Tentava me lembrar do motivo pelo qual eu estava ali. À minha volta, a planície a se perder de vista, furtando do sol raios escorregadores nas flores de capim, para pintar o chão ora de lilás, ora de dourado, ora de cor não sabida, tamanha a profusão. Lá e cá, alguma árvore se erguia escoteira e, se eram poucas, dispersas e longínquas, ausentes eram os humanos, ou vestígios deles, posto que, ao que parecia, somente a minha sombra dava sinal de algum, ou seja, eu mesmo.
Eu girava o corpo, aguçava a visão e nada. De onde eu teria vindo? Por que estava naquele lugar amplo e deserto de gente? Parecia que o mundo abrira ali uma lacuna, um mar de terra. No céu, nada. Sol e azul. Nem nuvem.
A minha língua colada aos dentes, preguiçosa de se fazer soltar. A sede de quem chega à sede do inferno. Eu arrastava os pés, com o esforço dos grilhões.
O tempo passou, passou e eu vi alguma coisa a divergir da paisagem sonolenta. Plantada no meio do nada estava a cruz. De longe, parecia ser pequena, uma cruzinha de cemitério. Talvez alguém tivesse morrido por ali e outro passante lhe houvesse feito a sepultura, plantando a cruz sem lápide. Mas era um sinal dos humanos, de civilização, e isso me animou. Mudei o rumo, se é que tinha algum. Firmei o olhar na pequena e longínqua cruz e caminhei naquela direção.
A ânsia da curiosidade me fazia querer chegar logo ao fúnebre sinal. Quem sabe lá perto houvesse algum indício capaz de iluminar o meu caminho e me tirar da desolação. A conclusão não poderia ser mais lógica, porque, se alguém morreu e outro enterrou, ao menos duas pessoas passaram por lá e, por consequência, alguma saída existia. O caminho da salvação.
Apertei o passo, embora as pernas cansadas, que davam a impressão de acorrentadas, não respondessem corretamente à vontade. Quase me arrastava e o mato rasteiro se enredava nos meus sapatos, dificultando o que já era árduo. Mesmo assim, trôpego, segui na direção da cruz. Caminhei, caminhei, caminhei... Não sei se foram horas, minutos ou mesmo dias, mas eu me aproximava da cruz e, conforme mais me achegava, ela ficava maior, muito maior do que mera cruz de cova imaginada, porque parecia mesmo de verdade, daquelas dos suplícios, das crucificações. E, forçando bem os olhos, enrugando a testa com força, percebi que algo estava pregado a ela. Um corpo? A ideia me fez tremer e a minha boca seca e rachada se encheu de saliva refrescante. Um inesperado bálsamo. Nem a água da mais pura fonte teria o sabor do líquido que se apresentou para matar a minha sede. Saciado assim, apertei o passo com renovada energia.
Passados alguns minutos de caminhada, agora firme, pude divisar com certeza: havia um corpo crucificado! Corri pelo campo com desabalada fúria e pude ver se tratar de um homem. Ao chegar ao pé da cruz, com o coração batendo desenfreado e a visão quase embaçada pelo suor, constatei que ele vivia. Não era um rapaz, mas também não era um homem maduro. Quase jovem, digamos. Cabeleira de cantor de rock, mas com estranho acessório em volta da testa, talvez um lenço ou uma tira. A altura da cruz era incrível e, apesar de todo o nervosismo, tentei imaginar como fora fixada, se por perto não havia pedra, elevação, árvore ou o que servisse de suporte. Súbito a cabeça do homem se moveu para o meu lado e eu vi o seu peito arfar. Gritei. Ele disse coisas em uma língua desconhecida por mim. Tentei lhe fazer gestos, em estúpida tentativa de me comunicar, pois ele não poderia retribuir. Não estava amarrado, mas preso por enormes cravos, daqueles usados em ferrovias para fixar dormentes, traspassados em cada uma das mãos e nos pés sobrepostos. Em pânico, gritei inutilmente por socorro. Tentei arrancar a cruz do chão, mas era firme. Não havia como eu chegar ao homem, que continuava a dizer coisas ininteligíveis. Empurrei a firmeza da cruz com as forças que possuía e ela não se moveu um só milímetro. Atirei-me contra ela com o ombro e de nada serviu, a não ser para que eu sentisse forte dor. O sol inclemente. Poderia ao menos chover, para aliviar o que o meu desafortunado companheiro devia sentir, pensei. Revistei o céu em todas as direções. Não havia sinal de nuvem, só o azul impecável e o vento nenhum. No chão, apenas o capim, nem um pedaço de pau com o qual eu pudesse fazer uma alavanca, a fim de tentar emborcar o objeto de tortura e morte e, talvez, tirar o homem da terrível situação.
Forçado pelo cansaço e pela impotência, ajoelhei-me ao pé da cruz, postei as mãos para sustentar o queixo e poder lançar o olhar mais alto, na direção do homem. Ele trajava calça de sarja e uma camisa esfarrapada, toda a roupa manchada de sangue. Tentei calcular a altura do madeiro vertical e concluí que, entre o solo e o homem, havia por volta de uns trinta metros. Estranha cruz, comprida embaixo e curta na parte superior. Quem quer que tenha feito aquilo ao pobre agonizante pensou na improvável hipótese de aparecer alguém naquele lugar deserto. E eu ali de joelhos, sem qualquer possibilidade de ajudar o necessitado. Rouco de gritar por socorro e sem condições de dizer algum conforto, pois o idioma que o homem falava era outro, nada podia fazer a não ser assistir à sua triste morte.
Repentinamente, fui invadido por sensação de força descomunal. Levantei-me, fui ao encontro da cruz e iniciei a escalada. A madeira escorregadia. Sem soltar os braços, livrei-me dos sapatos, mantendo as pernas cruzadas e esfregando os pés um no outro. Com isso, melhorou a minha condição e aos poucos ganhei altura. Aproximava-me do crucificado, embora não soubesse ao certo o que faria quando pudesse alcançá-lo. Do alto, olhei ao redor e confirmei que, como pensava, nada havia, a não ser a campina sem fim. Era como se fosse um mar de capim. Ao longe, muito ao longe, uma árvore ou outra. Uma gota de sangue do homem pingou em meu rosto. Os seus pés estavam quase ao meu alcance. Animei-me. A cruel e forte cruz não oscilava nem com os nossos pesos somados.
Finalmente, pude tocar os pés do pobre homem. Um calor estranho. Não sabia mais o que fazer. Escalei cruz e pessoa. Dois homens abraçados nas alturas. Ele me disse alguma coisa na língua estrangeira. Eu retruquei, a lhe perguntar sobre o que deveria fazer, por ser a minha única preocupação no momento. Pensei que, se eu arrancasse os cravos, cairíamos ambos do alto do colosso e de nada valeria tanta luta. Se eu lhe soltasse um dos braços, não só cairíamos, como ele teria rasgados os pés e a outra mão. Assim ficamos: cara a cara, sangue a sangue, sorte a sorte.
Imaginava-me abraçado com força no corpo e no madeiro, mas percebi ser isso impossível, porquanto a circunferência dos meus braços não seria tanta. Estranhamente, eu não caía. Prendia-me no abraço ao crucificado. Era como se eu tivesse perdido o peso ou a força da gravidade se anulasse. Um sentimento confortante, superior à felicidade. Assim ficaria para sempre. Unia-me ao crucificado pelo amor ao próximo. Estaria com ele para o que viesse. Juntos, irmanados, solidários...
E do céu veio o facho de luz azulada...
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