terça-feira, 31 de outubro de 2023

É Noite

 



Alberto Caeiro

 


 

É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância 

Brilha a luz duma janela.

Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.

É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,

Atrai-me só por essa luz vista de longe.

Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.

Mas agora só me importa a luz da janela dele.

Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,

A luz é a realidade imediata para mim.

Eu nunca passo para além da realidade imediata.

Para além da realidade imediata não há nada.

Se eu, de onde estou, só veio aquela luz,

Em relação à distância onde estou há só aquela luz.

O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.

Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.

A luz apagou-se.

Que me importa que o homem continue a existir?

 

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Igualdade






A Igualdade é a utopia mais utópica, 

verdadeiramente irrealizável...

A Igualdade é horizonte: não se alcança!

A igualdade é matematicamente inviável

A Igualdade é ideológica manipulação 

Ou loucura...Ou simples ilusão...

A Igualdade é uma mentira deslavada

de quem não consegue mudar nada...

Com o discurso da igualdade, 

ganha-se o entusiasmo e o coração, 

mesmo somente ficando no palavrório...

Com o discurso da igualdade, 

prega-se uma mensagem do paraíso,

enquanto se padece no purgatório...



Salvador, 19 de dezembro de 2015, frustrado com a vida, às vésperas do Natal.

domingo, 29 de outubro de 2023

Mais triste do que o que acontece

 



Fernando Pessoa

Poesias Inéditas

 


 

 

Mais triste do que o que acontece 

É o que nunca aconteceu. 

Meu coração, quem o entristece? 

Quem o faz meu? 

Na nuvem vem o que escurece 

O grande campo sob o céu. 

Memórias? Tudo é o que esquece. 

A vida é quanto se perdeu.

E há gente que não enlouquece! 

Ai do que em mim me chamo eu! 

 


sábado, 28 de outubro de 2023

Debate?





Todo afirmação peremptória, 

que não admite a possibilidade 

de eventualmente estar errada, 

é manifestação de intolerância.

Ou simplesmente de burrice...




Abrantes, 27 de março de 2016.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

As pequenas coisas irritantes da vida...





Há coisas pequenas que estragam 

meu dia, meu humor, minha paz

Se soam como cães ladrando,

atingem-me como facada nas costas,

pois chegam quando menos se espera

e se originam de onde sequer

poderia eu imaginar...

Se a memória é um dom,

pode ser também uma maldição,

se gera o vício

na dependência difícil 

do gosto do fel...

Quando começo a remoer, 

preciso de algum tempo para assentar

e conseguir superar 

a frustração 

a decepção 

a desilusão 

e tudo mais que rima com ão...

pois condenado estou

a não ter mais salvação...



Salvador, 19 de dezembro de 2015, profundamente chateado com a pequenez de quem julga e condena sem responsabilidade...

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

XXVIII - Li Hoje




 Alberto Caeiro

 


 

 

     Li hoje quase duas páginas

     Do livro dum poeta místico,

     E ri como quem tem chorado muito.

     Os poetas místicos são filósofos doentes, 

     E os filósofos são homens doidos.


     Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem 

     E dizem que as pedras têm alma

     E que os rios têm êxtases ao luar.


     Mas flores, se sentissem, não eram flores, 

     Eram gente;

     E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;

     E se os rios tivessem êxtases ao luar,

     Os rios seriam homens doentes.


     É preciso não saber o que são flores e pedras e rios 

     Para falar dos sentimentos deles.

     Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,

     É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.  

     Graças a Deus que as pedras são só pedras, 

     E que os rios não são senão rios,

     E que as flores são apenas flores.


