Caminho sumido
As
mulheres idosas se reuniam na igreja para rosário, quitutes e fofocas. Encontros
semanais. Se uma faltasse, logo se pensava em doença ou coisa pior. Um
telefonema – um alívio, um desejo de melhoras, pranto, a depender da notícia ou
circunstância. Anos de amizade. Encontro religioso religiosamente uma vez por
semana. Eram trinta. O padre as temia e delas precisava, eram quem povoava e
traziam povoação à paróquia. Um senão que falassem e a tranquilidade do pároco
descia mundo abaixo.
Uma parenta de Semíramis, crocheteira
de primeira linha, como agradecimento pelo recebimento de muda de planta,
entregou-lhe um caminho de mesa por ela tecido. Era uma encomenda para ser
entregue a Arminda, colega da reza do rosário. Semíramis entregou a encomenda,
antes mesmo do início das orações. A mimoseada abriu parcialmente o embrulho,
deleitou-se ao ver o belo trabalho, tateou para conferir a textura e decidiu
guardá-lo na bolsa sem mostrar a ninguém. Todavia, uma das companheiras viu,
alardeou e a curiosidade imperou entre as mulheres. Divino fruto, o caminho
passou pelas mãos deslumbradas com a excelência do trabalho. Entre interjeições
de júbilo, alguém impôs a ordem e se fez silêncio. Era preciso iniciar as
orações. Caminho esquecido.
Foram debulhadas as contas dos três terços. Encerrada a
rezaria, passou-se à comilança. Umas tinham levado bolos, outras
salgadinhos, café e refrigerantes. Começaram as fofocas, logo interrompidas pela
presença do padre, que ali chegara para contar ovelhas, fazer uma boquinha e
sair para os seus santos e ignorados compromissos naquele fim de manhã de verão.
Os mexericos volveram e, entre uma e outra mordiscada, vidas foram devassadas e
piadas foram contadas, algumas bem picantes. Súbito a reunião se esvaziou, pois
as que ainda tinham maridos se lembraram do almoço. As viúvas nem conseguiam
pensar nesse repasto, estavam fartas. Foram aos quefazeres ou às respectivas
preguiças.
Semíramis atendeu ao telefone. Uma
chorosa Arminda mal conseguia pronunciar palavra. Custosamente, entre soluços,
disse:
— O caminho de mesa...
Sumiu!
— Não está em sua
bolsa?
Não estava. Arminda virou e revirou os
pertences, como se um embrulho daquele volume pudesse
submergir.
Confirmada a ausência do caminho, as
duas idosas traçaram um projeto de localização, condizente com as suas
dificuldades de locomoção. Usariam o telefone. Ao cabo de alguns minutos,
formalizaram duas listas. Cada qual com uma delas. Ligariam para as colegas e
perguntariam se, por acaso, não teriam levado, sem querer, o caminho
sumido.
No início, os telefonemas eram
prontamente atendidos, mas logo os telefones ficaram ocupados e elas tinham de
repetir com insistência as discagens para que se completassem as chamadas.
Dava-se um efeito cascata. As primeiras que receberam as ligações telefonaram
para as outras e entre elas afinou-se grande conversação. Somente à boca da
noite, a tarefa havia sido concluída e elas se comunicaram para o resumo da
missão. Debalde o esforço. Ninguém sabia do paradeiro do caminho de mesa.
Se houvesse uma escuta investigativa,
quem a fizesse chegaria próximo da insanidade, porque muitas foram acusadas,
condenadas ou absolvidas, por essa ou aquela. A que condenava uma era condenada
por outra. O assunto seguiu noite adentro e pela semana a seguir. Mudava-se de
ideia com a mesma rapidez que se respira. A amizade fraterna posta à prova
mortal. Uma delas, Concebida, disse ao ouvido de Mariluce ser Arminda velha
caquética e desmemoriada. Por tal motivo, enfiara o pano em algum lugar, "Deus
sabe onde..." e agora vinha culpar os outros pelo próprio desleixo. Cada
condenação era repassada às outras, menos para a condenada, é claro.
Filomena, a pacificadora, discordou de todas as hipóteses ouvidas,
como sempre fazia, e àquelas que lhe pediram opinião disse não ter nenhuma. Mas
não faltou quem achasse suspeita a sua atitude de neutralidade. Seu silêncio foi
interpretado como confissão de culpa ou conivência.
