quinta-feira, 4 de julho de 2013

Caminho sumido



Caminho sumido

As mulheres idosas se reuniam na igreja para rosário, quitutes e fofocas. Encontros semanais. Se uma faltasse, logo se pensava em doença ou coisa pior. Um telefonema – um alívio, um desejo de melhoras, pranto, a depender da notícia ou circunstância. Anos de amizade. Encontro religioso religiosamente uma vez por semana. Eram trinta. O padre as temia e delas precisava, eram quem povoava e traziam povoação à paróquia. Um senão que falassem e a tranquilidade do pároco descia mundo abaixo.
            Uma parenta de Semíramis, crocheteira de primeira linha, como agradecimento pelo recebimento de muda de planta, entregou-lhe um caminho de mesa por ela tecido. Era uma encomenda para ser entregue a Arminda, colega da reza do rosário. Semíramis entregou a encomenda, antes mesmo do início das orações. A mimoseada abriu parcialmente o embrulho, deleitou-se ao ver o belo trabalho, tateou para conferir a textura e decidiu guardá-lo na bolsa sem mostrar a ninguém. Todavia, uma das companheiras viu, alardeou e a curiosidade imperou entre as mulheres. Divino fruto, o caminho passou pelas mãos deslumbradas com a excelência do trabalho. Entre interjeições de júbilo, alguém impôs a ordem e se fez silêncio. Era preciso iniciar as orações. Caminho esquecido.
Foram debulhadas as contas dos três terços. Encerrada a rezaria, passou-se à comilança.  Umas tinham levado bolos, outras salgadinhos, café e refrigerantes. Começaram as fofocas, logo interrompidas pela presença do padre, que ali chegara para contar ovelhas, fazer uma boquinha e sair para os seus santos e ignorados compromissos naquele fim de manhã de verão. Os mexericos volveram e, entre uma e outra mordiscada, vidas foram devassadas e piadas foram contadas, algumas bem picantes. Súbito a reunião se esvaziou, pois as que ainda tinham maridos se lembraram do almoço. As viúvas nem conseguiam pensar nesse repasto, estavam fartas. Foram aos quefazeres ou às respectivas preguiças.
            Semíramis atendeu ao telefone. Uma chorosa Arminda mal conseguia pronunciar palavra. Custosamente, entre soluços, disse:
            — O caminho de mesa... Sumiu!
            — Não está em sua bolsa?
            Não estava. Arminda virou e revirou os pertences, como se um embrulho daquele volume pudesse submergir.
            Confirmada a ausência do caminho, as duas idosas traçaram um projeto de localização, condizente com as suas dificuldades de locomoção. Usariam o telefone. Ao cabo de alguns minutos, formalizaram duas listas. Cada qual com uma delas. Ligariam para as colegas e perguntariam se, por acaso, não teriam levado, sem querer, o caminho sumido.
            No início, os telefonemas eram prontamente atendidos, mas logo os telefones ficaram ocupados e elas tinham de repetir com insistência as discagens para que se completassem as chamadas. Dava-se um efeito cascata. As primeiras que receberam as ligações telefonaram para as outras e entre elas afinou-se grande conversação. Somente à boca da noite, a tarefa havia sido concluída e elas se comunicaram para o resumo da missão. Debalde o esforço. Ninguém sabia do paradeiro do caminho de mesa.
            Se houvesse uma escuta investigativa, quem a fizesse chegaria próximo da insanidade, porque muitas foram acusadas, condenadas ou absolvidas, por essa ou aquela. A que condenava uma era condenada por outra. O assunto seguiu noite adentro e pela semana a seguir. Mudava-se de ideia com a mesma rapidez que se respira. A amizade fraterna posta à prova mortal. Uma delas, Concebida, disse ao ouvido de Mariluce ser Arminda velha caquética e desmemoriada. Por tal motivo, enfiara o pano em algum lugar, "Deus sabe onde..." e agora vinha culpar os outros pelo próprio desleixo. Cada condenação era repassada às outras, menos para a condenada, é claro.  Filomena, a pacificadora, discordou de todas as hipóteses ouvidas, como sempre fazia, e àquelas que lhe pediram opinião disse não ter nenhuma. Mas não faltou quem achasse suspeita a sua atitude de neutralidade. Seu silêncio foi interpretado como confissão de culpa ou conivência.