     Por mim, escrevo a prosa dos meus versos 

     E fico contente,

     Porque sei que compreendo a Natureza por fora;

     E não a compreendo por dentro

     Porque a Natureza não tem dentro;

     Senão não era a Natureza.


terça-feira, 24 de outubro de 2023

Diretiva da Vergonha

 




Fui detido

- não acredito! –

Em um Campo de Concentração,

Digo, um Centro de Detenção


Fui detido

Sem crime cometer

Sem matar, nem roubar

Ou a ninguém prejudicar


Fui detido

Sem direito de defesa

Como se estar sem documento

Fosse um bilhete direto para o inferno


Fui detido

Pelo crime de ter esperança

De buscar um novo horizonte

Para mim e minha família


Fui detido

Pelo pecado de sonhar

Por uma nova vida enfrentar

Com disposição para trabalhar


Diretiva

Diretriz

Direção

Que eu não quis...


Retorno

Resolvo

Revolto

Expulsão...


Ilegais são atos, não pessoas.

Indignos são preconceitos escondidos

Em um revival de tempos idos

Em que se separava as pessoas pela origem


Fui detido

- é certo! –

Não pelo que fiz ou faria

Mas pelo crime de SER HUMANO


Ciudad Real, 28 de setembro de 2009

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Lisboa

 



Álvaro de Campos

 


 

    Lisboa com suas casas 

    De várias cores, 

    Lisboa com suas casas 

    De várias cores, 

    Lisboa com suas casas 

    De várias cores ... 

    À força de diferente, isto é monótono. 

    Como à força de sentir, fico só a pensar. 

    Se, de noite, deitado mas desperto, 

    Na lucidez inútil de não poder dormir, 

    Quero imaginar qualquer coisa 

    E surge sempre outra (porque há sono, 

    E, porque há sono, um bocado de sonho), 

    Quero alongar a vista com que imagino 

    Por grandes palmares fantásticos, 

    Mas não vejo mais, 

    Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras, 

    Que Lisboa com suas casas 

    De várias cores. 


    Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa. 

    A força de monótono, é diferente. 

    E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo. 


    Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo, 

    Lisboa com suas casas 

    De várias cores.


domingo, 22 de outubro de 2023

Pontualidade

 





Achar natural

que outros esperem,

ainda que alguns segundos,

fazer algo que

só interessa a você

é o cúmulo da cara-de-pau

com a falta de noção...

E o pior de tudo

é quando se pede

que tenham consciência

para respeitar

o que só lhe interessa,

seja o embarque

(ou desembarque)

de alguém

ou mesmo

que algo ocorra

como se fosse

a mais importante

de todo o universo.

Como não se irritar

com as desculpas

ou justificativas

para seu atraso?

Ver rostos contritos,

olhos de gato de botas

ou um ar indignado

de quem foi vítima,

e não a causa

do irritante atraso

que prejudica todo mundo,

até mesmo a si...

E quem ousa reclamar,

deixando o silêncio conveniente,

para ser descrito

como um sujeito paranóico,

estressado ou simplesmente chato,

que fica inventando caso

ou querendo aparecer...

Pontualidade é respeito

ao tempo alheio!

E ponto!


Atenas, 29 de setembro de 2012.

sábado, 21 de outubro de 2023

Liberdade

 



Fernando Pessoa

 

 

Ai que prazer 

Não cumprir um dever, 

Ter um livro para ler 

E não fazer ! 

Ler é maçada, 

Estudar é nada. 

Sol doira 

Sem literatura 

O rio corre, bem ou mal, 

Sem edição original. 

E a brisa, essa, 

De tão naturalmente matinal, 

Como o tempo não tem pressa... 

Livros são papéis pintados com tinta. 

Estudar é uma coisa em que está indistinta 

A distinção entre nada e coisa nenhuma. 


Quanto é melhor, quanto há bruma, 

Esperar por D.Sebastião,  

Quer venha ou não ! 


Grande é a poesia, a bondade e as danças... 

Mas o melhor do mundo são as crianças, 

Flores, música, o luar, e o sol, que peca 

Só quando, em vez de criar, seca. 


