quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Canção I

 




Luís Vaz de Camões



Fermosa e gentil Dama, quando vejo


a testa de ouro e neve, o lindo aspeito,


a boca graciosa, o riso honesto,


o marmóreo colo e branco peito,


de meu não quero mais que meu desejo,


nem mais de vos que ver tão lindo gesto.


Ali me manifesto


por vosso a Deus e ao mundo; ali me inflamo


nas lágrimas que choro;


e de mim, que vos amo,


em ver que soube amar-vos, me namoro;


e fico por mim só perdido, de arte


que hei ciúmes de mim por vossa parte.




Se porventura vivo descontente


por fraqueza de esprito, padecendo


a doce pena que entender não sei,


fujo de mim e acolho-me, correndo,


à vossa vista; e fico tão contente


que zombo dos tormentos que passei.


De quem me queixarei


se vós me dais a vida deste jeito


nos males que padeço,


senão de meu sujeito,


que não cabe com bem de tanto preço?


Mas ainda isso de mim cuidar não posso,


de estar muito soberbo com ser vosso.




Se, por algum acerto, Amor vos erra,


por parte do desejo cometendo


algum nefando e torpe desatino;


se ainda mais que ver, enfim, pretendo;


fraquezas são do corpo, que é de terra,


mas não do pensamento, que é divino.


Se tão alto imagino


que de vista me perco – peco nisto –,




desculpa-me o que vejo;


que se, enfim, resisto


contra tão atrevido e vão desejo,


faço-me forte em vossa vista pura,


e armo-me de vossa fermosura.




Das delicadas sobrancelhas pretas


os arcos, com que fere, Amor tomou,


e fez a linda corda dos cabelos;


e, porque de vós tudo lhe quadrou,


dos raios desses olhos fez as setas


com que fere quem alça os seus, a vê-los.


Olhos, que são tão belos,


dão armas de vantagem ao Amor,


com que as almas destrui;


porém, se é grande a dor,


co a alteza do mal a restitui;


e as armas com que mata são de sorte


que ainda lhe ficais devendo a morte.




Lágrimas e suspiros, pensamentos,


quem deles se queixar, fermosa Dama,


mimoso está do mal que por vós sente.


Que maior bem deseja quem vos ama


que estar desabafando seus tormentos,


chorando, imaginando docemente?


Quem vive descontente


não há-de dar alívio a seu desgosto,


por que se lhe agradeça;


mas com alegre rosto


sofra seus males, para que os mereça;


que quem do mal se queixa, que padece,


fá-lo porque esta glória não conhece.




De modo que, se cai o pensamento


em algüa fraqueza, de contente


é porque este segredo não conheço:


assi que com razões, não tão-somente


desculpo ao Amor de meu tormento,


mas ainda a culpa sua lhe agradeço.


Por esta fé mereço


a graça, que esses olhos acompanha,


o bem do doce riso;


mas porém não se ganha


cum paraíso outro paraíso.


E assi, de enleada, a esperança


se satisfaz co bem que não alcança.




Se com razões escuso meu remédio,


sabe, Canção, que, porque não vejo,


engano com palavras o desejo.







Nenhum comentário:

Postar um comentário