sábado, 16 de junho de 2012

CELEBRAÇÃO

CELEBRAÇÃO

Alexandre Roque

Era um templo feito por mãos humanas. Quando entrei, a cerimônia já havia começado. Sentei-me ao lado de um cidadão que acariciava o cristal líquido de um celular e parecia estar alheio ao que acontecia ao seu redor.
No palco, uma banda tocava músicas religiosas que falavam de um Deus de amor, de pecados confessados, humilhação e exaltação, choro e alegria. Alguns músicos cantavam de olhos fechados; outros de olhos abertos, mas com uma expressão contrita. Às vezes, esboçavam um riso de extrema felicidade, levantando as mãos para os céus, para logo em seguida cerrarem o cenho num gesto de profunda dor, acompanhando o tema que era executado.
As melodias eram bem atuais, predominando o pop-rock. As paredes do tempo feito por mãos humanas também eram modernas. Nada que lembrasse as antigas catedrais medievais. Cadeiras de plástico, chão de cerâmica, paredes pintadas de branco, quase não havia decoração. O visual asséptico do ambiente parecia forjado para lembrar que Deus não estava ali.
Não sei se pela terceira ou quarta música, achei ver algo diferente no palco. Havia um velho enorme, de uns cinco metros de altura, sentado numa cadeira. Estava sonolento e bocejava. Um terror invadiu-me e fiquei paralisado por alguns segundos. Pensei em sair correndo, mas olhei em volta e ninguém parecia notar o velho homem. Continuavam cantando, e meu vizinho seguia acariciando o celular com seus dedos. Uma senhora cantava alto a música lenta e emocionante. Estava de olhos fechados, braços elevados e chorava.
Olhei para o palco e a imagem do homem estava mais nítida. Ele agora, com ar grave, contemplava a multidão. Seu rosto era meigo, sereno. Tinha cabelos brancos e barbas longas. Vestia-se com um manto azul e estava descalço. Fitei os seus olhos e comecei a chorar. O homem parecia incomodado com a cantoria e o barulho dos instrumentos. Remexia-se na cadeira, franzia a testa e bocejava. Começava a cochilar e acordava. Remexia-se novamente, tentava encontrar uma posição confortável.
A música cessou e o celebrante começo o seu discurso, justificando a arrecadação de dinheiro que se seguiu. Terminada a execução de mais uma música, seguiu-se a homilia.
Enquanto o pregador falava, ora calmo como um lago, ora nervoso como um tsunami, vi a imagem de uma mulher negra por trás da cadeira onde estava sentado o homem velho. A mulher aparentava vinte e poucos anos e gritava dores de parto. Olhei em volta e ninguém parecia notar a mulher.
O pregador falava de um reino futuro, um reino de mil anos que se seguirá a sete anos de tribulação que a Terra sofrerá num futuro breve. Não será um reino fictício nem celestial, mas um reino terreno, como o Reino Unido ou a Espanha. A coroa pertencerá a Jesus Cristo, aquele mesmo que andou pela Palestina há dois mil anos. Sim, ele logo voltará – dizia o pregador –, não uma, mas duas vezes. A primeira, secretamente, para arrebatar seus seguidores. A segunda, visivelmente, para implantar esse reino de mil anos. Uma espécie de monarquia teocrática, onde o rei Jesus Cristo dará as ordens, diretamente do seu trono em Jerusalém, auxiliado pelos seus apóstolos. Os seus demais seguidores também terão participação ativa nesse reino, como secretários, governadores e diplomatas.
Enquanto a pregação se desenvolvia, deixando a plateia em êxtase, a mulher negra, aos prantos, seguia em trabalho de parto. Suas feições, agora mais nítidas, revelavam sofrimento e tristeza profunda. Seu olhar era doce e triste, muito triste, como eu jamais vira. Pela segunda vez eu chorei. Observei que a pele da mulher era coberta por chagas e sua magreza era extrema. O homem velho de barbas longas, sentado em sua cadeira, no palco do templo feito por mãos humanas, observava a plateia e a mulher negra. Ele aparentava mais desconforto e tentei decifrar sua expressão. Pareceu-me demonstrar indignação com a apatia do público.
No seu derradeiro grito, já quase no final da homilia, enquanto o pregador descrevia em detalhes as maravilhas do reino de mil anos – onde não haverá dor nem pranto, dizia –, a mulher pariu seu filho. A cena encheu-me de terror. O rebento era raquítico, assustadoramente magro e parecia ter apenas olhos. Achei que esses olhos me fitaram, mas não pareciam os olhos dele, mas os mesmos olhos do velho que estava sentado na cadeira. Fechei os olhos.
Ao contemplar de novo a cena, dei conta de que o recém-nascido estava morto, de braços abertos, por trás da cadeira do homem velho, que agora chorava. Também a mulher negra estava morta. Chorei pela terceira vez, copiosamente. Em soluços, olhava ao redor. Todos estavam cantando, eufóricos, enquanto o pregador conduzia a última prece.
Não vi mais nada no palco, a não ser o pregador e a banda de música. Encerrada a celebração, todos foram saindo do tempo feito por mãos humanas. Eu também saí.
Às vezes, lembro da mulher negra e do seu filho, e do velho de barbas brancas. Às vezes, parece que os vejo pelas ruas onde ando.



