A Burrice da Direita Conservadora
Lembram de quando se podia fumar em locais públicos? Quando podíamos beber e dirigir? Tirávamos nossa habilitação junto ao órgão de trânsito em menos de um mês, e nossas crianças (ou nós mesmos) podiam andar todas amontoadas nos bancos de trás dos veículos. Em cada casa havia uma arma – era quase que um sinal de virilidade dos pais de família. As nossas avós eram nossas médicas, sempre receitando por conta própria os remédios mais adequados para cada doença – que elas mesmas diagnosticavam. E a abertura de poços artesianos era uma consequência natural para quem tinha uma casa com quintal – tanto quanto comprar um cachorro ou cultivar uma pequena horta.
Fato é que esses “maus hábitos” - e há ainda muitos outros que se extinguiram com o tempo – foram sendo suprimidos pela presença do Estado em nossas casas, em nossas famílias, enfim, em nossas vidas privadas. Em nome do “bem coletivo”, do “razoável”, da “civilização”, e sempre fundamentadas em um sem número de estatísticas, essas proibições e burocracias foram se imiscuindo em nossos cotidianos, até que, de repente, nos vimos amarrados a uma quantidade quase insuportável de procedimentos e normas – todas elas muito “bem-intencionadas”.
Mas quantas dessas normas realmente representaram uma melhoria na qualidade de vida do cidadão comum? Por acaso diminuíram os acidentes de trânsito? Ou a violência urbana? Ou melhoraram a saúde pública? A mim, parece que essas normas todas acabaram apenas – e esta é uma regra da atuação legislativa nos últimos anos – por facilitar a vida do Estado, ao jogar para o cidadão a responsabilidade e a culpa pela ineficiência contumaz dos nossos gestores públicos. É muito mais fácil sair criminalizando todo o tipo de conduta que possa gerar conflitos intersubjetivos (conflitos estes que são inerentes à vida em sociedade), focando sempre na prevenção, o que justifica quaisquer formas de proibição, burocratização, normatização, etc.
O cidadão comum se vê atropelado por um Estado que quer ditar seus movimentos (do cidadão) como um fantoche, dizendo o que deve comer, como deve se vestir, o que deve dizer e pensar, quais devem ser as suas formas de lazer, e seguimos nesse embalo alienante e desindividualizante. Deixamos de pensar o ser humano sob a ótica do livre arbítrio. Deixamos de enxergar o Estado exatamente como o que ele deveria ser desde o início, como a figura de Salomão na Bíblia: um juiz que dirime conflitos intersubjetivos, não criminalizando previamente todo e qualquer tipo de conduta, mas analisando as interseções entre a liberdade de um e de outro conflitantes.
Se a liberdade de um termina onde começa a do outro, então como fixar normas gerais que evitem que um cidadão adentre a esfera de liberdades do outro? Ora: focando a atuação legislativa na criação de instituições que acompanhem, identifiquem e mediem esses conflitos na prática. Ao invés de se reduzir a atuação legislativa a esse absurdo exercício de futurologia generalista, sempre buscando antever e prever os conflitos – e quase nunca conseguindo, que o digam as situações caóticas do trânsito, da segurança pública e da saúde no Brasil -, o Estado deve fortalecer os mecanismos de apuração dos fatos, de tutela jurisdicional, de persecução dos direitos individuais feridos pela má-fé, pela violência, por interesses políticos e econômicos diversos.
Estamos indo pelo caminho errado!
E é com muita tristeza que enxergo a outrora direita conservadora, ainda maioria no espectro das ideologias políticas brasileiras (e o crescimento da comunidade evangélica apenas reforça esse sentido da nossa História), se aliando de mãos dadas à esquerda marxista, para juntas negociarem quais dessas burocracias são prioritárias para implementação emergencial, quais devem ser ainda mais incrementadas, quais devem se tornar tipos penais (geralmente, para cada burocracia há um tipo penal novo), etc. Resumindo: o que o cidadão pode e não pode fazer em sua vida privada. É a ovelha se tornando amiga do lobo.
Ocorre que o DNA ético da direita conservadora de forma alguma tem a mesma origem do marxismo coletivista – aliás, é exatamente o oposto! A direita conservadora (enquanto parcela da nossa sociedade que elegia os representantes desse mesmo discurso, e não os representantes propriamente ditos) sempre foi formada por profissionais liberais, trabalhadores, pessoas que deram duro, vieram lá de baixo e formaram uma família e um patrimônio, naquilo que se convencionou chamar de “self-made man” (tradução livre: “homem que se fez por si só”).
