sexta-feira, 14 de junho de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO KING

 




O EVANGELHO SEGUNDO KING
Boaventura de Sousa Santos
por Márcio-André de Sousa

deve haver um deus
que não nos governe

canine wisdom

Boaventura de Sousa Santos é um cara estranho. Além de ser o único sujeito no mundo que conjuga o verbo ir na segunda pessoa do plural, escreveu um dos livros de poesia mais estranhos que eu já tive a oportunidade de ler. Escrita INKZ, antimanifesto para uma arte incapaz, lançado   pela editora Aeroplano, é estranho em seu sentido primordial – se refere àquilo que é excêntrico, àquele que é de fora. Se Escrita INKZ fosse estranho meramente por ser desconcertante ou extremamente inovador, características que o livro possui, não faria jus à estranheza de seu autor. Mas ele é, em sua estranheza verdadeira, uma possibilidade real de se pensar o outro, esse excêntrico, esse estranho tão próximo que escapa de nós.
É preciso salientar que Escrita INKZ é um livro bilíngüe. Como todo livro bilíngüe, é dividido ao meio, deixando cada uma de suas duas faces de papel reservada a uma língua diferente. Mas essa divisão simétrica, deveras dual, única possibilidade de articulação num livro que permita ser aberto por uma das extremidades, separa, não duas línguas humanas, mas uma língua humana e uma língua canina – criação de uma terceira página possível dentro das limitações da tecnologia de um livro. Em poucas palavras, é um livro editado em português e em cão. De um lado, as imagens narradas, sem que haja necessariamente um narrador, desdobram uma série de personagens arquetípicos (observados, é bom dizer, nunca observadores) articulados em suas seis mónadas – palavra utilizada por Boaventura para se referir às imagens concomitantes que figuram no homem. A saber: figura, cidade, andamento, momento, mulher nua e orador-ninguém. Essas imagens também poderiam dar conta, numa interpretação bem particular, de tensões comoindivíduo x todo, mudança x permanênciaanimus x anima; sem maiores explanações.
Do outro lado, o lado normalmente reservado à língua traduzida, a mónada-cão, chamada King. Dessa vez, além de nomeado, o personagem é um observador crítico e interferente. A sua especificidade é ser a voz autônoma e livre das outras mónadas. Ser nomeado lhe dá o poder de dizer algo verdadeiro sobre os observados. E é justamente por isso, por ser “livre”, por ser uma janela, como diz o autor, que a mónada-cão, apesar de ser dependente de todas as outras, é a única que se expressa na primeira pessoa.
No prefácio, ou melhor, no desfácio do livro, King, como todo cão, é impedido de entrar em um bar. Esse fato é o que revela sua condição fundamental: a de excluído. É essa condição que vai constituir sua verdadeira força de atração. King é aquele que por ser não-humano, não-civilizado, não-eu, tem o poder de traduzir essa língua que, por estarmos nela inseridos, não somos capazes de compreender. Para cada fala da voz que nomeia as atitudes em nossas próprias escalas de compreensão, King nos dá uma tradução canina, por isso humana e compreensível. Ladrar é orgânico, Falar é sobressalente. King não aluga o cérebro a pensamentos, mas aponta aqueles que o fazem. Um anjo exterminador às avessas, mundano e impotente.
Se
Uma figura morre
Atropelada pelo trânsito interior
Uma figura faz todos os dias ginástica
Para caber em si
Uma figura entra no hospital
Com uma urgência fora de prazo
Uma figura sofre escoriações
Numa disputa com as mãos

(p. 60)
King avalia:
Noutro dia foi atropelada pelo senso comum
Quase a matou
Para acordar é preciso ter a dimensão dos outros
Para dormir é preciso ter dimensão própria