Alexandre Roque
------------------------------------------

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O silêncio é palavra

O silêncio é palavra
                                          Malu Calado



O silêncio é palavra
A angústia é um buraco na alma
Às vezes a sensação da entrega
Diz mais que a espera da letra
Portanto, acalme seu lamento
E beije o rosto de quem te espera

A solidão é constante
A fragilidade, a carência
Mas aprende-se com a vida
E bons mestres
Que pode-se viver só
Se te lançam um feitiço
Preciso de um feitiço
Para aprender a viver só

Um romance pode ser um inferno
Mas a falta dele
É a morte em vida
Rasgando o peito
Então vem uma mensagem
Quiçá um beijo
E tudo se acalma novamente.


quinta-feira, 14 de junho de 2012

Escrita

Nasceu com o dom da escrita. Havia nela uma inspiração fora do comum. Era como se fosse uma romancista da era moderna. Relacionamento tipicamente atual, mas um amor antigo, meio démodé, porém encantador.

Luíse M. de Santana <luise-ms@hotmail.com>

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Pergunta Engraçadinha

Pergunta Engraçadinha
Beatriz A.M.
Cinema ou motel?
Oh, dúvida cruel!

"Os Filhos de João"
ou você no meu colchão?

Romance no escurinho
ou nudez, pele e beijinho?

Mas o que posso fazer,
se eu quero tudo com você...?
Mas o que posso fazer,
se tudo que eu quero é você?

