terça-feira, 12 de junho de 2012

DIA DOS NAMORADOS

DIA DOS NAMORADOS
Por MMendes
            Naquele escurinho premeditado, um casalzinho namorava no interior do veículo. Tentativa de um beijo aqui, de um abraço ali:        
- Cuidado com meu cabelo Jorge Antônio. Você está me desarrumando toda!
- Jorge Antônio, amanhã comemoraremos um ano de namoro. Qual vai ser meu presente?
- Já sei. Eu quero uma pulseira de brilhantes de pedras selenitas...não, não, acho melhor um par de brincos de brilhantes marcianos ou seria melhor um belo vestido modelável supercondutor de energia da e-tecidos, para carregar meus “gadgets”? Ah! Jorge Antônio, o que é que eu vou ganhar?
- Amanhã vou acordar cedinho e vou às compras. Já me vejo glamurosa pelas calçadas deslizantes do shopping. Depois vou para o SPA...uma sessão de massagens relaxantes, manicura a laser, determatologia rejuvenescedora, nanolipoaspiração instantânea e, por fim, cabeleireiro com tintura de fios fotográficos. De noite vamos a um bom restante comemorar nosso primeiro ano de namoro. Minhas amigas vão remoer de inveja.
- Ah! Jorge Antônio, não me mate de curiosidade. Qual vai ser o meu presente?
Enquanto Manoela falava sem parar, Jorge Antônio cruzava os braços olhando para o vazio. 
            - Jorge Antônio! Você nem prestou atenção ao que eu disse. Deu um beijinho no namorado, abriu a porta, saiu do automóvel de flutuação antigravitacional e subiu a escada rolante de sua casa.
            No dia seguinte, logo pela manhã o videofone toca. Manoela atende e fica atônita com a notícia:
- O Jorge Antônio envolveu-se em um acidente? O corpo está no crematório? Pegar os restos viventes? Já estou indo.
 Manoela é avisada de um gravíssimo acidente envolvendo seu namorado. Ele teve o corpo mutilado de forma irrecuperável, ou quase. Depois de extraído o código do DNA, seu corpo foi cremado. Diferentemente da cremação de nossa época, em que os parentes recebem uma urna com as cinzas do morto, a moça assistiu a cremação e saiu de lá com o repositório cerebral de seu namorado. O cérebro de Jorge Antônio boiava dentro do repositório, olhos atentos. Pareciam olhos de siri observando mudo a tudo o que se passava.  
            No tempo de Jorge Antônio a medicina avançou ao ponto de que, mesmo sem um corpo seja possível uma perfeita preservação da mente, até que se produza de um novo corpo. Técnicas inovadoras de reprodução clonada de crescimento acelerado permitem que em poucos meses seja produzido um novo corpo, idêntico ao anterior que receberá a mente. Enquanto isso, a mente fica armazenada no cérebro acondicionado num repositório cerebral oxigenado, esperando o novo corpo para ser implantada. Para que a mente não caia em estado depressivo, os cientistas extraem os olhos e ouvidos do paciente juntamente com o cérebro, conectados por meio do nervo ótico e auditivo respectivamente. Não fosse essa técnica revolucionária, a mente ficaria vagando numa espécie de limbo, em completa escuridão e solidão, desprovida de todos os sentidos da percepção.
Em 2100 a técnica da preservação da mente será coisa muito comum, mas para os viventes de nossa época atual ver uma coisa dessas é muito bizarro. Poderíamos dizer que a mente imersa no repositório, assemelha-se a um “grande molusco” com antenas, um tipo de caracol sem concha, vivendo dentro de um aquário.
Naquela manhã fatídica, Manoela não pode ir às compras, nem ao SPA ou ao cabeleireiro e, ainda por cima, ganhou o cérebro de Jorge Antônio como presente de um ano de namoro. Mesmo assim, a moça prossegue no cumprimento dos itens planejados. Decide levar o namorado, ou o que sobrou dele, para um jantar romântico.
Depois de horas folheando os vestidos no guarda-roupa tecnológico, escolheu um vestido de grife, um sapato de salto da Louis Future, improvisou o cabelo na impressora pessoal de penteados, maquiou-se, empetecou-se com jóias, tomou o repositório cerebral de Jorge Antônio nos braços e saiu imponente a caminho do restaurante.
Chegando ao local, foi recepcionada por um mestre de cerimônia cibernético. Manoela logo foi reconhecida pelo robô, que a identificou pelas ondas positrônicas emitidas pelo “chip” implantado em seu braço direito.