Mais que isto 

É Jesus Cristo,  

Que não sabia nada de finanças 

Nem consta que tivesse biblioteca... 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Escravas Sagradas de Korinthio

 





No encontro entre o Egeu e o Jônico

e de dois portos importantes,

encontra-se a cidade

que não conhecia o amor


No culto à Afrodite,

entregam-se mais do que primícias,

pois é o próprio corpo o objeto

do contato, do negócio e do prazer,


proporcionando conforto e alento

a quem vem de muito longe

e não sente há muito mais


o contato com a pele aveludada

em que o sentimento é nada,

mas a entrega e satisfação totais.


Na estrada de Korinthio para Atenas, 29 de setembro de 2012.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Leves véus velam, nuvens vãs, a lua




 Fernando Pessoa


 

LEVES VÉUS velam, nuvens vãs, a lua.

Crepúsculo na noite..., e é triste ver,

Em vez da límpida amplitude nua

Do céu, a noite e o céu a escurecer.

A noite é úmida de conhecer,

Sem que umidade de água seja sua.

[...]


quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Saudade




Parece doença...

Parece tristeza...

Parece dor no peito...

Parece desespero...

Parece depressão,

mas é só saudade...


Gramado, 18 de outubro de 2012.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Leve no cimo das ervas

 



Fernando Pessoa


 

Leve no cimo das ervas

O dedo do vento roça...

Elas dizem-me que sim...

Mas eu já não sei de mim

Nem do que queira ou que possa.

E o alto frio das ervas

Fica no ar a tremer...

Parece que me enganaram

E que os ventos me levaram

O com que me convencer.


Mas no relvado das ervas

Nem bole agora uma só.

Porque pus eu uma esperança

Naquela inútil mudança

De que nada ali ficou?


Não: o sossego das ervas

Não é o de há pouco já.

Que inda a lembrança do vento

Me as move no pensamento

E eu tenho porque não há.


segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Necessidade de Reclamar




Há indivíduos que

mal comem feijão com arroz

e querem questionar

a qualidade do champagne...

Pessoas que não sabem distinguir

um idioma de um dialeto,

um prato de um lanche

ou uma casa de um lar

e querem posar para a sociedade

como sacerdotes do culto,

vestais do templo

ou oráculos da verdade...

Pobres diabos,

eles não sabem

o que fazem, pois

sua vontade de viver

se confunde com

sua necessidade de reclamar...


Pamplona/Espanha, 03 de outubro de 2012.


domingo, 15 de outubro de 2023

Leve, breve, suave,




 Fernando Pessoa


                             

                        

Leve, breve, suave,

Um canto de ave

Sobe no ar com que principia

O dia.

Escuto, e passou...

Parece que foi só porque escutei

Que parou.

Nunca, nunca em nada,

Raie a madrugada,

Ou 'splenda o dia, ou doure no declive,

Tive

Prazer a durar

Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir

Gozar.


sábado, 14 de outubro de 2023

Sagapo

 





Kalimera,

agapi mou!

Giassou,

minha Athenea!

Deixe-me ser seu Colosso,

parakalo,

procurar suas curvas

e cavernas de Santorini...

Fugirei para Patmos,

pregarei em Éfeso

e sonharei em Mikonos.

Quero ser sua Acrópole,

matando o minotauro em Creta

seemera et avrio.

Seja a minha forma clássica:

dórica, jônica ou korinthia...

Sagapo, meu Parthenon!

Se me fascinam

as mulheres de Atenas,

da vida, eu quero

somente você apenas.


Atenas/Grécia, 29 de setembro de 2012.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Lembro-me ou não ? Ou sonhei ?




 Fernando Pessoa


 

LEMBRO-ME ou não ? Ou sonhei ?

Flui como um rio o que sinto.

Sou já quem  nunca serei

Na certeza em que me minto.

O tédio de horas incertas

Pesa no meu coração,

Paro ante as portas abertas

Sem escolha nem decisão.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Todo mundo é vítima

 




Todo mundo é vítima

e ninguém assume a culpa

Todo mundo é vítima

e se pode fugir da luta

Todo mundo é vítima

e se empurra a responsabilidade

Todo mundo é vítima

e não se muda nada de verdade

Todo mundo é vítima

e há argumento para tudo

Todo mundo é vítima

e punir é um absurdo

Todo mundo é vítima


No Trem de Madrid para Pamplona, 02 de outubro de 2012.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Lâmpada deserta




 Fernando Pessoa


 

LÂMPADA deserta,

No átrio sossegado.

