade inerente a todos.

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  3. ”É como marceneiro que voto” foi o final perfeito para uma decisão que oxalá não fosse tão rara...Linda, amigo!
    Beijos,
    N.

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  4. Queridos Nilton, Daiane e N.

    Fico muito feliz em saber que a idéia de compartilhar este voto no blog agradou a vcs.
    Sabe que, por vezes, fico na dúvida se valia a pena parar de postar somente textos meus aqui, mas, quando vejo um feedback positivo desse, renovo a vontade de servir... e de compartilhar coisas que tocam o coração...
    Beijos para quem é de beijo, abraços para quem é de abraço,

    RPF

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  5. Meu caro Pamplona, as palavras são como a andorinha, voam procurando o calor e voltam ao mesmo lugar onde passaram o último verão. Assim, quando posta algo que toca a fundo a sensibilidade das pessoas, suas palavras voltam em forma de comentários demonstrando que vc não está sozinho em sua peregrinação virtual. Uma andorinha só não faz verão. A sentença que vc publicou eu já a conhecia, mas vc acabou dando-lhe uma dimensão que ela merecia, neste espaço sideral. Se as palavras voam, as suas, sejam próprias ou compartilhadas, encontram sempre um ninho para esquentá-las. Parabens. Abs. Genesio.

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  6. Meu caro Genésio
    Poxa, eu não diria melhor...
    Vc respira poesia, amigo...
    Abraços,
    RPF

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  7. esse desembargador não é marceneiro, mas é pau...
    pau na juíza de primeiro grau!
    que não sabe a diferença entre justiça gratuita
    e assistência judiciária.
    boa postagem!

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