sábado, 6 de julho de 2013

O QUADRO DO CAPETA




O QUADRO DO CAPETA
(*) Por Marco A. M. Mendes

Sozinho naquela cidadezinha do interior, Zé Paulino resolveu comprar uma tela, tintas, preencher o tempo com uma pintura. Não tinha dons artísticos não, mas sentia-se muito solitário, queria um pouco de companhia. Então resolveu pintar uma família, ainda que fossem apenas figuras por ele próprio idealizadas, pintadas numa tela. Juntou os trocados, foi até a papelaria mais próxima, retirou o dinheiro embolado do bolso e comprou uma tela, bisnagas de tinta e uns pinceis. Empregou ali todas suas economias.
Chegando em casa improvisou um cavalete, alçou a tela sobre ele e espremeu as tintas num prato velho. Sacou um dos pinceis como se fosse um espadachim e mãos a obra. Iniciou a pintura conforme lhe aprouvesse, começando a pintura por uma bela menina. Um tanto pálida é verdade, sem o domínio das cores, exagerou no amarelo. Chamou-a de filha.
Vendo que a pintura ficou um tanto pálida, tentou corrigir com novas pinceladas. Sem  destreza do pincel derramou um pouco de tinta preta sobre a tela, respingando sobre a menina. Ficaram parecendo tatuagens. Zé Paulino ficou louco da vida, pois detestava tatuágens. A pintura não havia saído como queria. Contudo, estava determinado a pintar uma família e continuou sua obra. Para tentar corrigir o erro, na tentativa de disfarçar a primeira figura, idealizou pintar outra figura ao lado. Talvez as pessoas não prestassem atenção à primeira figura. Lançando o pincel sobre a tela fez a figura de um menino, que chamou de filho. Essa nova figura não saiu como pretendia por parecia um tanto desfigurado. O menino não agradou o pintor, por isso deu-lhe uma surra de pincel.
Zé Paulino logo partiu para pintar uma terceira figura, a qual chamou de mulher. Afinal, já tinha dois filhos e eles não poderiam ficar sem uma mãe. Como havia de se esperar de um pintor improvisado, não afeto à arte da pintura, carregou demais no vermelho. Fez o rosto da mulher parecer uma pimenta. Como um espadachim enfurecido sacou outro pincel do bolso e lançou as cerdas contra a tela. Travou um medonho duelo com a mulher. Desse duelo respingou tinta por toda a sala, sujando sua roupa e até os móveis que estavam por perto. Até o cachorro que dormia sossegado ali perto saiu colorido. Procurava amoldá-la, reformá-la, para que ficasse tal qual era seu desejo. Mas, sua falta de habilidade com o pincel delineava uma figura surreal. Os respingos muticoloridos e traços indesejados mancharam e riscaram toda a tela. Curiosamente os respingos improvisados modelaram uma figura pequena e sorridente no canto esquerdo, que ao final Zé Paulino chamou de filhote. Batizou o quadro com o nome de “Família” e o pendurou nos fundos da casa, pois se envergonhava de tudo o que havia feito e queria esconder o quadro.
Deprimido com sua obra, embriagou-se. Num momento de fúria, na tentativa de destruir sua criação, ameaçou a tela com fogo, que ficou toda chamuscada. Passada a bebedeira resolveu vendê-la. Foi até a feira da praça central e ali a ofereceu por qualquer preço.
Nesse mesmo dia, passava pela praça um senhor pomposo, fraque e cartola. Zé Paulino não sabia, mas era o demônio disfarçado. Olhando aquela tela e o estado deplorável de Zé Paulino, ofereceu-lhe uma vaca em troca do quadro. Zé Paulino aceitou na hora, pois seria uma maneira de resgatar um pouco do dinheiro investido no material utilizado.
A vaca era velha, não dava leite, logo adoeceu e morreu. Zé Paulino caiu na desgraça. Mulambento, percorria as ruas da cidade pedindo esmolas. Certo dia, revirando o cesto de lixo, encontrou um jornal que lhe chamou a atenção. Ficou surpreso quando viu a notícia de que seu quadro foi reconhecido arte contemporâneo de ponta. Tal qual Monalisa, as pessoas do quadro tinham um sorriso sinistro, um misto de choro e sofrimento, ora parecendo rir da sorte do pintor, ora parecendo chorar a desgraça do abandono. O ardiloso diabo sabia o valor do quadro desde o momento em lançou os olhos. Pagou uma bagatela pela “Família” e agora tinha uma fortuna em suas mãos, enquanto Zé Paulino morria à mingua.
Desesperado Zé Paulino ajuizou uma ação contra o demônio na tentativa de desfazer a venda. O Juiz da causa era rigoroso e não gostou nenhum pouco do fato de Zé Paulino ter matratado e abandonado a “Família”. Zé Paulino percebeu a enrascada em que se meteu e aceitou um acordo. Obrigou-se a comparecer todos os dias no museu do capeta para espanar o pó da “Família”, em troca de um lugar para dormir e um prato de cominda.
O ardiloso demônio além de ficar com a “Família”, ainda se apoderou da alma de Zé Paulino, aprisionando-o num contrato que vigoraria por toda a eternidade. Esse é o destino de quem maltrata e abandona sua familia e, ainda por cima, deixa-se levar pelo ardil do capeta.
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