- Seja bem vinda senhoria Manoela. Disse o robô com seu sotaque cibernético. Enfim, o futuro resolverá o problema do atendimento ao cliente. Evoluiremos para descobrir que seremos mais bem atendidos por máquinas que por pessoas. O bom atendimento compensará, de certa forma, o desemprego. Programados para serem amáveis com os clientes, os robôs terão como característica marcante a presteza, a simpatia e a gentileza.
Manoela nem se deu ao trabalho de agradecer ao serviçal cibernético. Afinal, era humana. Ela o considerava um ser inferior, um mero objeto, uma simples máquina. Com certeza ele seria descartado, substituído por outro mais avançado daí alguns anos.
- Tá vendo o que você foi arrumar Jorge Antônio. É incapaz de puxar a cadeira para mim. Deixei de ir ao SPA, ao cabeleireiro e de me produzir por sua culpa. Meu cabelo está péssimo, nem tive tempo de me arrumar direito. Agora fica ai me olhando com esses olhinhos de piedade.
Nesse momento aparece uma das frívolas amigas de Manoela:
- Oi querida, como tem passado?
- Olá Jorge Antônio, fiquei sabendo do acidente. Mas, não se preocupe, em pouco tempo terá um corpinho novo em folha.
- Querida você não sabe da última... e blá, blá, blá, blá, blá, blá. Você viu o cabelo da Matilde, que horror. E mais blá, blá, blá, blá, blá, blá.
Jorge Antônio ficou ali, prisioneiro ouvindo aquele monte de futilidade. Chegou a pensar que seria melhor ter morrido no acidente ou pelo menos perdido as orelhas para não escutar tanta banalidade. Ele queria curtir a noite, falar de amor e fazer planos para o futuro. Procurava uma mulher sincera, amável e amiga, embora em primeiro lugar estivesse a qualidade de perfeita amante. Procurava expressar isso com os olhos e até abanava as orelhas, mas Manoela estava perdida num mundo de luxuria e consumo, não poderia compreendê-lo.
-Tchau querida, nos vemos depois. “Bye bye” Jorge Antônio, até a próxima encarnação.
Enquanto a amiga de Manoela passava, os olhos de Jorge Antônio acompanharam aquele fabuloso rebolado, cadenciado por grossas pernas, sustentado num par de saltos.
- Jorge Antônio, seu cretino. Não tem vergonha? Ficar paquerando minha amiga na minha cara? Tenho vontade de te esganar.
Furiosa, Manoela estrangula a mangueira do oxigenador do repositório cerebral, asfixiando Jorge Antônio. Mudo, com os olhos esbugalhados, pediria socorro se pudesse. A falta de oxigenação provocou um aumento de gases do repositório fazendo subir a pressão. Um jato aquoso do líquido de conservação do cérebro, esguichou lançado pelo orifício da válvula de segurança, atingindo Manoela que ficou completamente encharcada.
- Seu mal educado. Para mim basta. Eu te odeio seu...seu...seu cérebro machista.
Jogando o guardanapo na mesa, Manoela saiu do restaurante pisando duro, para nunca mais voltar. Estava tudo acabado. É mesmo muito difícil ver o que se passa na alma das pessoas. Jorge Antônio buscava um grande amor. Ficou ali sobre a mesa, mudo, solitário, pensativo. Quase morreu para aprender a lição. Desprovido de seu corpo, prometeu que escolheria sua nova namorada pelas qualidades internas, não só pelos atributos do físico feminino.
Um pouco antes de o restaurante fechar as portas, os funcionários começaram a arrumar mesas e cadeiras. Sem premeditar, um garçom colocou o repositório de Jorge Antônio em frente a outro repositório cerebral, também abandonado numa outra mesa. Na verdade o trabalhador apenas queria organizar o lugar antes de fechar,  mas foi como se o destino guiasse seus braços.
Os empregados saíram apagando as luzes fechando as portas. Na penumbra os dois desconhecidos guardados em seus repositórios ficaram um de frente para o outro. Admiravam-se como almas gêmeas. Passaram a noite entreolhando-se sem nenhuma palavra. Pareciam trocar pensamentos, um mirando o outro, como se quisessem entrar um no outro pela pupila dos olhos. Se alguém pudesse vê-los teria a nítida impressão de verem dois seres apaixonados, uma paixão platônica.
No dia seguinte, o dono do restaurante mandou devolver cada repositório à sua respectiva família. Passado alguns meses, Jorge Antônio ganhou seu novo corpo clonado. Restabeleceu-se por completo e retomou sua vida. Mas, o olhar da misteriosa companhia ficou guardado em sua memória. Não sabia quem ela era ou onde morava. Ele caminhava pelas ruas da cidade procurando aquele olhar nos olhos das pessoas que cruzavam seu caminho, na esperança de um dia encontrar sua cara metade.

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