domingo, 13 de fevereiro de 2022

Canção I

 



Fermosa e gentil Dama, quando vejo

a testa de ouro e neve, o lindo aspeito,

a boca graciosa, o riso honesto,

o marmóreo colo e branco peito,

de meu não quero mais que meu desejo,

nem mais de vos que ver tão lindo gesto.

Ali me manifesto

por vosso a Deus e ao mundo; ali me inflamo

nas lágrimas que choro;

e de mim, que vos amo,

em ver que soube amar-vos, me namoro;

e fico por mim só perdido, de arte

que hei ciúmes de mim por vossa parte.


Se porventura vivo descontente

por fraqueza de esprito, padecendo

a doce pena que entender não sei,

fujo de mim e acolho-me, correndo,

à vossa vista; e fico tão contente

que zombo dos tormentos que passei.

De quem me queixarei

se vós me dais a vida deste jeito

nos males que padeço,

senão de meu sujeito,

que não cabe com bem de tanto preço?

Mas ainda isso de mim cuidar não posso,

de estar muito soberbo com ser vosso.


Se, por algum acerto, Amor vos erra,

por parte do desejo cometendo

algum nefando e torpe desatino;

se ainda mais que ver, enfim, pretendo;

fraquezas são do corpo, que é de terra,

mas não do pensamento, que é divino.

Se tão alto imagino

que de vista me perco – peco nisto –,


desculpa-me o que vejo;

que se, enfim, resisto

contra tão atrevido e vão desejo,

faço-me forte em vossa vista pura,

e armo-me de vossa fermosura.


Das delicadas sobrancelhas pretas

os arcos, com que fere, Amor tomou,

e fez a linda corda dos cabelos;

e, porque de vós tudo lhe quadrou,

dos raios desses olhos fez as setas

com que fere quem alça os seus, a vê-los.

Olhos, que são tão belos,

dão armas de vantagem ao Amor,

com que as almas destrui;

porém, se é grande a dor,

co a alteza do mal a restitui;

e as armas com que mata são de sorte

que ainda lhe ficais devendo a morte.


Lágrimas e suspiros, pensamentos,

quem deles se queixar, fermosa Dama,

mimoso está do mal que por vós sente.

Que maior bem deseja quem vos ama

que estar desabafando seus tormentos,

chorando, imaginando docemente?

Quem vive descontente

não há-de dar alívio a seu desgosto,

por que se lhe agradeça;

mas com alegre rosto

sofra seus males, para que os mereça;

que quem do mal se queixa, que padece,

fá-lo porque esta glória não conhece.


De modo que, se cai o pensamento

em algüa fraqueza, de contente

é porque este segredo não conheço:

assi que com razões, não tão-somente

desculpo ao Amor de meu tormento,

mas ainda a culpa sua lhe agradeço.

Por esta fé mereço

a graça, que esses olhos acompanha,

o bem do doce riso;

mas porém não se ganha

cum paraíso outro paraíso.

E assi, de enleada, a esperança

se satisfaz co bem que não alcança.


Se com razões escuso meu remédio,

sabe, Canção, que, porque não vejo,

engano com palavras o desejo.



Luís Vaz de Camões

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