terça-feira, 12 de junho de 2012

DIA DOS NAMORADOS

DIA DOS NAMORADOS
Por MMendes
            Naquele escurinho premeditado, um casalzinho namorava no interior do veículo. Tentativa de um beijo aqui, de um abraço ali:        
- Cuidado com meu cabelo Jorge Antônio. Você está me desarrumando toda!
- Jorge Antônio, amanhã comemoraremos um ano de namoro. Qual vai ser meu presente?
- Já sei. Eu quero uma pulseira de brilhantes de pedras selenitas...não, não, acho melhor um par de brincos de brilhantes marcianos ou seria melhor um belo vestido modelável supercondutor de energia da e-tecidos, para carregar meus “gadgets”? Ah! Jorge Antônio, o que é que eu vou ganhar?
- Amanhã vou acordar cedinho e vou às compras. Já me vejo glamurosa pelas calçadas deslizantes do shopping. Depois vou para o SPA...uma sessão de massagens relaxantes, manicura a laser, determatologia rejuvenescedora, nanolipoaspiração instantânea e, por fim, cabeleireiro com tintura de fios fotográficos. De noite vamos a um bom restante comemorar nosso primeiro ano de namoro. Minhas amigas vão remoer de inveja.
- Ah! Jorge Antônio, não me mate de curiosidade. Qual vai ser o meu presente?
Enquanto Manoela falava sem parar, Jorge Antônio cruzava os braços olhando para o vazio. 
            - Jorge Antônio! Você nem prestou atenção ao que eu disse. Deu um beijinho no namorado, abriu a porta, saiu do automóvel de flutuação antigravitacional e subiu a escada rolante de sua casa.
            No dia seguinte, logo pela manhã o videofone toca. Manoela atende e fica atônita com a notícia:
- O Jorge Antônio envolveu-se em um acidente? O corpo está no crematório? Pegar os restos viventes? Já estou indo.
 Manoela é avisada de um gravíssimo acidente envolvendo seu namorado. Ele teve o corpo mutilado de forma irrecuperável, ou quase. Depois de extraído o código do DNA, seu corpo foi cremado. Diferentemente da cremação de nossa época, em que os parentes recebem uma urna com as cinzas do morto, a moça assistiu a cremação e saiu de lá com o repositório cerebral de seu namorado. O cérebro de Jorge Antônio boiava dentro do repositório, olhos atentos. Pareciam olhos de siri observando mudo a tudo o que se passava.  
            No tempo de Jorge Antônio a medicina avançou ao ponto de que, mesmo sem um corpo seja possível uma perfeita preservação da mente, até que se produza de um novo corpo. Técnicas inovadoras de reprodução clonada de crescimento acelerado permitem que em poucos meses seja produzido um novo corpo, idêntico ao anterior que receberá a mente. Enquanto isso, a mente fica armazenada no cérebro acondicionado num repositório cerebral oxigenado, esperando o novo corpo para ser implantada. Para que a mente não caia em estado depressivo, os cientistas extraem os olhos e ouvidos do paciente juntamente com o cérebro, conectados por meio do nervo ótico e auditivo respectivamente. Não fosse essa técnica revolucionária, a mente ficaria vagando numa espécie de limbo, em completa escuridão e solidão, desprovida de todos os sentidos da percepção.
Em 2100 a técnica da preservação da mente será coisa muito comum, mas para os viventes de nossa época atual ver uma coisa dessas é muito bizarro. Poderíamos dizer que a mente imersa no repositório, assemelha-se a um “grande molusco” com antenas, um tipo de caracol sem concha, vivendo dentro de um aquário.
Naquela manhã fatídica, Manoela não pode ir às compras, nem ao SPA ou ao cabeleireiro e, ainda por cima, ganhou o cérebro de Jorge Antônio como presente de um ano de namoro. Mesmo assim, a moça prossegue no cumprimento dos itens planejados. Decide levar o namorado, ou o que sobrou dele, para um jantar romântico.
Depois de horas folheando os vestidos no guarda-roupa tecnológico, escolheu um vestido de grife, um sapato de salto da Louis Future, improvisou o cabelo na impressora pessoal de penteados, maquiou-se, empetecou-se com jóias, tomou o repositório cerebral de Jorge Antônio nos braços e saiu imponente a caminho do restaurante.
Chegando ao local, foi recepcionada por um mestre de cerimônia cibernético. Manoela logo foi reconhecida pelo robô, que a identificou pelas ondas positrônicas emitidas pelo “chip” implantado em seu braço direito.
- Seja bem vinda senhoria Manoela. Disse o robô com seu sotaque cibernético. Enfim, o futuro resolverá o problema do atendimento ao cliente. Evoluiremos para descobrir que seremos mais bem atendidos por máquinas que por pessoas. O bom atendimento compensará, de certa forma, o desemprego. Programados para serem amáveis com os clientes, os robôs terão como característica marcante a presteza, a simpatia e a gentileza.
Manoela nem se deu ao trabalho de agradecer ao serviçal cibernético. Afinal, era humana. Ela o considerava um ser inferior, um mero objeto, uma simples máquina. Com certeza ele seria descartado, substituído por outro mais avançado daí alguns anos.
