Bahia foi o lugar ideal para a África chegar.
Arnaldo Jabor - o colunista em crise não consegue voltar das férias.
Não consigo ir embora da Bahia.
Acabaram minhas férias e continuo aqui.
Mesmo que eu viaje depois do Carnaval, levarei a Bahia comigo.
Não se trata de louvá-la; quero entendê-la, não com a cabeça, mas com
o
corpo, com as mãos, com o nariz, entender como um cego apalpa um
objeto,
entender por que este lugar é tão fortemente estruturado em sua
aparente
dispersão.
Aí, descubro que, ao contrário, a Bahia me ajuda a "me" entender.
Não sou eu quem olha; a Bahia é que me olha de fora, inteira, sólida,
secular, a paisagem me olha e fica patente minha alienação de
carioca-paulista, fica evidente meu isolamento diante da vida, eu,
essa
estranha coisa aflita que está sempre entre um instante e outro, sem
nunca
ser calmo, consciente e feliz como um animal.
Na Bahia, vejo-me neurótico, obsessivo, sempre em dúvida, ansioso.
Gostaria de estar na Praia de Buraquinho, quieto, dentro do mar, como
um
peixe, como parte da geografia e não fora dela.
Ninguém aqui se observa vivendo.
Salvador não é uma "cidade partida" como é o Rio, nem a cidade que
expele
seus escravos, como São Paulo, que um dia será castigada,
estrangulada por
sua periferia.
Aqui, de alguma forma misteriosa, os pobres e negros, mesmo sem
posses, são
donos da cidade.
A cultura africana que chegou nos navios negreiros, entre fezes e
sangue,
parece ter encontrado a região ideal neste promontório boiando sobre
o mar,
batido de um vento geral, para fundar uma cidade erótica e religiosa,
plantada nos cinco sentidos, fluindo do corpo e da terra.
Os casarios subiram os montes, desceram em vales por necessidade dos
colonos
e dos escravos do passado, o espaço urbano foi desenhado pelo desejo
dos
homens.
A Bahia foi o lugar perfeito para a África chegar. Tudo se
sincretiza,
natureza e cultura. Espírito e matéria se unem como um bloco só,
amores e
vinganças fluem no sangue dos galos e dos bodes, esperanças queimam
nas
velas de sete dias, todas as coisas se amontoam num grande
procedimento
barroco de não deixar vazio algum, nada que sobre, que fique fora,
nada que
isole matéria e gente.
Os deuses não estão no Olimpo; são terrenos e florestais, estão na
rua, no
dendê, dentro da planta.
Consciência e realidade não se dividem, o povo e o mundo são a mesma
coisa,
e isso aplaca as neuroses, as alienações das megacidades, onde o
homem é um
pobre diabo perdido no meio dos viadutos.
Como nas fotos do Mário Cravo Neto, tudo se une em um só bloco: o
alvo pato
e a mão negra, a mulher nua e a pedra, o nadador, o sol e a água, as
frutas,
os cestos e as bocas, as plantas e os pés, os búzios e os segredos,
os
santos e os orixás, as mãos e tambor, a fome e a carne, o sexo e a
comida.
Tenho uma espécie de inveja e saudade desta cultura integrada, dessa
sociedade secreta que vejo nos olhares das pessoas falando entre si,
uma
língua muda que não entendo, tenho inveja da palpabilidade de suas
vidas
materiais, tenho inveja da grande tribo popular que adivinho nos
becos e
ladeiras, das pessoas que riem e dançam nas beiras de calçada, que se
amam
na beira-mar, tenho inveja desta cultura calma que vive no
"presente", coisa
que não temos mais nas "cidades partidas", sem passado e com um
futuro que
não cessa de não chegar.
Nesta época maníaca e americana, que se esvai sem repouso, aqui há o
ritmo
do prazer, a "sábia preguiça solar" de que falou Oswald e que Caymmi
professa.
A civilização que os escravos trouxeram criou esta "grande
suavidade", este
mistério sem transcendência, este cotidiano sem ansiedade, esta
alegria sem
meta, esta felicidade sem pressa.
Aqui a cultura vem antes da lei.
Aqui o soldado na guarita é um negro com passado e orixás, dentro da
roupa
de soldado.
O bombeiro, o vendedor, o pescador, o vagabundo se comunicam e
existem antes
das roupagens da sociedade.
Até se travestem, se fantasiam de si mesmos nos horrendos resorts
caretas da
burguesia, mas não perdem a alma para o diabo, defendidos pela
vigilância de
seus Exus.
A sinistra modernidade tenta adquirir a Bahia, possuí-la,
apropriar-se das
praias, das ilhas, dos panoramas.
Mas mesmo o progresso urbano e tecnológico aqui fica domado de certo
modo
pela cultura, que resiste a esses embates.
Os balneários turísticos aqui me parecem meio patéticos, meio Miami,
na
vivência luxuosa dos acarajés, camarões e uísques trazidos por
serviçais
iaôs e mordomos de cabeça feita.
Aqui não se vêem os rostos torturados dos miseráveis do Rio e de São
Paulo:
a pobreza tem uma religião terrena costurando tudo.
As festas do ano inteiro não são diversionistas, orgiásticas, para
"divertir
- são para integrar.
As festas têm uma religiosidade pagã, sem sacrifícios, sem asceses
torturadas de olhos virados para o céu.
Nada sobrou do barroco europeu sofrido; só prosperou o barroco gordo,
pansexual, com as frutas, os anjinhos nus, os refolhos e os ouropéis
invadindo o convulsivo barroco da contra-reforma, com as curvas
carnavalescas nas igrejas cheias de cariátides peitudas, sexies,
gostosas,
como as mulatas do Pelourinho.
Não é uma sociedade, mas um grande ritual em funcionamento.
O Brasil aflito, injusto, imundo, inóspito devia aspirar a ser Bahia.
Aqui dá para esquecer o jogo sujo do Congresso em Brasília, revelando
a face
oculta dos bandidos com imunidade, calhando a democracia, aqui você
não
morre afogado na enchente da marginal Tietê, nem o Ronaldinho é
assaltado
com revólver na cabeça.
Não conheço lugar mais naturalmente democrático.
E, por isso, não consigo ir embora.
Vou comprar uma camiseta "NO stress" e ficar bebendo frappé de coco
para
sempre.
E eu faço o que.....trabalhando diante de um visual desse???
Arnaldo Jabor.
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