sábado, 30 de junho de 2012

Dez microcontos sobre o nosso cotidiano

Direto do Blog do Sakamoto, no UOL

http://blogdosakamoto.uol.com.br/

Dez microcontos sobre o nosso cotidiano

57 Comentários »
Tenho postado no Facebook pequenos contos e crônicas sobre o nosso dia-a-dia. Já havia trazido para o blog dois pacotes deles, relacionados à capital paulista. Trago mais dez histórias urbanas, lembrando que a vida é feita pela somatória dos causos de cada um de nós e não por grandes narrativas de heróis, como bem diria Brecht.
Para ver as crônicas e contos já publicados, clique aqui e aqui. E agradeço imensamente quem inspirou a produção até aqui.
***
Pouco antes da aurora, instalava o violoncelo entre caixas de frutas e verduras douradas pelas lâmpadas do entorno do Mercado Municipal. E, com a cumplicidade dos feirantes, a curiosidade dos transeuntes e a anuência dos mendigos, tocava a Suite no. 1 em Sol Maior de Bach. Tudo parava. Então, sumia, dando passagem à manhã. Ninguém sabia quem era ou o porquê. Temiam que aquilo perdesse sentido com uma explicação.
***
Ninguém sabe como o incêndio começou. Quando o colorido da favela deu lugar às brasas escuras, ecos de lamentos se fizeram ouvir. Menos de Mauro, que pensava coisas do horizonte. Fabrícia chegou do serviço e ele abraçou seu pranto. “Queimou besteira só. Minha casa é você, sua casa sou eu.” Os jornalistas guardaram seus bloquinhos em um nó da garganta. E, naquele bairro, números viraram pessoas pela primeira vez.
***
Nasceram no circo. Ele, palhaço. Ela, gerente. Foram felizes juntos até que a lona ficou pequena para a moça. Durante uma temporada em Botucatu, lhe prometeram o mundo. Poucos minutos antes do espetáculo, Tião encontrou um bilhete. Dizem que ele nunca foi tão engraçado quanto naquela noite. O elefante, que conhecia a verdade, permaneceu em silêncio ao ver as piruetas do palhaço. E, com pena dele, chorou.
***
José lhe fez uma canção. Depois, foi tentar a sorte na Cidade Maravilhosa. Prometeu que seria sempre a única. Ano passou e o silêncio tomou lugar no seu peito. Enfrentou 24 horas de distância e, depois de muito procurar, ouviu aquela melodia. Sorrindo, correu. Mas, ao entrar na praça, o viu em serenata para outra galega. Não se fez notar, nem chorou. Hoje, ainda acredita no amor. Mas jogou fora a vitrola e o violão.
***
Quatro pilhas. Com isso, Taís tinha um bebê. Ela e as amigas brincavam no parquinho quando encontraram Maria e sua dona, uma boneca de pano sem um braço, caolha e encardida. Taís contou que a sua falava, andava e fazia xixi. Já a de Maria foi rainha e médica, descobriu tesouros e pisou na lua. Todas a acharam louca e se foram. Então, um homem de muitos outonos a abraçou e disse: “Às vezes, ter tudo é não ter nada”.
***
Era tímido. Por isso, um tal de Cadu fofocou que ele se apaixonara pelo único gay assumido da repartição. Em silêncio, ouviu muito. Na festa de Natal, um coro pediu um beijo dos dois. Sentiu vergonha, mas também um sentimento bom há tempos enterrado. Agarrou o rapaz bonito, dando um beijo que calou a balada. Os dois farão uma cerimônia civil em agosto. Queriam Cadu como padrinho, mas ele abaixa a cabeça quando os vê.
***
‎”Tem bolo de chocolate?” As cozinheiras, que apimentavam a vida dos outros, perceberam que ele pedia sempre para a mesma pessoa. Ela ficava vermelha, feito morango de torta, mas alimentava o rapaz tímido com sorrisos. Certo dia, o chocolate acabou. Antes que se fosse, a garçonete tomou coragem e lhe deu um bombom. Embrulhado nele, um número de telefone. Após marcar um encontro, ele suspirou. Não gostava de doce.
***
Alguns jogam. Outros são bonitos. E há os engraçados. Ele impressionava contando histórias. Então a conheceu. Queria que ela despertasse com cravos vermelhos, mas não era de posses. Pensou em redigir as próprias flores, mas não era iluminado para a poesia. Resolveu escrever-lhe um conto por dia, fazendo rir e chorar. Não se sabe se suas palavras tocaram o coração dela. Mas ao narrar os sentimentos, entendeu o mundo.
***
Não conseguia ficar acordado. E, por sofrer bullying, fez a faculdade em silêncio. Entre um jovem rico e ele, quem perderia a bolsa? Quando lhe puseram um cobertor velho, sob o riso do professor, engoliu o nó e agradeceu. No final, ao pegar o diploma, procurou os pais, mas só viu dois tiquinhos deixados de herança. Teve pena. Não dele, mas do mundo. E, com os irmãos pelas mãos, foi longe. Sem nunca olhar para trás.
***
No dia em que foram morar juntos, escolheram a parede mais branca e desenharam seus sentimentos. O tempo, contudo, é um solvente imperdoável. Ele, em desespero, cobriu tudo com demãos de raiva, rancor e dor numa única madrugada. Anos se passaram e, por capricho, a parede começou a descascar. Ligou para ela e juntos removeram as camadas ruins. Choraram. Riram. Hoje, os desenhos estão emoldurados na casa de cada um.

Nenhum comentário:

Postar um comentário