Há sombra desperta

Onde se ergue o estrado.

Na estrada está posto

Um caixão floral.

No átrio está exposto

O corpo fatal.


Não dizem quem era 

No sonho que teve.

E a sombras que o espera

É a vida em que esteve.


terça-feira, 10 de outubro de 2023

Compatibilidade de Gênios


 



Pense em criar

Pense mais que reprodução

Acredite que faz diferença

Acredite em um mundo diferente

Produza tudo que der

Produza como quem respira

Diga em peças o que é sensação

Diga em palavras a poesia da canção

Traduza o significado da dor

Traduza o conceito de amor

Faça o que ninguém entende possível

Faça o que dizem impossível

Torne- se Deus

Torne-se o início e o fim

Seja maior do que é

Seja você mesmo


São Paulo, 30 de março de 2013.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Lenta e quieta a sombra vasta




 Fernando Pessoa

                        

                      

Lenta e quieta a sombra vasta

Cobre o que vejo menos já.

Pouco somos, pouco nos basta.

O mundo tira o que nos dá.

Que nos contente o pouco que há.

A noite, vindo do nada,

Lembra-me quem deixei de ser,

A curva anônima da estrada

Faz-me esquecer,

Faz-me ter pena e ter de a ter.


Ó largos campos já cinzentos

Na noite, para além de mim,

Vou amanhã meus pensamentos

Enterrar onde estais assim.

Vou ter aí sossego e fim.


Poesia ! Nada! A hora desce

Sem qualidade ou emoção.

Meu coração o que é que esquece ?

Se é o que eu sinto que foi vão, 

Por que me dói o coração ?

domingo, 8 de outubro de 2023

Ego e Empatia





Rodolfo Pamplona Filho



Muitas vezes, 

o ego é maior 

que a empatia,

em que,

em vez de agradecer,

prefere-se ostentar,

para mostrar 

ao mundo,

como supostamente 

se é valorizado.


Quando a empatia 

é maior que o ego,

desfruta-se a sensação 

de servir sem ser servido,

ser feliz em fazer feliz,

ter alegria em prestigiar

muito mais 

do que ser prestigiado

e achar isso 

o máximo 

da normalidade.


Salvador, 15 de junho de 2022.

sábado, 7 de outubro de 2023

O peixe de Neruda





 Ivo Barroso


Neruda pôs um peixe na bandeira

que desfraldava em frente à sua casa.

Talvez quisesse assim, desta maneira,

dizer que um peixe voa sem ter asa.


Dizer que nós podemos transformar

As coisas pela força da vontade:

Que o mar pode ser céu, o céu ser mar,

Dependendo do olhar, da intensidade.


Talvez quisesse nos dizer que a vida

É o exercício de enganar a morte;

Que depende de nós uma saída,

Parar os dados, reverter a sorte.


Que toda coisa é muito mais que a coisa

em si; que um nome pode ser trocado:

tudo consiste em ser a mariposa

que se transforma num milagre alado.


Assim, pensando bem, o que Neruda

buscou simbolizar com o peixe erguido

na flâmula, que agora se transmuda

em onda do mar, tem múltiplo sentido:


Antes do mais, é a pura imagem física

do peixe, o seu desenho, o seu traçado

geométrico, a linha elíptica, a risca,

o contorno preciso e elaborado;


a exatidão de meios, essa técnica

biológica que o torna a parte viva

da água em que ele vive, a chispa elétrica

que intensa o move, orienta, compulsiva.


O peixe de Neruda é mais que um peixe,

é uma bandeira, é mais que uma bandeira,

um conjunto de símbolos, um feixe

de acepções - a mitologia inteira.


