domingo, 13 de novembro de 2011

Jeropiga com tremoços


Jeropiga com tremoços
                                                                                               Jairo Vianna Ramos

O Bar Recanto do Alentejo era quase centenário. Conservava as portas e janelas de madeira maciça, pintadas e repintadas de azul marinho, em contraste com as paredes brancas de sucessivas caiações. No salão, havia mesas com tampos redondos de mármore sobre a base de tripé, como quase não se via mais. As cadeiras antes eram de palhinha. Foram reformadas. Não havia quem fizesse a restauração da forma correta e com o material certo, por isso ficaram integralmente de madeira. O piso gasto, de cerâmica quadriculada, era mantido limpo e encerado e os azulejos brancos subiam até meia parede, com uma barra decorada, também de azul escuro, na junção da parte azulejada com a caiada.
                         Érico observava o ambiente como se o visse pela primeira vez. Assim fazia quase todos os dias, no tempo gasto com os passos incertos completados com a bengala, até chegar à mesa sagrada, a do canto. Na verdade, eram duas mesas ajuntadas. Faziam alegoria de um número oito, mas, na ótica de Heleno, seria um violão sem cabo. Ao redor, as sete cadeiras. As pequenas toalhas xadrez, colocadas em forma de losango, pareciam nunca terem sido trocadas, todavia estavam limpas, e os seis copos virados de borco cumprimentavam-no. Somente diante da sua cadeira o copo estava levantado. Sentou-se com dificuldade. Os joelhos davam-lhe a impressão de estarem cheios de grãos de areia. Estava com quase noventa.
                         Toninho se apressou em servir o velho freguês. Colocou sobre a mesa a dose de jeropiga e um pires com os tremoços.
                         — Bênção, padrinho!
                         — Deus te abençoe!
                         Érico fez um sinal de brinde aos copos de cerveja emborcados, como se fossem pessoas, e esboçou um sorriso.
                         Toninho não era afilhado de igreja, mas Érico e os companheiros da confraria eram chamados de padrinhos por ele, desde ainda rapazote. Retribuíam dizendo-o afilhado e se tornou hábito. Muitas vezes, como bons padrinhos, socorreram o atual dono do bar, dando-lhe conselhos valiosos ou arrefecendo eventuais arroubos da juventude. O moço se casara com uma bela mulata que morara no morro vizinho. Tinham um menino chamado Manoel Antônio. Esse chamava Érico de avô, abrindo-lhe o coração, apertado de saudade dos netos, depois que o filho se fora para o exterior levando a família.
                         Após a morte da esposa, Érico ficara sozinho. Alentava-se no calor da confraria e nas caraminholas interiores. O mundo imaginário e suas lentíssimas andanças pelas ruas do bairro, quase um périplo, por assim dizer, desafogavam-lhe a angústia dos dias parados.
                         Por mais que tentasse, Érico não lembrava como a turma se formara. Sabia que, em mil novecentos e sessenta, já haviam se apossado da mesa, de segundas a quintas. Isso porque houve grande discussão sobre a propriedade da mudança da capital para Brasília, que quase descambou em briga, e assim seria se não interviesse Heleno. Lembrava-se também de que o seu América havia conquistado o campeonato carioca, em jogo dramático, empatado com o Fluminense com um gol de beque, na época um absurdo. Estava quase certo de que fora em mil novecentos e cinquenta e cinco, porque se lembrava da gozação de Heleno, flamenguista convicto, pela derrota do time de predileção de Érico, na final do campeonato carioca, com quatro gols de Dida. Olhou o relógio para se certificar da pontualidade. Sete horas. Chegara no horário.
                         Pelo vão da porta, viu o movimento dos carros. Fazia calor. Antigamente passavam bondes por ali. Manoel, o pai de Toninho, era o dono do bar. A freguesia se compunha de gente distinta. O bairro era distinto. Um dos melhores, ou o melhor da zona norte. Fora nobre, mediano e agora era esquecido, embora guardasse provas da importância do passado.
                         Certo dia, Caio chegou engravatado, como de costume. Vinha do fórum, ou do escritório, ou de alguma delegacia, porque era advogado criminalista. Trazia no rosto um sorriso maroto. Tomou o seu lugar – de frente para a porta, pois dizia ter acumulado alguns inimigos e preferia morrer de frente para o assassino – e tirou da pasta de couro um calhamaço de papéis. Havia feito cópias em um mimeógrafo a álcool, conhecido por cachacinha. As letras azuladas denunciavam a impressão. Entregou um exemplar a cada um. Era o Estatuto da Confraria dos Trinta.