- Tá vendo o que você foi arrumar Jorge Antônio. É incapaz de puxar a cadeira para mim. Deixei de ir ao SPA, ao cabeleireiro e de me produzir por sua culpa. Meu cabelo está péssimo, nem tive tempo de me arrumar direito. Agora fica ai me olhando com esses olhinhos de piedade.
Nesse momento aparece uma das frívolas amigas de Manoela:
- Oi querida, como tem passado?
- Olá Jorge Antônio, fiquei sabendo do acidente. Mas, não se preocupe, em pouco tempo terá um corpinho novo em folha.
- Querida você não sabe da última... e blá, blá, blá, blá, blá, blá. Você viu o cabelo da Matilde, que horror. E mais blá, blá, blá, blá, blá, blá.
Jorge Antônio ficou ali, prisioneiro ouvindo aquele monte de futilidade. Chegou a pensar que seria melhor ter morrido no acidente ou pelo menos perdido as orelhas para não escutar tanta banalidade. Ele queria curtir a noite, falar de amor e fazer planos para o futuro. Procurava uma mulher sincera, amável e amiga, embora em primeiro lugar estivesse a qualidade de perfeita amante. Procurava expressar isso com os olhos e até abanava as orelhas, mas Manoela estava perdida num mundo de luxuria e consumo, não poderia compreendê-lo.
-Tchau querida, nos vemos depois. “Bye bye” Jorge Antônio, até a próxima encarnação.
Enquanto a amiga de Manoela passava, os olhos de Jorge Antônio acompanharam aquele fabuloso rebolado, cadenciado por grossas pernas, sustentado num par de saltos.
- Jorge Antônio, seu cretino. Não tem vergonha? Ficar paquerando minha amiga na minha cara? Tenho vontade de te esganar.
Furiosa, Manoela estrangula a mangueira do oxigenador do repositório cerebral, asfixiando Jorge Antônio. Mudo, com os olhos esbugalhados, pediria socorro se pudesse. A falta de oxigenação provocou um aumento de gases do repositório fazendo subir a pressão. Um jato aquoso do líquido de conservação do cérebro, esguichou lançado pelo orifício da válvula de segurança, atingindo Manoela que ficou completamente encharcada.
- Seu mal educado. Para mim basta. Eu te odeio seu...seu...seu cérebro machista.
Jogando o guardanapo na mesa, Manoela saiu do restaurante pisando duro, para nunca mais voltar. Estava tudo acabado. É mesmo muito difícil ver o que se passa na alma das pessoas. Jorge Antônio buscava um grande amor. Ficou ali sobre a mesa, mudo, solitário, pensativo. Quase morreu para aprender a lição. Desprovido de seu corpo, prometeu que escolheria sua nova namorada pelas qualidades internas, não só pelos atributos do físico feminino.
Um pouco antes de o restaurante fechar as portas, os funcionários começaram a arrumar mesas e cadeiras. Sem premeditar, um garçom colocou o repositório de Jorge Antônio em frente a outro repositório cerebral, também abandonado numa outra mesa. Na verdade o trabalhador apenas queria organizar o lugar antes de fechar,  mas foi como se o destino guiasse seus braços.
Os empregados saíram apagando as luzes fechando as portas. Na penumbra os dois desconhecidos guardados em seus repositórios ficaram um de frente para o outro. Admiravam-se como almas gêmeas. Passaram a noite entreolhando-se sem nenhuma palavra. Pareciam trocar pensamentos, um mirando o outro, como se quisessem entrar um no outro pela pupila dos olhos. Se alguém pudesse vê-los teria a nítida impressão de verem dois seres apaixonados, uma paixão platônica.
No dia seguinte, o dono do restaurante mandou devolver cada repositório à sua respectiva família. Passado alguns meses, Jorge Antônio ganhou seu novo corpo clonado. Restabeleceu-se por completo e retomou sua vida. Mas, o olhar da misteriosa companhia ficou guardado em sua memória. Não sabia quem ela era ou onde morava. Ele caminhava pelas ruas da cidade procurando aquele olhar nos olhos das pessoas que cruzavam seu caminho, na esperança de um dia encontrar sua cara metade.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

A IGREJA DO DIABO

A IGREJA DO DIABO

Machado de Assis

CAPÍTULO I

DE UMA IDÉIA MIRÍFICA

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

II
ENTRE DEUS E O DIABO

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
- Que me queres tu? perguntou este.
- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
- Explica-te.
- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,
- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.
- Vai
- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...
- Velho retórico! murmurou o Senhor.
- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.
- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
- Já vos disse que não.
- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?
- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
- Negas esta morte?
- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.


Ill
A BOA NOVA AOS HOMENS

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.


IV
FRANJAS E FRANJAS

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:
- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

domingo, 10 de junho de 2012

Consoada


Consoada

Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Manuel Bandeira