(...)
Vejo apertos de mão
Que são combates
Há mãos que não recuperam
Nunca mais

(p. 61)
A tradução kingueana, coisa na boca de qualquer vira-latas, age como um transmutador do sentido poético para o que eu chamaria de sentido metapoético. Essa terminologia um tanto fajuta é uma maneira paliativa de evitar uma leitura simplista calcada nos conceitos clássicos desubjetividade e objetividade. O papel do King não termina no de mero observador desses transeuntes. King é mónada, e por isso, parte constituinte das outras mónadas, logo, não é independente, como acontece nos elementos da classificação kantiana de sujeito e objeto. King é criador e criatura, observador, mas também, fruto. O que diz não melhora ou piora o dito da primeira página, mas o reenvia criptografado, mordido, babado e cavoucado, aos seus donos verdadeiros. Essa nova versão possui agora uma estética mais mundana. As imagens do livro, humanas ou caninas, que poderiam ser vulgarmente qualificadas como surreais por algum crítico reducionista, mas que, sabe-se, e é preciso um espírito poético para sabê-lo, revelam a face real das coisas:
Uma figura abre a porta
E surpreende-se com um buraco enorme
Deve ter sido aberto de noite
A rua mal se vê ao longe:
É possível sair de casa sem entrar na rua?

(p. 48)
Versos como este nada mais são que verdadeiras constatações do real, obscurecido pelo simulacro do cotidiano. King rosna sobre o papel e regurgita:
As ruas sempre foram feitas de buracos
Os intervalos entre eles é que são recentes

(p. 49)
A figura pode agora, graças aos retoques plásticos da saliva de King, tentar soluções de buracos ou intervalos.
Através desse jogo de criador e criatura, troca e transmutação, o leitor perde a própria dimensão de sua “subjetividade”, esquece o eu e se entrega a esse outro-eu. O leitor já não é leitor, é King, é figura, é cidade e todas as outras mónadas a ver-se no microscópio de sua própria fragilidade. Passamos a nos questionar se há um autor. Se foi Boaventura quem criou King ou King quem criou Boaventura. Separadamente, cada um deles segreda a criação do outro. Em que mundo confiar então? O “verdadeiro” ou o “poético”? Se pensarmos em Octávio Paz, não há diferença. Talvez agora fique claro o sentido pleno da terceira página possível citada anteriormente. Essa terceira página não se detém em nenhuma fronteira. Como na complementaridade quântica, ambas as páginas, direita e esquerda, apesar de serem “excludentes”, representam aspectos igualmente essenciais da coisa referida, e só através desse contraste é que se pode dizer algo realmente verdadeiro desta coisa. A terceira pagina é então o próprio real. Mais: é o real mais real que o real. É o real evidenciado através das diferenças.
A escolha de um cão para figurar como o tradutor da in-diferença não é aleatória. O livro é essencialmente anti-estético, anti-sublime. Para ser verdadeiro, King não pode ser nem consoante nem dissonante. Ele não se enquadra numa classificação achatada. É preciso que ele seja paralelo, tenha a convivência do homem, mas não seja homem, pois
Só os cães
Sabem
Universalizar para dentro

(p. 151)
A Literatura sempre teve o poder de oferecer imagens fundadoras ao homem, imagens reais que possibilitam a solidificação da própria realidade. Imagens compactas que, como num caleidoscópio, se desdobrem em milhares de questões fundantes. Aquiles, Orlando, Don Quixote, Macunaíma, os deuses de Hölderlin, o mar em Saint-John Perse, são imagens fundadoras-questionantes de seu tempo, de sua terra e do mundo subseqüente. Parece que isso foi esquecido pelos poetas de hoje. A ninguém interessa mais propor imagens fundamentais, e o próprio Boaventura evidencia isso ao falar, no desfácio, do vazio de sua geração. Seu cão filósofo assume-se então como a mais forte das imagens a propor questões para o homem moderno. Mas apesar dessa imagem-cão chamar-se King, ela não representa a carta do rei, não tem poder para, caminhando em todas as direções, ser o centro do tabuleiro, nem participa de uma grande tragédia shakespeareana. King não é, e nem poderia ser, por exemplo, um poodle. King é o cão que ninguém quer, escorraçado, vagando a esmo pelas ruas, enxotado dos restaurantes e lambendo suas feridas. King é a imagem daquilo que não desejamos ver: o lado feio e sujo do mundo. Nossa geração prefere os lugares limpos, os shoppings, as ruas bem iluminadas, as pessoas alinhadas, a limpeza visual do cinema norte-americano e a assepsia acústica da música pop. King prefere a sujeira dos filmes de Godart, a imperfeição do jazz dos guetos, as ruas tortas, as casas abandonadas, os transeuntes desgovernados caminhando desconexos e sem sentido. King é o cão picaresco, chapliniano, amante das mulheres e fugitivo da policia. King é a evidência mais forte da hipocrisia e da solidão humana:
Uma figura geométrica
Para só ter liberdades
Previsíveis 