                         As reações dos leitores foram desencontradas no início. Houve quem reclamasse da burocracia ridícula, mas, ao alcançar cláusulas estapafúrdias, escritas com refinado humor, a turma se pôs a rir.
                         Alguns dos itens, em contrapartida, eram emocionantes. Tratavam de nuances da amizade e do companheirismo. Lágrimas contidas. Havia uma cláusula que anistiava Luizinho das dívidas junto ao bar. A confraria se responsabilizaria por elas e, daquele momento em diante, o confrade estaria livre de despesas, ganhara a condição de sócio remido. O beneficiário protestou. Queria a inclusão de uma salvaguarda, afinal poderia melhorar de vida. O impasse foi resolvido com o aceno de uma possibilidade futura de eventual reforma no diploma, se fosse o caso. O estatuto foi aprovado por aclamação.
                         Érico bebeu a jeropiga e fez sinal para Toninho. Disse baixinho, como se precisasse:
                         — Uma de casco escuro!
                         Toninho meneou a cabeça. A marca não fabricava cervejas de cascos claros há muito tempo. Érico percebeu os cabelos grisalhos do afilhado e sentiu o mundo lhe cair sobre as costas. Fitou os copos virados de boca para baixo. Lembrou-se das discussões entre os amigos por causa de política, futebol, concurso de misses, livros, carros e outros assuntos. Ouvia-lhes as vozes como se estivessem presentes. Todos estavam na casa dos trinta, embora alguns muito próximos dos quarenta. Daí vinha o nome da confraria. Um desavisado poderia supor serem trinta os membros, mas eram sete e, como dizia Hermes, as inscrições estavam definitivamente encerradas.  Érico, Luizinho, Solano, Heleno, Hermes, Caio e Péricles seriam os únicos confrades para todo o sempre.
                         Érico passou uma das mãos nos ralos cabelos brancos, piscou os olhos azuis, coçou o rosto rosado, salpicado pelas manchas senis, e se lembrou das discussões sobre futebol. Se o nome do Vasco fosse ao menos citado, Manoel, lá do balcão, disparava em arrastado sotaque lusitano:
                         — Casaca! Casaca! A turma é da fuzarca!
                         Alguns anos mais tarde, Manoel voltou para Portugal. Da família só ficou Toninho. Ao se despedir, disse que levava a tristeza de não ter feito do filho um vascaíno. O moço, desde menino, preferia o Fluminense. Érico pôs a culpa em Péricles, torcedor daquele time.
                          — Deve ter ameaçado o moço.
                         Péricles era detetive de polícia. Como gostava de trabalhar nos finais de semana e era solteiro, trocava os plantões com os colegas casados, para que esses pudessem ficar com a família, e assim, também, garantia a sua presença na confraria. Diziam ser exímio atirador e bom de briga. Mas era fino no trato, vestia-se com distinção e conversava bem. Tinha uma boa figura e sempre se questionou por que não se casara ou não namorava. Ele dizia que, nos finais de semana em serviço, arrumava uma mulherada danada e de graça. Defendia a incompatibilidade da profissão com o casamento.
                        — O tira fica de coração mole — ele dizia sem pestanejar.
                         Solano era dono de uma banca de jornal. Orgulhava-se ao expor a crônica semanal de Érico à vista dos fregueses, como se fosse de autoria própria. Ufanava-se daquela amizade. Estava sempre a par das notícias e trocava informações com o jornalista e radialista, pois Érico também tinha um programa matutino em uma rádio do mesmo grupo do jornal em que escrevia. Conversas sobre política e notícias não publicadas murcharam nos tempos mais duros da ditadura. Foram perseguidos: um pelo que escrevia e o outro pelas publicações passadas às escondidas aos fregueses simpatizantes da esquerda. Algumas vezes, Péricles acionou as suas amizades na polícia política para atenuar a situação dos amigos. Afora os sustos, nada passou de "prestações de esclarecimentos".
                         Heleno trazia em si a própria África. Na pele, na ginga e no ritmo. Compositor de sambas bonitos e mestre na mecânica de automóveis era procurado por gente de todas as classes e todos os carros. Com a substituição dos veículos importados pelos da indústria nacional, adaptou sua oficina e manteve a clientela. Um especialista no envenenamento de motores. Havia quem comprasse um carro novo e levasse para ele modificar. Curiosamente, não sabia dirigir. Somente manobrava os carros dentro do galpão. Apaziguador oficial da confraria, rusgas ele resolvia com a voz mansa e um samba tocado na caixinha de fósforos.
