F. Carpinejar
Cora, a cachorrinha de casa, ficava assustada na virada do ano. Ela se escondia debaixo da mesa, da cama, das cortinas. Uivava para as janelas. Seus gemidos lembravam molas de antigos colchões. Dentes rangendo de insônia. Não se aquietava até que os rojões serenassem em fumaça.
Na troca de 2011 para 2012, ela estranhamente dormiu e não acordou com nenhum fogo de artifício. Suspirava no sofá. Uma colher de sopa perdida na almofada.
Aquilo me intrigou. O animalzinho traduzia tranquilidade de coma: anestesiada, desaparecida em si. Respirava fundo, avessa aos tormentos dos fachos.
Logo o animal que fugia dos trovões e das descargas elétricas nos morros.
A família se preocupou com a súbita quietude e fotografou seus movimentos nos dias seguintes. Quando ela caminhava de costas, invocávamos seu nome e ela não recuava. Batíamos palmas e ela sequer mexia o pescoço.
Reprisei que Cora não atendia nossa voz como antes, não obedecia pedidos para sentar ou deitar, não vinha na cozinha quando gritávamos "hora da comida", não abanava o rabo com a trilha sonora que Cínthya criou para ela.
Também latia menos e dormia o dobro.
Uma vitória-régia boiando na sala. Uma sanfona se coçando de vento.
Entrávamos de madrugada na residência e ela não respondia. Tínhamos que tocar em seu pelo para despertar uma reação. O tato era o seu último alerta.
As cenas foram esclarecendo os sintomas. Descobrimos que nossa cachorrinha está surda. Não escuta nada.
Despertou uma dor avulsa. Uma dor de azulejo de pares quebrados.
Cora não entende que foi ela que deixou de ouvir, mas acredita que nós deixamos de falar com ela.
Na cabeça da cachorrinha, sem explicação, todo mundo parou de procurá-la.
De repente, ninguém mais a chama, ninguém mais canta para ela, ninguém descreve as paisagens.
No seu universo preto e branco, a surdez é concebida como um castigo. Ela não sabe o que fez de errado para desaparecer o som de nossas bocas.
E treme de frio quando nos observa. Um frio de medo, não de vento. Um frio de quem precisa entender o que aconteceu. Olha longamente as vogais de sabão saindo dos nossos lábios e subindo aos céus. Palavras áereas, mudas, velozes.
Conto tudo assim porque amor é mudar, sempre mudar, sempre se adaptar. E nunca cansar de criar idiomas.
É agora pegar Cora mais no colo, é falar com as mãos, é se aconchegar ao seu corpo para que não mais estranhe o silêncio e reconheça os timbres pelo olfato
Na troca de 2011 para 2012, ela estranhamente dormiu e não acordou com nenhum fogo de artifício. Suspirava no sofá. Uma colher de sopa perdida na almofada.
Aquilo me intrigou. O animalzinho traduzia tranquilidade de coma: anestesiada, desaparecida em si. Respirava fundo, avessa aos tormentos dos fachos.
Logo o animal que fugia dos trovões e das descargas elétricas nos morros.
A família se preocupou com a súbita quietude e fotografou seus movimentos nos dias seguintes. Quando ela caminhava de costas, invocávamos seu nome e ela não recuava. Batíamos palmas e ela sequer mexia o pescoço.
Reprisei que Cora não atendia nossa voz como antes, não obedecia pedidos para sentar ou deitar, não vinha na cozinha quando gritávamos "hora da comida", não abanava o rabo com a trilha sonora que Cínthya criou para ela.
Também latia menos e dormia o dobro.
Uma vitória-régia boiando na sala. Uma sanfona se coçando de vento.
Entrávamos de madrugada na residência e ela não respondia. Tínhamos que tocar em seu pelo para despertar uma reação. O tato era o seu último alerta.
As cenas foram esclarecendo os sintomas. Descobrimos que nossa cachorrinha está surda. Não escuta nada.
Despertou uma dor avulsa. Uma dor de azulejo de pares quebrados.
Cora não entende que foi ela que deixou de ouvir, mas acredita que nós deixamos de falar com ela.
Na cabeça da cachorrinha, sem explicação, todo mundo parou de procurá-la.
De repente, ninguém mais a chama, ninguém mais canta para ela, ninguém descreve as paisagens.
No seu universo preto e branco, a surdez é concebida como um castigo. Ela não sabe o que fez de errado para desaparecer o som de nossas bocas.
E treme de frio quando nos observa. Um frio de medo, não de vento. Um frio de quem precisa entender o que aconteceu. Olha longamente as vogais de sabão saindo dos nossos lábios e subindo aos céus. Palavras áereas, mudas, velozes.
Conto tudo assim porque amor é mudar, sempre mudar, sempre se adaptar. E nunca cansar de criar idiomas.
É agora pegar Cora mais no colo, é falar com as mãos, é se aconchegar ao seu corpo para que não mais estranhe o silêncio e reconheça os timbres pelo olfato
Eu por ter criado uma cadelinha passei junto a ela por essas e outras situações que a velhice impôs a minha amiga. O Carpinejar é genial!Mesmo que não se saiba ao certo o que pensou, até porque julgamos que apenas nós humanos somos capazes de tal ato, ele se propõe adentrar o universo da sua Cora, entender como ela está sentindo, compreendendo as modificações ocorridas em seu corpo. Um sensibilidade que emociona, uma prova de verdadeiro amor e respeito para com o sentimento de um outro ser vivo. Tiro o chapéu sempre para esse grande escritor, tão simples quando narra suas vivencias cotidianas mas ao mesmo tempo intenso! "amor é mudar, sempre mudar, sempre se adaptar. E nunca cansar de criar idiomas."
ResponderExcluirProf. obrigada por esse post maravilhoso
Bjs
Oi, Viviane!
ResponderExcluirÉ a mais pura verdade!
Leia um poema meu chamado "O Cachorro da Minha Infância", que segue a mesma temática.
E Carpinejar é sensacional! Confesso que virei fã de carteirinha dele!
Beijos,
RPF
Você dedicou o texto para alguém ou algo específico? Betina Barone - RS-Horizontina
ResponderExcluir"Amor é mudar, sempre mudar,sempre se adaptar". Disse tudo
ResponderExcluirOi, Betina!
ResponderExcluirPensei em meu cachorro da infância, que passou por algo semelhante...
Abs,
RPF
Caro Antenor
ResponderExcluirÉ isso aí mesmo!
Abraços,
RPF
Lindo texto! Esta é a mais pura expressão do amor. O amor que compreende a mudança natural da vida e que procura sempre uma nova forma de se fazer presente, entendido, sabido. Um amor que se reescreve para continuar vivo. É esse amor que muitas vezes falta entre as pessoas.Temos uma york chamada Jude que é a expressão mais simples do amor e da fidelidade. É muito bom poder ver isso todos os dias e lembrar que todos nós podemos ser assim uns com os outros. Só quem tem um cãozinho para entender.Impressionante como aprendemos com eles. Parabéns querido amigo. Beijo. Gardenia
ResponderExcluirOi, Gardênia!
ResponderExcluirEu estou completamente apaixonado por Carpinejar e a sensibilidade com que ele vê cada momento da vida...
Procure textos dele que vc vai adorar...
E cada dia aprendo mais com as pessoas e com os animais...
Beijos,
RPF
Carpinejar é lindo!
ResponderExcluirE o texto, comovente...
Bjs,
Beatriz
Carpinejar é sensacional!
ResponderExcluirBjs,
RPF