É um peixe apostólico, sem dúvida,

a ser multiplicado quando há bodas;

mas é também um peixe só e único,

quando se forem as esperanças todas.


Pois é o peixe de Cristo e do infinito,

esse oito deitado e em si completo,

oracular, sinal na areia escrito,

signo zodiacal, moto perpétuo.


Por isso penso às vezes que Neruda

ao erguer de manhã aquele mastro,

com voz potente e ao mesmo tempo muda,

dizia versos ao seu peixe-astro:


‘Acorda, ó peixe inaugural, ó peixe matutino

Longe de teu reduto aquático, nos ares;

Deixa a esponja, o coral, o caramujo

— Teus amigos agora são as aves.

Deixa o reduto de imersões profundas,

Liberta-te de abraços isobáricos

E paira livre de teu peso em vôo silencioso e estático;

Nada nesse ondulante pavilhão que o vento do mar fustiga.

És agora o peixe em estado virtual, o peixe-pensamento, espadanando

A esbranquiçada metamorfose das escamas.

A ti entrego o destino de uma espécie

Marítima e volátil, a dupla vida

Que intentamos viver sem os recursos

Que ora te empresto da imaginação.

A ti confio o destino de todos estes seres

Que querem ser bem mais do que têm sido.

Mas que lhes falta o anseio de ter asas

Ou temem sempre mergulhar no abismo’.


E tarde, tendo os olhos seus imersos

no pôr-do-sol, descendo o pavilhão,

talvez Neruda lhe dissesse versos

— que o verso de Neruda é uma oração:


‘Volta, ó peixe vesperal, mergulhador do ocaso,

Ao seio original de onde saíste, entre líquenes e anêmonas;

Conta às algas o azul do céu quando os stratus

coroam as colinas,

Agora sabes os segredos dos que pairam acima do horizonte,

Mas dize-lhes também que aventura inaudita

É viver em dois mundos, é saber que estás aqui

Mas que podes pairar além do insuspeitado.


Sonda teu elemento com perícia mas denodo,

Não deixes o recôndito esquecido,

Nele há tesouros que ainda não fulguram

Por lhes faltarem olhos que os vejam.


Vai mais fundo, explora os teus recursos mais íntimos,

A força potencial que jaz nestas escamas

Que tatalaram como virgens rêmiges,

Um dia nas alturas.

Usa teus olhos oblíquos para veres na sombra

O que muitos não vêem em pleno dia,

Sê tu mesmo, sabendo bem que podes

Ser outro, muitos mais, ser legião, miríade

Sem trair o que de mais teu trazes contigo.

Amanhã, serás outro meu amigo.’


E ouvindo o Poeta descobri que havia

Algo de mais recôndito na imagem:

Além de toda essa mitologia,

Há no peixe uma última mensagem.


A de que é a Poesia um peixe-alado

E o Poeta um ser que busca o vir-a-ser.

Vive para dar vida ao Incriado,

Que a missão do Poeta é transcender.

 

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Famílias Simultâneas

 



 Rodolfo Pamplona Filho



Entre laços e lares, se expande a jornada,

em um mundo onde a família se entrelaça:

simultaneamente, vidas se descobrem,

afetos se formam, vínculos se constroem

 

Laços transcendem, formando um mosaico,

que não cabe em molde pré-definido:

herança de um mundo há muito arcaico,

que não sabia que só o amor fazia sentido.

 

Núcleos existem sem esperar autorização:

viver é mais urgente que a aceitação!

Nas famílias simultâneas, o que fortalece

 

é a visão de que o amor não tem fronteiras

e que importa o vínculo que se estabelece

entre aqueles que se amam, sem barreiras.

 

Ribeirão Preto, 24 de agosto de 2023.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Burocrático

 



Ivo Barroso



Importante empurar o dia

como quem come

a dieta do nada

sem ter fome?

Importante é extrair

de sua

substância vazia

alguma ânsia.

 

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Fundamentação

 


Rodolfo Pamplona Filho

 

O Direito clama por fundamentação,

alicerçando o comando com precisão.