(p. 26)
Vive no meio do tempo
E o tempo no meio dela
Mas não se conhecem

(p. 31)
Num mundo ainda tão centralizado e plano, King é aquele que fareja as margens à beira do mundo. Percebemos agora que a grande questão a ser evidenciada, pelo livro como um todo, é o que há por trás das aparências da maravilhosa ordem moderna e quais os mecanismos de enquadramento sobre os indivíduos. A falsidade das vivências ofertadas pelo simulacro do sistema de produção e do consumo, oprimindo e escondendo o real real revelado pela terceira página. A cidade está a ser produzida/ Em algum lugar/ Tudo que se passa é analogia/ De alguma outra coisa.Como transfigurar essa realidade, King é quem se encarrega de tentar responder. Não como um pensador, mas como um mártir, que vai dar seu corpo canino à experiência do excluído. King é a resposta à questão da figura na sala de banho: onde estou quando não estou aqui? Somente sendo o outro é que podemos ter a dimensão de nós mesmos:
Se os humanos ladrassem
Seriam mais humanos

(p. 133)
Na margem
Quem fala é falado

(p. 131)
Ainda que o suposto autor de Escrita INKZ afirme que King vive com ele, sabemos que Boaventura é ocupado o suficiente para saber por onde o seu cão anda. Quando se dá conta de encontrá-lo, ele já vagueou por todos os becos de todas as cidades do mundo. King, ademais, é um cão cosmopolita.
Sou um flâneur
Gosto de medir o movimento da cidade
Pelo pulso das formigas

(p. 91)
A ironia, como marca desse nosso mundo moderno, é sua filosofia, seu canine wisdom, formulada na escrita do chão, à altura do focinho. Escrita INKZ é um livro lúdico, divertido, coisa rara. Talvez por isso, polêmico. Trata o mundo com ironia desconcertante a ironizar a própria ironia do mundo.
Boaventura, por profissão sociólogo, tem se saído melhor do que a maioria dos poetas de profissão, que, quando raro, só sabem fazer má sociologia. Escrita INKZ não é meramente poesia do cotidiano, como tem feito, a torto e a direito, esses poetas. O cotidiano é a imagem eleita pelo autor como espaço possível para seus personagens-instantes serem “observados” por seu personagem-permanente, King. Seu livro é uma cosmogonia do presente incapaz de dizer-se a si mesmo, pois o presente, matéria feita a todo instante, escapa, pela previsibilidade da mudança, da imprevisibilidade permanente do próprio livro. Aliás, como toda obra que permanece, Escrita INKZ será sempre uma incógnita para qualquer presente, este ou futuro. Ele só pode ofertar o mundo à medida que o questiona e o descompreende. E sua descompreensão o coloca em profunda sintonia com as questões mais cruciais de nossa humanidade hoje. O poeta, sábia divindade descida a terra no corpo de seu messias-cão, aconselha-nos a ser menos humano, menos perfeito. Pronto para salvar o mundo da soberba, a partir do evangelho da mediocridade:
Dormir é o ato mais próximo
De deus
A seguir
É foder

(p.237)
Em sua escrita ideogramática, quase um jogo imagist, onde imagens se opõem com forte contraste, sem diluição, sem explicação, sem amenizações, suas frases concisas são versículos proféticos. E do choque abrupto dessas imagens contrastantes, Boaventura vai construindo pouco a pouco o evangelho do King. Nele, sua mensagem, sua boa nova, ainda mais nova, e tão conveniente para um mundo à espera de novas palavras de ética, é esta: o homem é histórico e esse é seu maior dom. Viver e fazer história são o mesmo. Esse é o ensinamento que nos deixa King, ao final, crucificado pela solidão de ser outro. Consola-o saber que o juízo final será um juízo-cão. Fazer história é deixar-se ser falho, caído, longe da perfeição ofertada, à distância, pelo Deus dos vencedores, esquecer o sublime que cunhou para alcançar e deixar-se ser um pouco cão


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