                         Sete horas da noite. Sete copos com jeropiga. Sete pires com tremoços. Nada de Luizinho chegar. O estatuto previa multa, em caso de não ser aceita a justificativa.  Caio, com voz empostada, como se estivesse no salão do júri, defendeu o atrasado, alegando que, se era remido, nada pagaria e não havia como se lhe impor uma multa calculada sobre o valor da conta, porque vinte por cento de zero é zero. Outros foram contra e a discussão se tornaria bulha, não fosse a intervenção de Heleno.  Decidiram beber a jeropiga sem Luizinho, já que muitos estavam sedentos e as cervejas viriam a seguir. O brinde com a jeropiga era como uma oração obrigatória.
                         Luizinho capengava da perna direita, porque havia sido colhido por um trem quando menino. Quase tiveram de amputar. Não foi preciso, mas os movimentos não se deram mais. A perna dura arrastada por Luizinho. Nunca conseguira emprego e vivia de vender bilhetes de loteria. Como Péricles, era solteiro e nunca arrumara namorada, mas não por falta de querer, como no caso do amigo. Morava em um barracão no fundo da casa do irmão mais velho, esse casado e pai de dois meninos adolescentes.
                         As garrafas de casco escuro chegaram à mesa simultaneamente com a notícia trazida pelo sobrinho. Luizinho havia morrido atropelado. Um carro em alta velocidade.  Tentara fugir arrastando a perna dura. Em vão. No dia seguinte ao do falecimento de Luizinho, criou-se a primeira emenda ao estatuto da Confraria dos Trinta. O morto não perderia o lugar na mesa. Quem viesse a morrer também não. O copo ficaria emborcado e a cadeira vazia, como se o falecido permanecesse no grupo. Solano, embora espanhol e dito comunista, tinha um naco umbandista e garantiu a presença do espírito do falecido nas reuniões dos confrades.
                         Hermes quase não falava. Bebia economicamente, como se desfrutasse cada gota da bebida, fosse cerveja ou jeropiga. Era o único a tirar as cascas dos tremoços antes de comê-los. Gostava de cozinhar e às vezes a turma se reunia em sua casa. Os casados levavam as famílias. Fazia uma invejável feijoada. Solano dizia ser ele tão preciso cozinheiro quanto farmacêutico. Dava à culinária o mesmo cuidado dispensado às fórmulas magistrais. A sua farmácia passava por um momento difícil, com as drogarias a se espalharem pelo bairro, após tomarem o mercado em outros pontos mais atraentes da cidade. Os médicos quase não receitavam mais fórmulas específicas.  Reduzia-se o espaço para farmacêuticos do seu naipe, capazes de fazer pequenas suturas e curativos cicatrizantes nas mais complexas feridas. Hermes curava corações partidos, como um dia Érico escrevera em uma crônica, depois de ver o efeito de uma conversa entre o farmacêutico e Solano, quando esse cismou de se separar da mulher.  Escreveu sobre certa fórmula do amor, depois achou piegas, mas o jornal saíra e não houve como voltar atrás.
                         Hermes deixou a confraria em vida. Mudou-se para o interior levando o seu negócio, porque, se ficasse, quebraria. Isso gerou, após uma semana de tristeza e um samba-canção meloso composto por Heleno, no qual rimava felicidade com amizade, nova questão de ordem estatutária a ser dirimida, como disse Caio. Talvez tenha sido essa a maior discussão entre eles, pois alguém sugeriu fosse eleito substituto. Copos e copos foram virados até a conclusão. Incluiu-se no estatuto uma norma pela qual o copo de Hermes ficaria na mesa, virado para cima, e o seu lugar preservado. Afinal, não se ausentara por querer, mas por contingência da vida. No mesmo aditamento, foi alterado, também com votos vencidos e protestos da minoria, o nome da confraria para Confraria da Jeropiga com Tremoços. Érico fora um dos opoentes à nova denominação e nunca mencionou a turma assim, usou sempre o nome antigo, "Dos Trinta".
                        — Isso é nome de bloco carnavalesco — dizia, a gesticular com os braços para cima e com os pés, como se sambasse.
