segunda-feira, 23 de abril de 2012

Cotidiano


Cotidiano
Esta é apenas mais uma história baseada em fatos reais...
Jonas pega a sua mochila e cabisbaixo sai. Não sabia se tinha vergonha ou revolta. Sabia que não compreendia aquela situação.
Na noite anterior, sua mulher lhe pedira para não se esquecer de trazer o xarope para a filha, que tossia há quinze dias. Nunca o ar estivera tão seco e a pequena menina sentia muito as alterações do clima. Pudera, com a alimentação que Jonas proporcionava à família... Disse à mulher que só receberia seu salário, consumido pelos vales, em 20 dias, mas pegaria emprestado com algum colega de trabalho. Às 5h, foi para o ponto de ônibus, pois não poderia chegar de novo atrasado.
Márcia era jovem. 17 anos. Mal sabia ler. Criada com os avôs, no sertão, conheceu Jonas, dez anos mais velho, no dia da festa de Santo Antonio, há dois anos. Ele era feio, mas o que fazer naquele fim de mundo. Arrumou-se e um ano depois estava de barriga. Se fosse menina, Severina, nome da avó; nascesse macho, Jonas Jr. Preferia só Junior, mas o pai da criança ficaria contente com o nome.
Ônibus lotado. Jonas não sentia mais nada. Pisavam-lhe os pés; abraçavam-no sem desejo; cotoveladas dos mais baixos, cocurutos dos maiores. Ônibus lotado e aquele calor que desde cedo já entrava em seus ossos. Olhava atônito para a janela do coletivo e as imagens das casas, praças e mangueiras corriam em suas retinas. Olhava, mas não via nada. Um pisão no calo o incomodou, mas permaneceu calado.
No mercado, mandaram-lhe repor a gôndola das bebidas. Vinhos italianos e franceses. Muito cuidado. Pensou em Severina, no momento em que arrumava a última garrafa bonita; escorregou de suas mãos, mas conseguiu pegar. Se a garrafa quebrasse, ficaria sem salário algum. R$135,00 numa garrafa de vinho e ele precisando de R$30,00 para comprar o xarope para o neném. Respirou e ficou lembrando-se de quando fora contratado. Salário-mínimo, descontos de INSS e de vale-transporte. Comida, em quinze minutos, no refeitório do mercado. Só conseguia comer quando serviam vatapá. Era sem sal, sem graça. Todo dia frango com colorau. Só de olhar, perdia a fome.
Passou diante da geladeira dos laticínios. Naquela manhã, chegou a entrega dos queijos e iogurtes vindos de São Paulo. São Paulo era longe; e grande; e tinha muita gente, mas não tinha mais empregos, nem sonhos como d’antes. Os produtos acabavam rapidamente. Manteigas francesas, queijos holandeses, iogurtes de Minas Gerais. Viu a garrafinha de Neston. Abriu e bebeu.
João, o vigia, viu tudo. Na mesma hora foi até o escritório e relatou o furto ao Sr. Walker que lhe perguntou se tinha gravado o crime hediondo. Positivo, disse João. Chame o facínora, disse o patrão. Jonas, cabisbaixo, entrou na sala e confirmou que bebera o líquido ali mesmo, na frente dos clientes e que não iria pagar nada. Ficou com vontade e bebeu. Vá procurar os seus direitos, saia daqui, gritou o patrão. Estava furioso com tanta petulância.
Jonas voltou para casa. Mãe e filha ali não se encontravam. Ficou parado e se deitou. Dormiu e sonhou com um local desconhecido, onde não havia trabalho, nem precisava pagar por aquilo que iria consumir. Não havia doenças ou ônibus. Vazio ou lotado. As casas eram iluminadas pelas sombras das árvores e não havia muros. Os carros andavam bem devagar e tudo era espaçoso e tranquilo. Um rio caudaloso corria por perto e o ar não ficava seco. Acordou com a tosse de Severina. A jovem mulher estava sentada e cabisbaixa. Perguntou o que ele estava fazendo ali, naquela hora. Ele só retornava à noite. A jovem achou estranha a reação dele, que a mandou ir à merda.
O Sr. Andrade passou no mercado e, após fechar a banca do jogo do bicho, comprou três garrafas de um uísque escocês. R$1.200,00. Resolveu comprar pistache e um pouco de queijo brie. Hoje não pagou nenhum prêmio e não teria que pagar a condenação do Manuel, aquela besta que não sabia conferir uma pule. O Dr. Bastos ligara de Brasília, comunicando-lhe que ele ganhou a causa. Depositaria os honorários, R$25.000,00, mas não pagaria nenhum tostão para aquele borra-botas do Manuel. Dez anos trabalhando para mim e só fazendo bobagens. Pagou a conta, em espécie, e foi se divertir na casa da Dinda, como fazia todas as vezes que não pagava ninguém.
Às 15h, o Sr. Walker recebeu um telefonema. Deveria ir para Fort Lauderdale, pois a sua irmã não estava passando bem. Era a única pessoa viva de sua família e ele, com seus 68 anos, não poderia deixá-la só. A querida professora, Miss Daisy, sua irmã, sofria de um mal incurável: rejeição à proteína do leite animal. Naquela manhã, na linda Flórida, sua vizinha amada fizera-lhe um iogurte natural, mas disse-lhe que era de soja. Ela com muita sede bebeu o líquido e sofreu forte alergia. Foi ao hospital, mas logo contaria com a presença de seu irmão, Sr. Walker e tudo terminaria bem.
Jonas acordou no dia seguinte e foi procurar um advogado que lhe disse que iria reverter a justa causa e conseguir uma indenização por danos morais que lhe possibilitaria ganhar o salário de três anos de trabalho. Pediu R$30,00 emprestados para o advogado que lhe disse que estava sem dinheiro naquele momento. Saiu do escritório confiante e conseguiria outro emprego, no mesmo dia. Construção civil, pois ali não haveria geladeira, nem gôndola. Talvez, um banheiro limpo; talvez.
José Antonio
Manaus, 25.8.2011

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