Por amor às causas perdidas, por amor a travar as lutas contra
os “moinhos de vento”, vos escrevo sobre as semelhanças entre a
advocacia contemporânea e o clássico da literatura mundial “Dom
Quixote”, escrito no século XVII por Miguel de Cervantes. Uma pequena
reflexão que fiz ao conhecer o cavaleiro, louco para alguns, herói para
outros.
Este personagem icônico da literatura espanhola que deu
margem a inúmeras composições artísticas por sua excentricidade
possui semelhanças concretas com a figura do advogado
contemporâneo e as “lutas” travadas usando a sua espada de nome
“segurança jurídica”.
Aos que ainda não foram apresentados ao “cavaleiro”, Dom
Quixote era um fidalgo tido como louco em seu vilarejo, porque fez a
leitura de muitos livros sobre a cavalaria medieval e acreditava
piamente que ele era um cavaleiro. Viveu aventuras ao lado do seu fiel
companheiro Sancho Pança, sempre combatendo as injustiças sociais,
em busca da sua amada Princesa Dulcineia de Toboso. Dom Quixote
foi desacreditado por onde passou, lutava por ideais maiores enquanto
a população ria das suas ideias. Qualquer semelhança com sua
realidade, meu caro advogado, não é mera coincidência.
Em sua peregrinação, Dom Quixote acreditou verdadeiramente
que os moinhos de vento encontrados no caminho eram gigantes e que
ele deveria combatê-los, seu fiel escudeiro tenta alertá-lo sobre a
ilusão, mas Dom Quixote investe suas forças na batalha contra o seu
inimigo. A expressão “lutar contra moinhos de vento” que utilizamos
para designar “batalhas em vão” surge desta clássica cena literária.
Hoje nos deparamos com este cenário cada vez mais frequente na
advocacia brasileira, o judiciário tem sido palco de grandes lutas contra
moinhos de vento. Somos assolados por uma imensa insegurança
jurídica, na qual estamos reféns do “entendimento do Juiz” que muda
de acordo com a Comarca ou a Vara (há casos em que na mesma Vara,
o entendimento muda conforme o assessor). Somos chamados todos os
dias a usar a nossa armadura e brigar com os gigantes. Não importa o
que você leu nos livros da cavalaria!
Lemos muitos livros como o nosso amigo Dom Quixote e me
parece que ficamos loucos, colegas. Diariamente somos conduzidos a
uma realidade paralela de posicionamentos que por vezes contrariam
todo o sistema jurídico, para satisfazer interesses ocultos ou as suas
próprias convicções sobre as demandas.
As decisões e despachos nos fazem questionar a nossa própria
sanidade mental. O pedido do cliente seria uma ilusão como os
moinhos de vento? Como pode o sistema processual civil brasileiro
determinar que havendo manifestação expressa das partes quanto à
“não realização de audiência de conciliação”, o judiciário ainda assim
deliberar pela realização com fundamento em sua própria convicção?
Dom Quixote tem sempre as melhores intenções, como os
advogados em suas atuações pelos seus clientes. Como explicar ao seu
cliente que a demanda dele (idêntica a um outro caso que você também
já atuou e obteve êxito) foi julgada improcedente? Apenas porque teve o
“azar” de ser distribuído a determinada Vara, na qual o Juiz decide de
forma contrária ao seu pleito. Viramos o “Judiciário da loteria”, meus
caros.
Assim como o Dom Quixote, na advocacia precisamos ter a
ousadia de enxergar com os olhos da alma, como o nobre cavaleiro,
observando o conteúdo imaterial que as demandas possuem. Não são
processos apenas, são sonhos, frustrações, mágoas e alegrias dos seus
clientes que você, meu caro advogado, é o porta-voz. Assim como o
Dom Quixote descobre a duras penas, percebemos também que não
temos super poderes para enfrentar os “gigantes”, mas as batalhas
ganham um maior sentido quando enfrentadas pelo ideal de justiça. É
preciso ter “sangue no olho” como o Dom Quixote.
Cuidado! O próximo parágrafo contém spoiler do livro e da vida.
Ao retornar ao seu povoado, após as desventuras vividas, Dom
Quixote percebe que ele não é um herói, assim como não existem
heróis. Heróis salvam o mundo independentemente de qualquer
realidade difícil que lhe seja apresentada e tudo dá certo no final. Não
há heróis, meus caros, mas continuemos a travar as nossas batalhas
contra os “moinhos de vento”, por amor às causas perdidas, aos
sonhos e desejos do outro.
Me despeço deste breve paralelo com o desejo de muitos “finais
felizes” aos meus colegas de cavalaria, cheio de “heróis” da vida real,
“princesas” a resgatar e injustiças a combater, para que possamos viver
a cada dia novas “loucuras” como o nosso amigo Dom Quixote.
“Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é
utopia, é justiça!”
MIGUEL DE CERVANTES