            Os trinta telefones não descansaram durante a semana e, ao final dela, centenas de "certezas incertas" estavam postas. Houve quem jurasse uma coisa e logo mudasse de opinião. As mais criativas encontraram diversas soluções, frutos de mera especulação.
            Chegou o dia do encontro com os três terços do rosário e nada menos do que tantas soluções quantas eram as orações proferidas foram catalogadas por Filomena, que além de pacificar tinha a mania de anotar tudo que se lhe dissesse. Nesse dia, elas chegaram à igreja na hora marcada. Fato incomum, porque sempre vinham mais cedo, para um dedo de prosa ou arrumar apoio para alguma fofoca capaz de abalar e animar a festa, como elas gostavam de dizer, em sacrossanto deleite. Dessa vez, com ar impregnado de desconfiança e de culpa, as orações foram recitadas entre olhares suspeitosos. Em cada cabeça, uma sentença ou muitas, com ressalva de Filomena, que, embora tivesse vontade de condenar alguém, manteve-se neutra e crente na honestidade humana.  Dissintonia. Reza e pecado. Acusações falsas pensadas e repensadas. Preces mecânicas. Olhares de soslaio. Alguém se entregaria? Furto. Uma embusteira entre elas. Mazelas nas mentes.
            Findas as orações, as trinta senhoras se aproximaram da mesa. Seria o momento de lazer transformado em fel. Uma inimizade íntima coletiva e descabida se constituiu. Muitas grudadas às bolsas. Teve quem nem colocasse o cordão com crucifixo ou santinho. O padre chegou para contar ovelhas e fazer uma boquinha. O silêncio. A voz de Filomena se fez ouvir, tímida, no silêncio cortado apenas pelo som de pratos e copos.
            — Padre. Por acaso o senhor não viu um caminho de mesa de crochê na semana passada? Acho que foi esquecido.
            O padre respondeu sem tirar os olhos do prato e com a boca semicheia:
            — Vi não. Perguntaram para Marilyn? E para seu Rubem?
            Dentro das cabeças pecantes, a faxineira e o sacristão tornaram-se os principais suspeitos. Murmúrio de velório. Umas diziam às outras:
            — Como não pensamos neles?
            — Minha nossa, me perdoe, eu desconfiei de você, minha querida...
            Confissões mútuas. Choros e abraços. A incrível sensação de quem se desvencilha de segredo ou pensamento daninho. As trinta senhoras se uniram instantaneamente contra os dois possíveis malfeitores. E, após a saída do padre para seus outros interesses, uma vez farto das guloseimas, naquele dia com pitada de amargura, elas se uniram para estabelecer um plano capaz de deixar tudo às claras e recuperar os caminhos: o de mesa e o da fraternidade.  Formaram dois ternos, que teriam a missão de interrogar Marilyn Monroe Pereira e Rubem Braga Cardoso. Elas sabiam os horários deles na paróquia. O resultado dos interrogatórios seria divulgado no próximo encontro para o rosário.
            Elas chegaram mais cedo que de costume e, antes mesmo das orações, apresentados os relatórios das investigadoras, souberam que Marilyn e Rubem eram inocentes. A cizânia secreta. A desconfiança voltou a povoar as mentes. Rezaram com amargura. Silêncio no momento das iguarias. Olhares de través. O padre chegou para contar ovelhas e fazer boquinha. Uma voz quase inaudível:
            — E se foi ele...
            Algumas semanas depois, Arminda resolveu pôr ordem nos guardados do marido, um bagunceiro de marca. Entre jornais velhos, revistas e livros, ela encontrou o embrulho. Reconheceu-o imediatamente. O caminho. O marido na sala vendo jogo.
            — Gideão, como esse embrulho foi parar nas suas coisas?
            — Eu achei no chão, perto do portão da rua. Guardei pensando que o dono poderia vir procurar — ele disse, com o olhar fixo no jogo.
            Arminda ficou alguns instantes pensando em achar um caminho para ajeitar a situação com as amigas. Percebeu o quanto ela e o marido não conversavam mais. Pôs-se a chorar...


Escrito por Jairo Vianna Ramos

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