domingo, 30 de agosto de 2020

Dom Quixote e o amor às “causas perdidas” na advocacia contemporânea


 




Por amor às causas perdidas, por amor a travar as lutas contra 

os “moinhos de vento”, vos escrevo sobre as semelhanças entre a 

advocacia contemporânea e o clássico da literatura mundial “Dom 

Quixote”, escrito no século XVII por Miguel de Cervantes. Uma pequena 

reflexão que fiz ao conhecer o cavaleiro, louco para alguns, herói para 

outros.  

Este personagem icônico da literatura espanhola que deu 

margem a inúmeras composições artísticas por sua excentricidade 

possui semelhanças concretas com a figura do advogado 

contemporâneo e as “lutas” travadas usando a sua espada de nome 

“segurança jurídica”.  

Aos que ainda não foram apresentados ao “cavaleiro”, Dom 

Quixote era um fidalgo tido como louco em seu vilarejo, porque fez a 

leitura de muitos livros sobre a cavalaria medieval e acreditava 

piamente que ele era um cavaleiro. Viveu aventuras ao lado do seu fiel 

companheiro Sancho Pança, sempre combatendo as injustiças sociais, 

em busca da sua amada Princesa Dulcineia de Toboso. Dom Quixote 

foi desacreditado por onde passou, lutava por ideais maiores enquanto 

a população ria das suas ideias. Qualquer semelhança com sua 

realidade, meu caro advogado, não é mera coincidência.   

Em sua peregrinação, Dom Quixote acreditou verdadeiramente 

que os moinhos de vento encontrados no caminho eram gigantes e que 

ele deveria combatê-los, seu fiel escudeiro tenta alertá-lo sobre a 

ilusão, mas Dom Quixote investe suas forças na batalha contra o seu 

inimigo. A expressão “lutar contra moinhos de vento” que utilizamos 

para designar “batalhas em vão” surge desta clássica cena literária.  

 

 

Hoje nos deparamos com este cenário cada vez mais frequente na 

advocacia brasileira, o judiciário tem sido palco de grandes lutas contra 

moinhos de vento. Somos assolados por uma imensa insegurança 

jurídica, na qual estamos reféns do “entendimento do Juiz” que muda 

de acordo com a Comarca ou a Vara (há casos em que na mesma Vara, 

o entendimento muda conforme o assessor). Somos chamados todos os 

dias a usar a nossa armadura e brigar com os gigantes. Não importa o 

que você leu nos livros da cavalaria! 

Lemos muitos livros como o nosso amigo Dom Quixote e me 

parece que ficamos loucos, colegas. Diariamente somos conduzidos a 

uma realidade paralela de posicionamentos que por vezes contrariam 

todo o sistema jurídico, para satisfazer interesses ocultos ou as suas 

próprias convicções sobre as demandas.  

As decisões e despachos nos fazem questionar a nossa própria 

sanidade mental. O pedido do cliente seria uma ilusão como os 

moinhos de vento? Como pode o sistema processual civil brasileiro 

determinar que havendo manifestação expressa das partes quanto à 

“não realização de audiência de conciliação”, o judiciário ainda assim 

deliberar pela realização com fundamento em sua própria convicção?  

Dom Quixote tem sempre as melhores intenções, como os 

advogados em suas atuações pelos seus clientes. Como explicar ao seu 

cliente que a demanda dele (idêntica a um outro caso que você também 

já atuou e obteve êxito) foi julgada improcedente? Apenas porque teve o 

“azar” de ser distribuído a determinada Vara, na qual o Juiz decide de 

forma contrária ao seu pleito. Viramos o “Judiciário da loteria”, meus 

caros.  

Assim como o Dom Quixote, na advocacia precisamos ter a 

ousadia de enxergar com os olhos da alma, como o nobre cavaleiro, 

observando o conteúdo imaterial que as demandas possuem. Não são 

processos apenas, são sonhos, frustrações, mágoas e alegrias dos seus 

 

 

clientes que você, meu caro advogado, é o porta-voz.  Assim como o 

Dom Quixote descobre a duras penas, percebemos também que não 

temos super poderes para enfrentar os “gigantes”, mas as batalhas 

ganham um maior sentido quando enfrentadas pelo ideal de justiça. É 

preciso ter “sangue no olho” como o Dom Quixote.   

Cuidado! O próximo parágrafo contém spoiler do livro e da vida.  

Ao retornar ao seu povoado, após as desventuras vividas, Dom 

Quixote percebe que ele não é um herói, assim como não existem 

heróis. Heróis salvam o mundo independentemente de qualquer 

realidade difícil que lhe seja apresentada e tudo dá certo no final. Não 

há heróis, meus caros, mas continuemos a travar as nossas batalhas 

contra os “moinhos de vento”, por amor às causas perdidas, aos 

sonhos e desejos do outro.  

Me despeço deste breve paralelo com o desejo de muitos “finais 

felizes” aos meus colegas de cavalaria, cheio de “heróis” da vida real, 

“princesas” a resgatar e injustiças a combater, para que possamos viver 

a cada dia novas “loucuras” como o nosso amigo Dom Quixote.  

“Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é 

utopia, é justiça!” 


MIGUEL DE CERVANTES  

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