Os trinta telefones não descansaram
durante a semana e, ao final dela, centenas de "certezas incertas" estavam
postas. Houve quem jurasse uma coisa e logo mudasse de opinião. As mais
criativas encontraram diversas soluções, frutos de mera
especulação.
Chegou o dia do encontro com os três
terços do rosário e nada menos do que tantas soluções quantas eram as orações
proferidas foram catalogadas por Filomena, que além de pacificar tinha a mania
de anotar tudo que se lhe dissesse. Nesse dia, elas chegaram à igreja na hora
marcada. Fato incomum, porque sempre vinham mais cedo, para um dedo de prosa ou
arrumar apoio para alguma fofoca capaz de abalar e animar a festa, como elas
gostavam de dizer, em sacrossanto deleite. Dessa vez, com ar impregnado de
desconfiança e de culpa, as orações foram recitadas entre olhares suspeitosos.
Em cada cabeça, uma sentença ou muitas, com ressalva de Filomena, que, embora
tivesse vontade de condenar alguém, manteve-se neutra e crente na honestidade
humana. Dissintonia. Reza e pecado. Acusações falsas pensadas e
repensadas. Preces mecânicas. Olhares de soslaio. Alguém se entregaria? Furto.
Uma embusteira entre elas. Mazelas nas mentes.
Findas as orações, as trinta senhoras
se aproximaram da mesa. Seria o momento de lazer transformado em fel. Uma
inimizade íntima coletiva e descabida se constituiu. Muitas grudadas às bolsas.
Teve quem nem colocasse o cordão com crucifixo ou santinho. O padre chegou para
contar ovelhas e fazer uma boquinha. O silêncio. A voz de Filomena se fez ouvir,
tímida, no silêncio cortado apenas pelo som de pratos e copos.
— Padre. Por acaso o senhor não viu um
caminho de mesa de crochê na semana passada? Acho que foi
esquecido.
O padre respondeu sem tirar os olhos
do prato e com a boca semicheia:
— Vi não. Perguntaram para Marilyn? E
para seu Rubem?
Dentro das cabeças pecantes, a
faxineira e o sacristão tornaram-se os principais suspeitos. Murmúrio de
velório. Umas diziam às outras:
— Como não pensamos
neles?
— Minha nossa, me perdoe, eu
desconfiei de você, minha querida...
Confissões mútuas. Choros e abraços. A
incrível sensação de quem se desvencilha de segredo ou pensamento daninho. As
trinta senhoras se uniram instantaneamente contra os dois possíveis malfeitores.
E, após a saída do padre para seus outros interesses, uma vez farto das
guloseimas, naquele dia com pitada de amargura, elas se uniram para estabelecer
um plano capaz de deixar tudo às claras e recuperar os caminhos: o de mesa e o
da fraternidade. Formaram dois ternos, que teriam a missão de
interrogar Marilyn Monroe Pereira e Rubem Braga Cardoso. Elas sabiam os horários
deles na paróquia. O resultado dos interrogatórios seria divulgado no próximo
encontro para o rosário.
Elas chegaram mais cedo que de costume
e, antes mesmo das orações, apresentados os relatórios das investigadoras,
souberam que Marilyn e Rubem eram inocentes. A cizânia secreta. A desconfiança
voltou a povoar as mentes. Rezaram com amargura. Silêncio no momento das
iguarias. Olhares de través. O padre chegou para contar ovelhas e fazer
boquinha. Uma voz quase inaudível:
— E se foi ele...
Algumas semanas depois, Arminda
resolveu pôr ordem nos guardados do marido, um bagunceiro de marca. Entre
jornais velhos, revistas e livros, ela encontrou o embrulho. Reconheceu-o
imediatamente. O caminho. O marido na sala vendo jogo.
— Gideão, como esse embrulho foi parar
nas suas coisas?
— Eu achei no chão, perto do portão da
rua. Guardei pensando que o dono poderia vir procurar — ele disse, com o olhar
fixo no jogo.
Arminda ficou alguns instantes
pensando em achar um caminho para ajeitar a situação com as amigas. Percebeu o
quanto ela e o marido não conversavam mais. Pôs-se a chorar...
Escrito por Jairo Vianna Ramos