                         Nem se passaram dois anos da mudança de Hermes e veio a notícia de sua morte. Um enfarto fulminante. Dormira e não acordara. Estavam todos na casa dos cinquenta, na ocasião. Érico, o decano, como dizia Caio, com quase sessenta. Fizeram uma oração diante do copo de Hermes, que foi virado, cerimoniosamente, de borco.
                         A confraria seguiu a tradição, agora com cinco componentes. Toninho chegou a pensar em pedir uma das mesas, para que o bar abrigasse mais fregueses, mas, ao iniciar o assunto, bastou o olhar de Péricles para que se calasse. Não havia, nem no Recanto do Alentejo nem nas redondezas, quem fosse capaz de puxar briga com o detetive, porque, apesar da idade, sobreviviam incólumes a mão firme e a valentia. Criar confusão com a turma da confraria era a última coisa que passava pela mente do dono do estabelecimento, já que era ingratidão pensar coisa assim. Nos altos e baixos do negócio, muitas vezes eles o sustentaram com a precisão no pagamento, isso sem contar alguns empréstimos salvadores nos tempos de inflação galopante e juros extorsivos. Vivos ou mortos, presentes ou ausentes, eram padrinhos, quase sócios e amigos, pensou o dono do Recanto, antes de dizer com as mãos postas e um sorriso nos lábios:
                          — Não está aqui quem falou. Esqueçam, por favor...
                         Logo mudou de assunto para o futebol, para agradar Péricles.
                         Érico aportou do passado e viu o copo esquentando sobre a mesa. Já não bebia como antes. Sorveu o restinho da jeropiga no copo menor, para puxar o sabor, e a seguir tomou a cerveja. Deu-lhe inesperada vontade de beber mais jeropiga. Fez sinal para Toninho. Não era o costume, mas costumes são para serem quebrados, pensou. O perplexo proprietário do bar trouxe a jeropiga e perguntou se queria mais tremoços. Diante do sinal negativo, apressou-se para trazer as sardinhas.
                         Érico olhou o lugar de Caio, o patrono dos pobres, como escrevera um dia em uma de suas crônicas. O seu pensamento se fez ao largo e ele navegou mais uma vez para o passado. Talvez o amigo advogado tivesse sido o grande aglutinador do grupo ao redigir o estatuto, cujo texto, inicialmente feito como brincadeira, tornou-se forte lei entre os amigos. Ninguém ousava desrespeitar as regras. As sardinhas inteiras no prato o fizeram lembrar que o advogado tinha o rosto parecido com a cara de uma delas. Nariz adunco, e olhos que pareciam saltar das órbitas. Durante certo tempo, Solano o apelidara assim. Como ele não ligava e chamava a si próprio pelo apelido de doutor Sardinha, a alcunha não pegou. Logo o assunto se desfez. Caio era capaz de usar terno completo, com colete e tudo, em pleno verão de quarenta graus, sem um pingo de suor na fronte. Dizia ser o termômetro da frieza necessária à sua profissão. E o pavor de ficar de costas para a rua era a única fraqueza demonstrada. Por ironia, morreu assassinado pelas costas. O viúvo de uma vítima de homicídio, cujo agressor Caio absolvera diante do tribunal do júri, usando e abusando de maledicências sobre a vítima, desferiu-lhe um tiro na nuca e outro nas costas, enquanto ele esperava para apanhar um táxi defronte do seu escritório.  O assassino não durou muito tempo. Logo foi encontrado, encurralado e morto pela polícia, após uma troca de tiros, como disseram os jornais. Desconfiava-se que Péricles tivesse agido pessoalmente no encalço, cerco e morte do homicida, mas sempre negava, se alguém perguntasse. Érico, com o poder de observação de cronista, tinha certeza da participação do confrade policial, que, embora já estivesse aposentado, continuava no ambiente da polícia e fazia investigações particulares com a ajuda de colegas da ativa. Mas era uma fé intuitiva. Nada dito ou percebido, apenas sentido.
                         Além das homenagens da emborcação do copo feita pelos amigos, com participação de alguns fregueses sabedores do falecimento do advogado, Solano mandou fazer em uma gráfica uma versão luxuosa do estatuto, para ficar eternizado o talento do amigo. A edição de um só exemplar foi depositada nas mãos de Toninho e posta em uma gaveta acessível a quem quisesse consultar.
                         A confraria, resumida a quatro membros, sobreviveu.
                         — A indissolubilidade é uma cláusula pétrea! — discursava um empolado Caio, no auge dos arremedos etílicos, quando ainda vivia.