No caminho da justiça, ela ilumina,

dando sentido e razão ao que determina.

 

Analisando os fatos e o direito aplicável,

o juízo constrói um laço inquebrável:

cada capítulo, cada parágrafo, cada linha,

respalda o decidido, com maestria.

 

É ela a voz que se ergue,

deferindo ou não o que se pede,

mostrando coerência e imparcialidade,

guiando com clareza e veracidade.

 

E, assim, pelos tribunais afora,

a decisão ganha força e melhora

a entrega da prestação jurisdicional,

cumprindo seu papel constitucional.

 

Demonstrando o como e o porquê,

a sociedade avança, sem esmorecer,

pois onde há justiça, com sinceridade,

a fundamentação é a base da verdade.

 

Ribeirão Preto, 24 de agosto de 2023.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Tédio

 



Paulo Gondim


 

Impiedosa essa tristeza

Que me invade o peito

Sem querer sair

E da incerteza

Do que há de vir

Me vejo mais só

Sem a confiança

Ou mesmo esperança

De um dia sorrir


E no meu desconforto

Aumenta o desgosto

Do meu caminhar

Nessa estrada longa

Pela noite escura

Na minha amargura

Estou sempre a vagar


E vou sem destino

Nesse desatino

Que a vida me traz

No meu desencanto

Até mesmo o pranto

Já não tem razão

E assim se desfaz


Não há qualquer vaidade

Nesta dura realidade

Que é meu viver

Insólito, inóspito, talvez

Pois assim a vida me fez

Insensível ao que vejo

E no meu desprezo

Nem sei quem eu sou


E a dor não é menor

Apenas se acostumou

Com minha solidão

Como Sentinela

Ali, de prontidão

A me vigiar

De sua janela

A me acorrentar

Com os seus grilhões


Impiedoso esse tédio

Que não há remédio

Que o possa curar

E na minha dor

Vou eu como for

Por qualquer caminho

Pra qualquer lugar


E esse tédio insiste

E essa dor persiste

No meu lamentar

Como companhia

De minha agonia

Esta nostalgia

Que me faz chorar


E tudo em volta é solidão

Se o tédio é o eixo da questão

Se o viver não faz sentido

Se a esperança se desfaz

E por sentir-se assim perdido

Só a dor se faz Cortez

E na minha timidez

De amar, sei não ser capaz.


segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Direito e Sexualidade

 


Rodolfo Pamplona Filho

 

Quem tem legitimidade

para regrar minha sexualidade?

Quem se arvora a mandar

com quem eu posso deitar?

Quem pode impor regra

sobre quem devo manter trégua?

Quem tem o poder

de mandar em meu querer?

Mesmo que o Direito

diga, imponha ou castre,

nada mudará o que sinto,

o que amo e o que faço

para ser a mais lídima manifestação

do que deseja o meu coração…

 

Em 16 de setembro de 2023, literalmente no voo de Passo Fundo para Campinas.

domingo, 1 de outubro de 2023

Face a face

 




Paulo Gondim


Vem, que te darei meu último beijo

Fruto de meu último desejo

Desse amor como castigo

Recebe meu último abraço

Como prova do fracasso

Que foram teus dias comigo


Vem, recebe meu último sorriso

E sente o quanto amenizo

Tua dor, tua saudade

Vem, recebe meu último afeto

Goza o abrigo de meu teto

Pois já morre tua vaidade


Vem, sepulta a última quimera

Vês o que foste nessa terra

Apenas desilusão

Descortina teu sorriso triste

Não negue o amor que ainda existe

A quem lhe abriu o coração


Olha para mim

Face a face, assim

Sem trama, sem falsidade

Pela última vez, não finja

Não converta a verdade em cinza

Encare a realidade


Vai, pois te sentes nas alturas

Não temas as sepulturas

Que se abrem para ti

Bate de frente com a morte

Entrega-te à própria sorte

Vês a morte te sorrir



26.08.2005