UMA GOTA DE CHUVA NA
CARA
"Se não fosse gago era-me
fácil conversar com ela. Mora três quarteirões adiante do meu, apanhamos o mesmo
autocarro todos os dias, eu na quarta paragem e ela na quinta, olhamos imenso um
para o outro durante os vinte minutos
(meia hora quando há mais
trânsito)
do percurso entre o nosso
bairro e o ministério. ela trabalha dois andares acima de mim, subimos no mesmo
elevador sempre a olharmo-nos, às vezes parece que me sorri.
(tenho quase a certeza que me
sorri)
vemo-nos de longe no
refeitório cada qual com o seu tabuleiro, ia jurar que me fez sinal para me
sentar na mesa dela, não me sento por não me ter a certeza que me faz
sinal
(acho que tenho a certeza que
me faz sinal)
voltamos a olhar-nos no
elevador, ela volta a sorrir quando saio, volta a olhar para mim no autocarro de
regresso a casa e não sou capaz de falar com ela por causa da gaguez. Ou melhor
não é só a gaguez: é que como as palavras não me saem, como quero exprimir-me e
não consigo, fico roxo com os olhos de fora
(pus-me diante do espelho e é
verdade)
de boca aberta, cheia de
dentes, a tropeçar numa consoante interminável, a encher o ar, à minha volta de
um temporal de perdigotos aflitos, e não quero que ela repare como me torno
ridículo, como me torno feio, como me torno, fisicamente, numa carrança de
chafariz, a cuspir água aos soluços num mugido confuso. Com os meus colegas do
emprego é simples: faço que sim ou que não com a cabeça, resumo as respostas a
um gesto vago, tranformo um discurso num erguer de sobrancelhas, reduzo as
minhas opiniões sobre a vida a um encolher de ombros
(mesmo se não fosse gago
continuaria a reduzir as minhas opiniões sobre a vida a um encolher de
ombros)
ao passo que com ela seria
obrigado a dizer coisas por extenso, a conversar, a segredar-lhe ao
ouvido
(se eu me atrevesse a
segredar-lhe ao ouvido aposto que tirava logo o lenço da carteira para enxugar
as bochechas e fugia assustada)
a segredar-lhe ao pescoço, a
enredá-la numa teia de frases
(as mulheres,
julgo eu, adoram ser enredadas numa teia de
frases)
enquanto lhe pegava na mão,
descia as pálpebras, esticava oa lábios na expressão infinitamente estúpida dos
namorados prestes ao beijo, e agora ponham-se no lugar dela e imaginem um gago
desorbitado a aproximar-se de vocês escarlate de esforço, a abrir e a fechar a
boca prisioneiro de uma única sílaba, a empurrar com o corpo todo
um
- Amo-te
que não sai, que não consegue
sair, que não sairá nunca, um
-Amo-te
que me fica preso na língua
num rolhão de saliva, eu a subir e a descer os braços, a desapertar a gravata, a
desabotoar o botão do colarinho, o
- Amo-te
nada, ou pior que nada,
substituído por um berro de gruta, ela a fastar-me com os braços estendidos, a
levantar-se, a desaparecer porta fora espavorida, e eu sozinho na pastelaria
debruçando-me ainda ofegante para o chá de limão e o pastel de nata da minha
derrota definita. Não posso cair na asneira de conversar com ela, é
óbvio que tenho de me conformar com os olhares do autocarro, com o sorriso no
elevador, com o convite mudo no refeitório até ao dia em que ela aparecer de mão
dada com um sujeito qualquer, se calhar mais velho do que eu mas capaz de lhe
cochichar na orelha sem esforço
(há pessoas que cochicham sem
esforço)
o que eu adorava explicar-lhe
e não consigo até ao dia em que deixar de me olhar, de sorrir, de convidar-me a
sentar à sua frente durante o almoço
(sopa, um prato à escolha
entre dois, doce ou fruta, uma carcaça e uma garrafa pequena de vinho, tudo por
quatrocentos e quarenta escudos não é caro)
e eu a vê-la na
outra ponta do autocarro a poisar a testa no ombro de um sujeito qualquer, sem
reparar em mim, sem reparar sequer em mim como se eu nunca tivesse
existido e compreender que por ter deixado de
existir não existi nunca, e nessa noite ao olhar-me ao espelho não verei
ninguém ou verei quando muito um par de olhos
(os
meus)
que me censuram,
um par de olhos com aquilo que ia jurar ser uma lágrima a tremer nas pestanas e
a descer devagarinho pela bochecha fora, ou talvez não seja uma
lágrima é apenas
(porque será
inverno)
uma gota de chuva, sabem como
é, a correr na vidraça."
António Lobo Antunes, in
"Algumas Crónicas"
Nenhum comentário:
Postar um comentário