                         Se a partida dos amigos "para as mesas do além", como dizia a letra de um samba de autoria de Heleno, entristecia os amigos viventes, também trazia força e inspiração para que continuassem unidos. Os mortos eram lembrados sempre e às vezes se tinha a impressão de estarem ainda vivos. Mas o falecimento de Caio causou em Péricles um efeito devastador.
                         Apanhado pela depressão, o detetive continuou a frequentar o bar, mas era como se fosse outro. Nem mesmo as vitórias do seu time e os abraços que Toninho lhe dava eram capazes de tirá-lo da postura triste. Nada lhe interessava. Heleno achava que ele se sentia culpado por ter matado o assassino de Caio, embora ninguém soubesse do acontecimento verdadeiro. Solano ralhava com o mecânico. Érico se preocupava com o emagrecimento galopante do amigo investigador. Afinal, era sozinho, sem quem lhe cuidasse.
                         Uma noite, Péricles não apareceu no bar. Heleno, o mais novo na ocasião, com sessenta e quatro anos, prontificou-se a ir à casa do investigador, localizada a duas quadras. Solano e Érico aguardaram ansiosos. O amigo voltou com a notícia da internação. Um vizinho o socorrera.
                         Péricles não voltou ao bar. Saiu do hospital morto. Fora vítima de um câncer só descoberto em estado terminal. Nada disse aos amigos, para lhes poupar a amargura.
                         Solano, Heleno e Érico fizeram a cerimônia da emborcação entre lágrimas. A velhice lhes amolecera os corações. Fizeram um pacto de não morrerem tão cedo.  Preservariam a memória dos finados a cada dia de encontro da Confraria dos Trinta, ou da Jeropiga com Tremoços. Não se importavam mais com nomes ou detalhes.
                         O pacto só não foi cumprido porque Heleno, aos setenta e seis anos, resolveu fazer algo inusitado. Com o crescimento da oficina, ele já não fazia o esforço de antes. Havia quem fizesse o serviço pesado. Apenas orientava e testava os motores de ouvido. Mesmo depois de se entender com as injeções eletrônicas, ele nunca havia dirigido para valer um veículo. Mas estava diante de uma obra prima. Um carro antigo com a lataria recuperada. Um motor aspirado, quase feito à mão. O ronco grosso e profundo. Não resistiu, tomou o volante, ganhou a rua e acelerou. A potência absurda impulsionou o veículo para velocidade estonteante e o experiente mecânico, inábil motorista, perdeu o controle do carro, que avançou de encontro a um poste. Isso a menos de trezentos metros da oficina. Morte instantânea, disseram os peritos.
                         Os remanescentes, Solano e Érico, fizeram a emborcação do copo de Heleno. Toninho se lembrou do "Samba das mesas do além" e cantou um trecho. Cinco copos emborcados. Jeropiga com tremoços. Cerveja casco escuro. Tristeza com saudade. Amizade e sinceridade. Abraçaram-se os confrades sobreviventes. Quem seria o próximo?  Quando? Até quando?
                         Érico e Solano, jornalista e jornaleiro, atravessaram a casa dos setenta e entraram na dos oitenta assíduos às reuniões daquela mesa mágica e cheia de histórias de camaradagem.
                         Aos oitenta e cinco, Solano morreu, vítima de um derrame. Um alquebrado Érico brindou a viagem do amigo para a mesa do além. Emborcação. Seis copos virados.  Sentiu vontade de viajar para a outra mesa, a do além. Lá decerto se encontraria com os amigos. Ririam, chorariam e se consolariam. Talvez voltasse à juventude.  Invejou os que partiram. Fez o brinde com o copo de dose de jeropiga e lhe deu a impressão de ver a aura de Solano saindo pela porta afora, para depois subir. Chegou a balbuciar para o amigo levá-lo consigo. Sentou-se à mesa e chorou como nunca, o peito apertado por ter ficado vivo.
                         De volta ao presente, Érico pediu outra dose de jeropiga. Era a terceira. Olhos lacrimejantes e rosto afogueado. Toninho se recusou a servi-lo, lembrando-lhe a idade e os cuidados com a saúde. O velho esbravejou. Reclamou do afilhado metido a dar ordens, mas obedeceu. Virou seu próprio copo de borco, levantou-se com dificuldade, apoiou-se na bengala e com passos miúdos atravessou o bar. Finalmente chegou à calçada, onde deu início à lenta caminhada.

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