Ressalve-se que, quando falo em direita conservadora, não estou me referindo a golpistas tiranos ou corruptos safados que se aliam e apoiam esses golpistas para tirarem proveitos econômicos da falta de fiscalização democrática (exatamente o que aconteceu durante a Ditadura Militar brasileira, de 64 a 85). Esses canalhas se utilizam do discurso que estiver em voga no momento – pode ser de direita ou de esquerda – para manipular as forças políticas e chegar ao poder. Fizeram isso na Argentina peronista, no Brasil Varguista, na Rússia stalinista, na Venezuela chavista, no Brasil lulista, na Itália fascista, e qualquer outra oportunidade em que sentiram cheiro de dinheiro sujo de sangue. Ocorre que, como a sociedade ocidental da época (século XX) ainda era muito influenciada pela moral católica/cristã, o discurso conservador era predominante e, logo, mais apto a arrebanhar as massas com a tríade “conquistas trabalhistas – moral coletivista – nacionalismo xenófobo”. E essa mesma fórmula serviu de modo equânime aos discursos e projetos proto-autoritários de direita e de esquerda, naquele que ficou conhecido como “o Século dos genocídios”.
Feita esta incursão histórico-conceitual, voltemos aos DNA´s ideológicos de ambos os lados.
As esquerdas marxista, trotskista, maoísta, leninista, etc, fundamentam a sua ética numa concepção coletivista de ser humano: o homem existe para o meio, é parte de um processo histórico de evolução contínua da sociedade da qual faz parte – e o comunismo/socialismo/anarquismo é o princípio, o meio e o fim almejados. Já a direita conservadora fundamenta sua ética nos valores que motivaram o homem a chegar até onde chegamos: a acumulação de riquezas, visando garantir a segurança da sua prole, e a proteção do seu ambiente familiar e dos seus valores metafísicos. Em suma: dinheiro é poder, e poder é segurança.
Ocorre que, justamente por ter um pensamento egoísta, a direita conservadora sempre teve um espectro ético mais afeito à ideia do livre arbítrio, do direito do homem a determinar seus próprios passos e cuidar da sua família - ainda que esse mesmo homem, sendo fraco e amoral como é da sua própria natureza, tenha caído inúmeras vezes na tentação de utilizar mecanismos sorrateiros e antidemocráticos para impor a sua moral privada como ética coletiva. Nesse sentido, é até compreensível a aliança que ocorre em nosso Congresso Nacional, para a extensão sem limites da abrangência material da atividade legislativa, entre direita conservadora e esquerda marxista.
Mas a burrice da direita conservadora é não perceber que os objetivos da esquerda marxista vão muito além de um projeto de lei ou de uma determinada política pública. A esquerda marxista tem como princípio e fim a inexistência do livre arbítrio, a submissão de toda escolha valorativa do ser humano a um ideal utilitarista coletivo, a uma balança entre prós e contras sob a ótica não do bem-estar individual (aferível, concreto), mas do coletivo (estipulado, abstrato). E a cada nova proibição de condutas cotidianas, transformando nossos pais de família e jovens em bandidos ou transgressores da lei, a direita conservadora está, por conta de uma visão tacanha, limitada e de curto prazo, entregando nossos cidadãos à marcha descontrolada da coletivização das nossas consciências. Exatamente o que objetiva a esquerda marxista.
Tenho a alternativa para barrar esse processo nefasto: o Projeto de Reestruturação do Ordenamento Jurídico Brasileiro. Compilaríamos todas as normas hoje em vigência no Brasil em apenas 03 códigos: a) Código de Direito Político e Administrativo, regulador das condutas dos nossos agentes públicos, dos mecanismos de representatividade democrática e dos procedimentos de gestão da coisa pública; b) Código de Direito Econômico, regulador dos conflitos intersubjetivos entre capital x trabalho e capital x capital, além dos tributos devidos ao Estado; c) Código de Direitos e Liberdades Civis, elencando todos os tipos penais, vinculando a pena à proporcionalidade gravosa da conduta (e não ao oba-oba momentâneo da opinião pública), e instituindo os instrumentos para efetivação das garantias constitucionais fundamentais (inclusive, e principalmente, a tutela jurisdicional).
Uma consequência natural desse processo de condensação do ordenamento jurídico brasileiro seria a eleição de prioridades normativas, ou seja, uma rigorosa seleção de quais imperativos éticos são realmente necessários, e quais são redundantes, abusivos, ou fruto de uma mera pressão da opinião pública diante da ineficiência do Estado em cumprir com o seu papel de regulador/provedor de liberdades.
O ordenamento jurídico brasileiro chegou a um nível tal que, se não implodirmos tudo e começarmos do zero – no caso, começarmos da Constituição Federal de 1988 -, correremos o sério risco de jamais interromper esse processo em curso, de cada vez mais intromissão do Estado nas nossas vidas privadas – e a Lei da Palmada é apenas o emblema deste “zeitgeist”. As cartas estão na mesa. O rei está nu. A direita conservadora continuará a se deixar usar pela esquerda marxista, como bucha de canhão para a perda ampla, gradual e irrestrita do livre arbítrio dos nossos cidadãos?
Eu já cansei de brigar sozinho...
Victor Castro Fernandes de Sousa, setembro de 2011, Brasília-DF.